Postagens

M. F. K. Fisher: escrever por fome

Imagem
Por Bárbara Mingo Costales M. F. K. Fisher. Foto: Paul Harris “Foi então que descobri os gomos de tangerina secos. O prazer que me dão é sutil, voluptuoso e totalmente inexplicável. Só preciso explicar como os preparo.” Em seu livro Serve it Forth , de 1937, a escritora estadunidense M. F. K. Fisher parte do seu “secreto gosto” culinário pelos gomos de tangerina aquecidos em um aquecedor e depois deixados no frio fora de casa — Estrasburgo em sua memória. Eles devem ser consumidos logo em seguida. O capítulo, cheio de vivacidade, ocupa apenas três páginas; por um lado, há o enorme mérito de extrair setecentas palavras de algo tão modesto e, por outro, é surpreendente a capacidade de concentrar tamanha quantidade de informação e evocação em um espaço tão pequeno. Se nos desculparmos pela tediosa alusão à madeleine, uma associação com Proust não seria tão superficial quanto poderia parecer. Além do poder de um sabor mais ou menos cotidiano como gatilho para emoções evocativas, há a deter...

Sete poemas de “Poemas Sin Nombre” (1953), de Dulce María Loynaz

Imagem
Por Pedro Belo Clara         I.   Solidão, solidão sempre sonhada… Amo-te tanto que às vezes temo que Deus me castigue um dia enchendo-me a vida de ti… Ontem quis subir a montanha, e o corpo disse não. Hoje quis ver o mar, descer à luminosa enseada, e o corpo disse não. Estou desconcertada ante esta obscura resistência, esta inércia que me contrapesa a vontade não sei a partir de que lugar e me sujeita, me solda a invisíveis grilhões aos pés. Até agora palmilhei todos os meus caminhos sem nunca me dar conta de que eram justamente esses os pés que me levavam, e enchi-me de todas as paisagens sem nunca me aperceber se me entravam pelos olhos ou se as levava já comigo antes de se desenharem no horizonte, e nutri luzeiros, sonhos, almas, sem reparar que as minhas próprias veias se esvaziavam do seu próprio sangue. Agora pergunto-me que estrela virá a espremer-se gota a gota no coração exausto, que fonte haverá para lhe dar de beber como ao animal cansado… Pergunt...

Boletim Letras 360º #627

Imagem
DO EDITOR   Olá, leitores! Nesta semana concluímos duas atualizações importantes para o nosso projeto:   a) o nosso correio eletrônico mudou, agora, atendemos através do letrasinverso@gmail.com — salve nos seus contatos;   b) modificamos o nosso sistema de apoios, que passou a ser contínuo com sorteio de livros a cada grupo de seis apoiadores. Saiba todos os detalhes disso por aqui . Um excelente final de semana!   Imre Kertész. Foto: Olivier Mark LANÇAMENTOS   O regresso do mercado editorial brasileiro à obra do húngaro Imre Kertész .   Lançado originalmente em 1975, Ausência de destino é um dos grandes livros da literatura de testemunho do Holocausto. Escrito pelo húngaro Imre Kertész, Prêmio Nobel de Literatura, o romance é baseado na experiência do autor, que foi ele mesmo sobrevivente de campos de extermínio nazistas durante a Segunda Guerra Mundial. A obra estava fora de catálogo no Brasil e recebeu nova edição com tradução e posfácio de Paulo ...

Fiódor Dostoiévski diante do pelotão de fuzilamento

Imagem
Por Javier Memba A cerimônia de execução de Dostoiévski e outros condenados. Desenho de Boris Pokrovsky, 1849   No despontar do amanhecer de 22 de dezembro de 1849, Fiódor Dostoiévski, com oito camaradas do Círculo Petrachévski, foi colocado em uma carroça com destino à Praça Semiónovskova, em São Petersburgo. Aí os aguarda o pelotão de fuzilamento. O mais confiante dos nove réus está de bom humor, solta piada. Numa demonstração de coragem, ele observa que não é aconselhável chegar atrasado ao compromisso. Nem seus companheiros nem os soldados — aquele que conduz a carroça, os que guardam os condenados — acham graça. Fazer parte de um pelotão de fuzilamento é uma experiência tão triste que se recorrem aos batalhões penais ​​ para se conseguir fuziladores.   Na São Petersburgo de Nicolau I, é costume cobrir a cabeça dos prisioneiros para impedir de ver o último gesto dos carrascos para o condenado. Até os soldados mais veteranos, curtidos a sangue e fogo em mil batalhas, dizem...

Na colônia penal e a tríade da máquina: medo, castigo e veneração

Imagem
Por Juliano Pedro Siqueira   A novela Na colônia penal (1914) de Franz Kafka, trata-se de um texto curto, mas não menos denso em sua proposta crítica. Após um primeiro contato, certamente o leitor sairá impactado por mais um cenário kafkiano, cercado de absurdos e labirintos existenciais. Aliás, podemos dizer que se trata de uma narrativa terrivelmente perturbadora. Não diferente de outros trabalhos igualmente grandiosos, como O castelo e O processo . Em Na colônia penal , as poucas personagens que compõe a novela, cujos nomes não são mencionados, protagonizam o espetáculo de horrores em nome do poder. A trama inicia-se com a figura tirânica de um oficial, que discorre de forma deslumbrante a eficácia de uma máquina cuja finalidade é torturar insurgentes da lei local. A dita máquina, composta por três partes principais (cama, desenhador e rastelo), crivava marcas nos corpos dos castigados, inscrevendo-lhes sobre a carne, os crimes que cometiam.     Não estranho ao esti...

Amigos e estranhos é promessa de um talentoso diretor australiano

Imagem
Por Alonso Díaz de la Vega   É possível que com a morte de Jean-Luc Godard, que nos ensinou a dialogar não apenas com os personagens e enredos dos filmes, mas com as imagens e os significados produzidos por suas combinações, a busca por um cinema do futuro tenha se acentuado. Em termos bem literais, há e continuará a haver pessoas interpretando outras pessoas, sejam elas inventadas ou não, e alguém que vai dirigir essas cenas e fotografá-las; também haverá aqueles que juntarão as cenas resultantes para moldar narrativas. Porém, o que as grandes indústrias prometem, com suas exceções cada vez mais raras, é continuar esse processo repetindo os mesmos planos, a mesma musicalização que nos diz o que sentir e quando, as mesmas tramas onde os heróis vencem as sombras com algumas dificuldades, quase sempre as mesmas. Se este é o cinema do futuro, o que Godard e seus colegas, tanto conhecidos quanto ainda não descobertos — principalmente descobertos —, representa algumas possibilidades alé...