Com carinho, suponho

Por Rafael Ruiz Pleguezuelos

Ernest Hemingway. 


Todos os bons leitores acabam desenvolvendo um ritual privado que repetem toda vez que se aproximam de um novo livro. Alguns leem a contracapa e as informações apresentadas na orelha do livro, para ter melhor ciência das promessas oferecidas pelo objeto que tem em mãos. Outros passam os olhos por sobre a tipografia, observam a capa e viajam mentalmente com ela, julgando imaginar o conteúdo da obra antes de começar a lê-la. Os leitores mais sensoriais cheiram o papel e, passando as páginas, desfrutam do aroma que possui um livro novo, um gesto que tantas pessoas associam ao prazer da leitura.

Depois desses rituais íntimos, chega o momento de abrir o livro e mergulhar na letra impressa e aqui também há preferências entre os leitores. Começar uma leitura parece-se bastante com entrar numa piscina. Há quem, como em Sociedade dos poetas mortos, despreza as introduções, estudos críticos ou resenhas para se encontrar apenas a sós, diretamente, com / na obra. São do tipo de pessoas que quando chegam à beira da piscina jogam-se logo de cabeça sem conhecer ao menos a temperatura da água, às vezes sem nem mesmo medir ao certo sua profundidade. Noutro extremo, está o leitor precavido, aquele que cumpre todos os protocolos e passos prévios, como o banhista que primeiro coloca o pé para ver como está a água e depois de algum tempo vai até a profundidade em que a água fica pela cintura e só depois de ganhar confiança é que explora os recantos diversos da piscina. Os banhistas precavidos são os que leem as introduções, textos de aparato, palavras iniciais, citações e tudo o que o editor tenha julgado interessante considerar para o desfrute do texto.

O que mais gosto neste percurso anterior à leitura são as dedicatórias, talvez porque sempre penso que possam ser (embora com frequência não são, como já veremos) a única janela através da qual o leitor pode escutar a voz verdadeira do autor. Na dedicatória, o escritor deveria se limitar a confessar a quem dedica o livro e se muito acrescentar porque o faz, mas reiteradamente para os amantes da arte verdadeira nada é sincero quando falamos de literatura. É assim porque com o tempo os escritores passaram a entender que a obra não é o texto em si mas cada palavra que se oferece ao leitor e passaram a fazer da dedicatória uma proposta tão complexo e literária como qualquer outra. Assumindo que o escritor contemporâneo não pretende ser sincero nem quando numera as páginas, os autores sabem separar-se dessa moda itálica que fazia referência exclusivamente à esfera privada dos escritores e transcende-a com pequenos jogos.

Algumas dedicatórias têm uma sensível e enigmática beleza. Uma de minhas favoritas nesse ínterim é a que oferece Jesús López Pacheco em seu romance Central elétrica, uma obra que se encontra há muito esquecida e que aproveito a ocasião para recomendá-la: “A meu pai, que trabalhou toda a vida fazendo luz. A minha mãe, para que deixe de temer a escuridão”. Nesse mesmo sentido, também é belíssima a de Julio Llamazares em Cenas de cinema mudo: “A minha mãe, que já é neve”. É uma dedicatória que além de tudo demonstra uma das características mais apaixonantes do gênero contemporâneo: que alguns autores não podem prescindir de seu estilo nem sequer quando dedicam.

Quando falo isto do estilo das dedicatórias, gosto de oferecer dois exemplos que pertencem a autores tão diferentes como Jorge Luis Borges e Gloria Fuertes. O gênio argentino elabora um de seus habituais epigramas filosófico-especulativos quando dedica Os conjurados: “Seu é este livro, María Kodama. Será preciso que lhe diga que esta inscrição compreende os crepúsculos, os cervos de Nara, a noite que está só e as populosas manhãs, as ilhas compartidas, os mares, os desertos e os jardins, o que perde o esquecimento e o que a memória transforma, a alta voz do muezim, a morte de Hawkwood, os livros e as lâminas? Só podemos dar o que já foi dado. Só podemos dar o que já é do outro. Neste livro estão as coisas que sempre foram suas. Que mistério é uma dedicatória, uma entrega de símbolos!”. Como se pode ver, a dedicatória que reproduzi é em si uma obra profundamente borgiana, quase um conto breve ao qual não faltam suas obscuras referências culturais, sua sintaxe acumulativa e a incorporação constante de meandros do que sendo dito. Noutro extremo da escrita se encontra a poética obviedade que define os trabalhos de Gloria Fuertes, quem em Obras incompletas escreveu: “Dediquei meu livro / a uma menina de um ano / e ela gostou tanto / que o comeu”.

Ramón Gómez de la Serna parece provar uma de suas mais obscuras greguerías na dedicatória de sua pantomima Festa de Dolores: “À Tristão, que se aventurou com perigo de morrer e de maturidade irreparável nas grandes graças do Garrotin e das Rosas Vermelhas”, e a outra geração de 27, a do humor, também retratava em cada dedicatória. Enrique Jardiel Poncela em A turnê de Deus escreve: “A Deus, que me é muito simpático”, e Álvaro de Laiglesia caminha por lugares parecidos em Cada Juan tem seu dom: “À mim, com todo o afeto do Eu”.

Com estes exemplos, não parece exagero afirmar que se pode definir técnica, época e momento artístico de uma obra desde a dedicatória. Em plena reclusão voluntária pela ameaça de morte condicionada pela publicação de Os versos satânicos, o escritor britânico Salman Rushdie escreveu este curioso poema como dedicatória de seu livro Haroun e o mar de histórias “Zembla, Zenda, Xanadu, Xangrilá / Ali nosso sonho pode estar / Fantasia tem asas pra voar / Agora que ano longe, a vagar / Rumo a ti neste livro hei de voltar”. Rushdie escondeu um verso acróstico no poema original, e a palavra que obtemos ao lê-lo é o nome de seu filho: Zafar. Essa era portanto a dedicatória verdadeira que se encontrava presa no poema.

Carl Sagan, o eminente divulgador científico, não pôde deixar a ciência de lado nem quando dedica um livro, e por isso escrevo no seu popular Cosmos: “Na amplitude do espaço e imensidão do tempo, é um prazer compartilhar época e planeta com Annie”. Rafael Alberti, que nunca dava ponto sem nó, ofereceu a seguinte dedicatória em sua edição de Tríduo de Alba: “À minha mãe, devota da Virgem de Carmen, patrona dos marinheiros”. Embora, nas edições posteriores esqueçam a dimensão religiosa e somente se mostra um lacônico “À minha mãe”.

Mas, poucos autores se defiram tão fielmente em suas dedicatórias como Camilo José Cela. O Prêmio Nobel espanhol fortificou seu caráter vingativo nas edições de A família Pascual Duarte, pois na primeira edição se pode ler simplesmente “Para Víctor Ruiz Iriarte”, mas a partir da quarta a menção ao dramaturgo espanhol se complemente com uma dedicatória que já se ajusta perfeitamente à personagem que o escritor ia construindo passo a passo: “Dedico esta edição aos meus inimigos, que tanto me ajudaram na carreira”. Na mesma linha desafiante (embora muito mais de meu gosto por sua elaboração e mensagem) se encontra a dedicatória que mostra em São Camilo, 1936: “Aos moços da turma de 37, todos perdedores de algo: da vida, da liberdade, da ilusão, da esperança, da decência. E não aos aventureiros estranhos, fascistas e marxistas que se fartaram de matar espanhóis como coelhos e a quem ninguém havia dado vela em nosso próprio enterro”.

Mas, minha favorita de Cela continua sendo a de uma obra tão singular como O galego e sua quadrilha em que lemos: “Aos tontos, aos possessos, aos ascetas, aos vagabundos, às árvores, aos toureiros da praça de carro e marginais (que zurram a fome, o gado mocho e a guarda civil), aos sacristões, aos piadistas, os risonhos, aos criminosos e aos condenadores que gemem com as mesmas palavras que Gonzalo de Berceo”. Cela em estado puro numa linha de ressentimento e combate parecida com aquelas pelas quais se movem Charles Bukowski que em O carteiro escreve: “A ninguém”. Esta mensagem descreve sua perpétua luta contra o mundo. Em Pulp parece se despedir dizendo: À escrita ruim. Eloquente em sua simplicidade e uma espécie de declaração de intenções em questões de estilo.

A vingança também é um motivo que pode mover a dedicatória; nesse sentido me encantam as escritas por José Luis Martín Vigil em Já que matei um homem honrado: “Aos censores que há vinte cinco anos proibiram este livro. Saúde, se vivem”. Ou a de D. H. Lawrence, quem depois de julgado por obscenidade por que aquele que seria seu grande livro, O amante de Lady Chatterley, dedicou alguma edição a “os doze membros do júri, três mulheres e nova homens, que declararam um veredito de não culpado”.

Agora, desfruto muito das dedicatórias que, por obscuras ou simples, oferecem uma conjetura. Refiro-me a aquelas que simplesmente dizem “A ti”, ou “A essa pessoa”. Eles dão ao leitor um jogo de adivinha a saber a qual pessoa é dedicado o livro. Graham Greene deixou sua companheira em 1948 e desde então manteve um número difícil de precisar (mas seguramente alto) de amantes. Ofereceu aos leitores um jogo de pudor e ocultação ao dedicar a edição britânica de O fim do romance (de alguma maneira o título em si já se presta a uma piada): “A. C.”, simplesmente. Mas depois, na edição estadunidense, completou a adivinha confessando o nome completo de sua relação: “A Catherine”. Confirmava ao mundo que se tratava de sua amante Catherine Walston.

No mundo espanhol se especula muito sobre a dedicatória de Miguel Hernández coloca em O raio que não cessa. O impreciso “A ti só, em cumprimento de uma promessa que haverás esquecido como se fosse tua” tem provocado algumas observações intrigantes de que seja o “ti” qualquer um dos três amores do poeta: Josefina Manresa (sua esposa), Maruja Mallo e María Cegarra.

Também há as dedicatórias que causam recusa às pessoas para as quais são dirigidas. Numa ocasião Robert Gottlieb, o mítico editor da Knopf, se queixou de que lhe eram dedicados livros que o aborreciam. Quando A. E. Hotchner findou a biografia Papá Hemingway, quis dedicá-la à filha do escritor estadunidense, Mary Welsh Hemingway. A própria Mary, horrorizada pelo conteúdo do livro, o impediu de fazer isso escrevendo uma carta severa ao editor.

Muitos escritores recordam seus leitores quando têm de dedicar seu livro. Alguns inclusive têm tão claro qual é seu leitor comum que se permitem dirigir-se a ele de maneira específica, como no caso de Agatha Christie, quem, em não poucas dedicatórias, puxou pelo humor inglês para dedicar seus livros. Em O adversário secreto: “A todos os que levam vidas monótonas, na esperança de que possam experimentar embora seja de segunda mão as delícias e os perigos da aventura”. Minha favorita da escritora é aquela dedica uma de suas histórias de detetive a “Larry e Dande, com minhas desculpas por usar sua piscina como cena de um crime”. Uma vez mais, o estilo se encontra aderido à obra desde a própria dedicatória. Algo do tipo também faz Machado de Assis ao esconder-se por trás do narrador de Memória póstumas de Brás Cubas: “Ao verme que primeiro roeu as frias carnes do meu cadáver dedico como saudosa lembrança estas memórias póstumas”.

Decepcionam-me as dedicatórias que constituem brincadeiras privadas ou referências de cortesia profissional porque me deixam como um jovem decepcionado porque seus amigos não o convidam para uma festa. Ernest Hemingway dedicou O velho e o mar a Charles Scribner, seu editor; o mesmo fez John Steinbeck em Ao leste do Éden com Pat Covici. A agente literária mais popular de nossas letras do século XX, Carmen Balcells, recebe várias menções laudatórias dos escritores do Boom e próximos. Citam-na nomes tão díspares como José Luis Sampedro, Manuel Vázquez Montalbán ou Gabriel García Márquez. O maior recebedor de amor literário da história provavelmente é William Shawn, o mítico editor do New Yorker, quem se encontra em mais de quarenta dedicatórias, incluindo gigantes como J. D. Salinger ou John Updike.

Concluo essas anotações com a dedicatória literária que traz uma anedota das mais divertidas que conheço. C. P. Snow, físico e escritor britânico é o protagonista dessa história. Um dia abriu um de seus livros na edição estadunidense e descobriu para sua surpresa que a obra estava dedicada a um tal de Kate Marsh, um nome que não lhe dizia nada. Surpreso, escreveu ao seu editor uma carta irada que pode se resumir na seguinte frase: “Who the hell is Kat Marsh?”. O editor pareceu ofender-se com a pergunta de Snow e se conta que lhe respondeu algo parecido ao que se sua senhoria não recordava a quem dedicava os livros como ia a editora fazê-lo. C. P. Snow não ficou satisfeito com a resposta e continuou investigando o assunto. Quando enfim desfez o mal-entendido da misteriosa dedicatória, soube que Kate Marsh era a secretaria de sua agência de representação em Londres. A confusão havia se produzido porque o manuscrito que chegou à editora estadunidense antes havia sido remetido “A Kate Marsh” (isto é, à secretaria de sua agente), de modo que o nome dela figurava na primeira página do original.

* Este texto é a tradução livre para “Com cariño, supongo”, texto publicado aqui, em Jot Down.


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