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Os contos escondidos de Julio Ramón Ribeyro em seu arquivo de Paris

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Por Renzo Gómez Vega Julio Ramón Ribeyro em seu escritório de Paris, 1980. Foto: Jorge Deustua. Vasculhar a gaveta de um escritor já falecido é perscrutar a intimidade de um criador. Entrar num universo de dúvidas, ousadias e frustrações de quem travou inúmeras batalhas com uma página em branco para escapar do esquecimento. É, acima de tudo, explorar um olhar sobre a vida e testemunhar em primeira mão o milagre do nascimento da literatura.   Depois de se enraizar na Europa, Julio Ramón Ribeyro, o contista mais importante da literatura do Peru, morreu em Lima, aos 65 anos, no leito de um hospital oncológico, em dezembro de 1994, justamente quando começava a ser reconhecido. Partiu antes da chegada dos primeiros raios do sol de verão e algumas semanas depois de receber o Prêmio Juan Rulfo, reconhecimento que fez com que o seu nome transcendesse os círculos literários menores e ressoasse internacionalmente.   Desde então, sua comunidade de leitores — que eventualmente se tornaram...

Francesco Petrarca e o cobertor de Boccaccio

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Por Mario Colleoni Francesco Petrarca. Pintor anônimo. Acervo Castelo de Ambras, Áustria.     Cinquenta anos depois do nascimento do florim de ouro, moeda com a qual a Europa primeiro sonhou imaginar o seu nome, viveu em Florença um famoso notário chamado Pietro di Parenzo, mais tarde conhecido pela contração do seu nome, Ser Petracco. A sua profissão, determinada no seu caso por razões hereditárias (o pai e o avô também eram advogados), estava ligada à usura e carregava o peso da suspeita. Embora trouxesse grandes benefícios, era considerado um exercício pouco piedoso. Logo, um ou dois anos depois, imersos num clima próspero e agitado como aquela Florença do Trecento, meio política, meio comercial, meio artesanal, os frequentes confrontos entre guelfos (apoiadores da primazia do poder espiritual do papa) e os gibelinos (defensores do poder temporal do imperador) forçaram Ser Petracco a procurar abrigo em Aretino sob o signo de um indigno exílio político. Foi no calor daquela...

Boletim Letras 360º #596

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Paul Auster. Foto: Todd Heisler LANÇAMENTOS   Uma história sobre amor, luto e memória; o último romance do premiado autor de A trilogia de Nova York e Desvarios no Brooklyn.   Sy Baumgartner é um professor de filosofia às vésperas da aposentadoria. Sua vida é definida pelo profundo amor pela esposa, morta há quase uma década num acidente no mar. Aos 71 anos, Baumgartner segue lutando para superar a ausência de Anna, enquanto os dias se sucedem em espirais de lembranças e conflitos mentais. Aos poucos, somos arremessados “rumo ao passado, o passado remoto, tremeluzindo nas fronteiras da memória”. Dos anos 1960, quando os dois personagens se conhecem como estudantes sem dinheiro trabalhando e escrevendo em Nova York, ao relacionamento apaixonado que constroem ao longo de quarenta anos; da juventude de Baumgartner ao passado revolucionário de seu pai, um polonês dono de uma alfaiataria em Newark, Paul Auster explora os mistérios e complexidades da alma humana com a destreza que ...

Contra os poetas (I)

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Por Alejandro Zambra Giorgio De Chirico, O poeta e sua musa , 1925.   Aos vinte anos já acumulam experiências importantes: publicaram poemas em revistas e antologias, participaram de oficinas, escreveram artigos para anuários escolares e talvez tenham concedido uma ou duas entrevistas precoces. Já têm prontos seus primeiros livros, que estão a ponto de serem lançados por editoras emergentes. São livros muito ruins, mas por ora isso não importa. Seus poemas são longos e sentenciosos, abusam dos gerúndios, dos pontos de exclamação e das reticências. Leem Vicente Huidobro, Delmira Agustini e Oliverio Girondo, mas sobretudo leem-se uns aos outros, em intermináveis reuniões só por vezes amistosas.   Aos vinte e cinco já renegaram aqueles primeiros poemas, que consideram longínquos pecados de juventude. Esperam logo encontrar a maturidade como poetas, que a eles importa muito mais do que a maturidade como pessoas. O segundo livro largamente cumpre o objetivo: não é bom, mas sem dúvi...

Salman Rushdie: o atentado e muito mais

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Por José Woldenberg   Antes e depois   Em 12 de agosto de 2022, Salman Rushdie se preparava para dar uma palestra quando um jovem subiu ao palco e o atacou com uma faca. Graças à intervenção de Henry Reese, seu anfitrião, e de vários membros do público, o agressor foi preso. Antes, porém, em 27 segundos, ele esfaqueou o escritor quinze vezes no pescoço, no peito, nos braços, na mão, na boca e em um olho. Havia se passado pouco mais de 33 anos desde a sentença de morte ( fatwa ) que o aiatolá Ruhollah Khomeini emitiu contra Rushdie quando seu livro Os versos satânicos foi publicado.   Salman Rushdie decidiu escrever um livro sobre a agressão que o colocou à beira da morte para desvendar o terreno fértil que gera a paixão criminosa, dissecar as consequências nele deixadas pela violência deixou e propor a existência de um antes e um depois em sua vida. Rushdie recria a sua transferência de helicóptero, os cuidados de emergência no hospital, as múltiplas intervenções cirúrg...

Feito na Inglaterra: Marty oferece outra lição de cinefilia

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Por Alonso Díaz de la Vega Durante algumas semanas em 2003, um canal a cabo transmitiu programação dedicada a Martin Scorsese. Nessa autêntica retrospectiva — havia desde os clássicos essenciais aos filmes menos vistos — deparei-me com uma ficção, Taxi Driver (1976), que capturou a minha solidão adolescente, e um documentário, Minha viagem à Itália (1999), que é a mesma razão pela qual este recém-saído da infância escreve agora sobre cinema. Scorsese me afetou de forma inevitável e permanente quando o ouvi falar um pouco mais devagar do que o habitual, evitando o riso estridente, para prestar homenagem aos cineastas italianos que viu quando criança na televisão e que imitou na sua carreira de cineasta. Acima de tudo, fiquei impressionado com a forma como ele descrevia a saia de Alida Valli em Sedução da carne (1954), de Luchino Visconti: enquanto ela sobe uma escada desesperadamente, seu vestido se move “como se tudo a empurrasse para frente, em direção a um destino terrível”. Como ...