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Olhando para o passado sem IRA

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Por Philipp Engel Cillian Murphy e Pádraic Delaney en Ventos da liberdade (2006).   Ao contrário da literatura, o cinema é uma arte eminentemente coletiva, tanto na sua produção, um trabalho de equipe, como na sua recepção pelos espectadores, reunidos na sala escura (a televisão à la carte é ainda um complemento mais ou menos útil). E se esta natureza coletiva pode dificultar a rápida rotulagem da denominação de origem de um filme, que corresponde por defeito à(s) nacionalidade(s) da(s) empresa(s) que o produziu — o cinema é antes de tudo uma indústria, um negócio e um custo, para o qual é necessário levantar forças —, tudo é muito complicado no caso irlandês, devido, claro, à turbulenta história de um país dividido, às suas relações conflituosas com a Coroa britânica e aos sucessivos fluxos migratórios, tanto para América, e especificamente para aquele caldeirão de imigrantes chamado Hollywood, e para a vizinha Grã-Bretanha, polos a partir dos quais a diáspora continuou a exercer...

Macedonio Fernández, o eterno retorno

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Por Álvaro Abós “Imitei-o ao ponto da transcrição, até ao apaixonado e devoto plágio”, confessou Jorge Luis Borges, com os olhos rasos de lágrimas, na manhã chuvosa em que Macedonio Fernández foi sepultado. Era 18 de fevereiro de 1952. Tal confissão não foi uma mera manifestação de pesar. No dia seguinte, Borges levou o obituário à revista Sur , onde foi publicado no número 209/ 210. Posteriormente, escreveu outros textos sobre o autor de Museu do romance da eterna , como o prólogo de uma antologia de 1961. A devoção filial por Macedonio nunca cessou em Borges. Porém, nesse prólogo e nos comentários orais que Adolfo Bioy Casares recolheu após quarenta anos de amizade e trabalho comum em seu Borges (2011), o autor de El Aleph reitera repetidas vezes a seguinte ideia: Macedonio Fernández era um gênio verbal. Só quem o ouviu pessoalmente pôde apreciar a sua qualidade intelectual e humana. Como escritor, sustentava Borges, era confuso e medíocre (“Os poemas são pessímos... Macedonio, nos...

Peculiaridades de Franz Kafka

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Por Fernando García Ramírez A última foto conhecida de Franz Kafka. Realizada em Berlim, em outubro de 1923.  A Primeira Guerra Mundial estourou quando a família Borges havia pouco se mudado para a Europa; chegaram, em 1914, a Genebra, na Suíça. Os pais de Jorge Luis matricularam o filho mais velho em um instituto onde se falava alemão. Um de seus amigos compartilhou com ele uma revista expressionista e ali, aos 16 anos, leu Franz Kafka pela primeira vez. Voltando a Buenos Aires, Borges escreveria, sobre o escritor tcheco e sob sua influência, o conto “A biblioteca de Babel”.   Não sei se Juan José Arreola leu Kafka através de Borges, porque Ernesto Lumbreras mostrou que em 1929, na revista Banderas de provincia , de filiação católica, Efraín González Luna havia publicado sua tradução de um capítulo de O processo . Quem, sim, leu o escritor tcheco via Borges foi Gabriel García Márquez. O realismo mágico, que alguns atribuem ao colombiano, tem as suas raízes na literatura de es...

Boletim Letras 360º #589

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LANÇAMENTOS   No centenário da morte de Franz Kafka, O processo ganha edição especial em capa dura, com a consagrada tradução de Modesto Carone e desenhos do autor .   Em agosto de 1914, logo após a Europa entrar em guerra, Franz Kafka escreveu dois capítulos de O processo , os primeiros de uma composição errante, que usava diferentes suportes e abria mão da linearidade. O fragmento de romance foi abandonado definitivamente em janeiro de 1915, e sua publicação ocorreu depois da morte do autor, em 1924. O livro é resultado do trabalho de edição póstumo de Max Brod, amigo e testamentário da produção literária de Kafka, que ordenou os manuscritos e impôs uma linha narrativa à absurda história de Josef K., um homem que é preso e levado a julgamento sem jamais saber de que está sendo acusado. Esta, porém, não é a única possibilidade de leitura da obra inacabada. De acordo com o organizador desta edição, Renato Faria, há caminhos para se “imaginar e testar outras possibilidades de ...

Relicário de cuspes, de Leonardo Valente

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Por Herasmo Braga   No mundo contemporâneo, criar impactos, substituir informações por polêmicas, ter o maior número de likes , curtidas, compartilhamentos, seguidores, acaba sendo a razão última e, até mesmo, a única para muitos. Depararmo-nos com realizações, seja no campo das artes ou das ideias, exige paciência para não se deixar levar pelo camuflado, que acaba sendo exatamente o que se rejeita. Quando se volta para a literatura, em que se almejam novas produções literárias, distantes da abordagem temática de cunho social, do culto a si mesmo com traços biográficos idealizados, de construções tomadas como transgressoras na forma e no conteúdo, no entanto, apenas apresenta a imaturidade literária do seu autor, que possivelmente também é precário enquanto leitor, toda essa jornada desestimula produções literárias novas a agregarem na formação de um leitor estético crítico. Como não há nada absoluto nas elaborações humanas e, portanto, todas as regras acabam por gerir suas exceçõe...

O vermelho e o negro, de Stendhal

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Por Pedro Fernandes Stendhal. Daguerreótipo de Félix Nadar.   Stendhal pertence à lista de uns poucos da literatura: a dos escritores que marcaram definitivamente sua história com uma breve obra. Para os padrões da sua época, também foi um escritor tardio. Seus únicos romances mais importantes — Le Rouge et le Noir (1830) e La Chartreuse de Parme (1839) — e quase tudo o escreveu nesse âmbito data de quando perdeu a vida modesta estabelecida nos limites da permanência de Napoleão no poder. Sua presença na literatura se fixou pelas contribuições no desenvolvimento de uma forma narrativa que desde os últimos séculos entrava em evidência e encontrara uma cultura que produzirá algumas das transformações mais relevantes na sua história. Muito do moderno realismo ou da compreensão que atribuímos ao romanesco se forjou com e partir de O vermelho e o negro , principalmente, o desenredamento do indivíduo da dinâmica social, padecendo os impasses psicológicos e existenciais devido as viciss...