Peculiaridades de Franz Kafka

Por Fernando García Ramírez


A última foto conhecida de Franz Kafka. Realizada em Berlim, em outubro de 1923. 


A Primeira Guerra Mundial estourou quando a família Borges havia pouco se mudado para a Europa; chegaram, em 1914, a Genebra, na Suíça. Os pais de Jorge Luis matricularam o filho mais velho em um instituto onde se falava alemão. Um de seus amigos compartilhou com ele uma revista expressionista e ali, aos 16 anos, leu Franz Kafka pela primeira vez. Voltando a Buenos Aires, Borges escreveria, sobre o escritor tcheco e sob sua influência, o conto “A biblioteca de Babel”.
 
Não sei se Juan José Arreola leu Kafka através de Borges, porque Ernesto Lumbreras mostrou que em 1929, na revista Banderas de provincia, de filiação católica, Efraín González Luna havia publicado sua tradução de um capítulo de O processo. Quem, sim, leu o escritor tcheco via Borges foi Gabriel García Márquez. O realismo mágico, que alguns atribuem ao colombiano, tem as suas raízes na literatura de escritores da Europa Central — como o autor de A metamorfose e Bruno Schulz — que descreveram como a fantasia fendeu a realidade justamente quando o império austro-húngaro em que estavam inseridos até então se desmembrava. Enquanto o império afundava, a fantasia brotava da realidade: “certa manhã, Gregor Samsa […] encontrou-se em sua cama metamorfoseado num inseto monstruoso”.1
 
Na Alemanha, depois da Segunda Guerra, com o estigma da derrota e com a insuportável culpa de ter assassinado milhões de judeus, desenvolveu-se um grande centro de interesses em torno de Franz Kafka e sua obra. Há ruas com seu nome, bibliotecas, centros de estudos e arquivos muito importantes que guardam o acervo do escritor (manuscritos, primeiras edições). Existe, acima de tudo, o imenso poder cultural que advém da reivindicação como autor nacional de um escritor judeu e marginal, anterior às crueldades do nazismo. Da Alemanha é Reiner Stach, autor de uma extraordinária biografia2 e de um livro que reúne uma miscelânea de textos, anedotário, álbum, pequeno museu de miudezas relacionadas com Kafka: Ist das Kafka? 99 Fundstücke (trad. livre, É isto Kafka? 99 achados).
 
Kafka e o dinheiro. Embora fosse geralmente generoso e desprendido, “dificilmente era transigente com a obrigação de uma doação, com um erro no troco ou com despesas feitas sem motivo, mesmo que fossem apenas dez centavos”. O jovem Kafka colando em uma prova (participando de um plano para subornar a empregada de um professor para obter as respostas de uma avaliação). O Kafka desenhista (retratista da mãe e dele próprio). O Kafka ginasta metódico e vegetariano. A relação com as mentiras (não sabia mentir) e com a cerveja, que ele adorava (lembrava com emoção das cervejas que tomava com o pai na volta do balneário). 

Kafka sentimental, que se tocava com filmes tristes. Cenas de seus momentos mais desolados, por exemplo, o dia em que rompeu o noivado com Felice Bauer. Max Brod conta isso na sua biografia e Stach recupera aqui: “‘Só preciso descansar um momento’, disse. Ele acabara de levar Felice à estação de trem. Seu rosto estava pálido, sua expressão sombria e severa, até que, de repente, começou a chorar. Essa foi a única vez que o vi chorar. Jamais esquecerei a cena: foi uma das mais tristes que nunca havia testemunhado.”
 
Em vida, Franz Kafka foi um homem muito reservado. Todos gostavam dele, era legal, gostava de piadas. Depois da sua morte, e contrariando os seus mais apaixonados desejos, conhecemos as suas cartas, os seus diários, as suas anotações, os seus postais, os testemunhos das suas namoradas, das suas irmãs, até dos seus inimigos. Sabemos tudo o que fez.
 
Gabriel Zaid, através de Peter Drucker, o propõe como o inventor do capacete de proteção para a indústria. No magnífico Kritische Ausgabe. Schriften, Tagebücher, Briefe (S. Fischer, 1982), são mostradas outras invenções de Kafka, para evitar que os trabalhadores perdessem os dedos com certas máquinas. A lógica era que prevenindo acidentes haveria menos sinistros e ele teria menos trabalho como supervisor de acidentes na seguradora da qual fazia parte. Há testemunhos de seu tratamento compassivo para com pessoas que necessitavam de apoio das seguradoras. Kafka sempre foi fascinado por indivíduos que agiam de maneira pouco convencional.
 
Seus livros estavam longe de ser um sucesso comercial. Era, no entanto, um conhecido nos círculos literários de Praga. Alguns dizem que quando lia fragmentos de suas obras para os amigos, os ouvintes caíam às gargalhadas. Outros dizem que, durante uma dessas leituras, várias pessoas desmaiaram. Pelo que se sabe, apenas um leitor lhe escreveu, cuja carta foi preservada:
 
“Você me colocou em apuros. Comprei o seu A metamorfose e dei de presente para minha prima. Mas ela não conseguia entender a história. Minha prima deu o livro para que a mãe lesse, mas ela também não conseguiu entendê-lo. A mãe dela passou então o livro para minha outra prima que tampouco consegue entender o que isso significa. Então, escreveram para mim. Devo explicar-lhes o que a história significa, já que por alguma razão sirvo como o doutor da família. Mas também eu não sei o que dizer. Senhor! Passei meses nas trincheiras combatendo os russos sem titubear. Mas eu não suportaria ver minha boa reputação ir parar no inferno na frente das minhas primas. Só você pode me ajudar. Precisa fazer isso, porque você me meteu nessa confusão. Então, por favor, me diga o que minhas primas devem pensar de A metamorfose.”
 
Como alguns se espantaram, recentemente, Kafka não era um puritano, e como muitos homens do seu tempo, gostava dos bordéis para o sexo. “O sexo me atormenta, me tortura dia e noite, eu, para satisfazê-lo, teria que superar meu medo e minha vergonha, e sem dúvida também minha tristeza; por outro lado, é certo que aproveitaria imediatamente, sem medo, tristeza ou vergonha, uma oportunidade que se apresentasse de forma rápida, fácil e espontânea.”
 
O pai estava orgulhoso que seu filho doutor em leis, embora estivesse desapontado com seu desinteresse pelos negócios. Franz deu ao pai um dos poucos livros que publicou em vida, mas nunca soube se o tinha lido. A mãe, mulher meiga e simpática, “como não era leitora, era indiferente ao desenvolvimento intelectual do filho; não sabemos se leu alguma de suas obras.”
 
As irmãs de Franz Kafka morreram em campos de concentração. Suas namoradas, vários de seus amigos, seu tio predileto e quase um terço de seus colegas de escola morreram de forma violenta. Franz queria alistar-se no exército austríaco, mas o seu chefe, que o queria, impediu-o.
 
Enfim, Reiner Stach compila 99 apontamentos sobre diversas peculiaridades de Kafka; algumas das quais inventariei aqui. Para os amantes da obra kafkiana, este é um livrinho delicioso.


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Notas da tradução:
1 A tradução aqui citada é a de Modesto Carone (Companhia das Letras, 1997).

2 Até o presente, foi publicado no Brasil o primeiro dos três volumes da referida biografia: Kafka. Os anos decisivos (Todavia, 2022). 

* Este texto é a tradução livre de “Peculiaridades kafkianas”, publicado aqui, em Letras Libres.

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