Boletim Letras 360º #435

DO EDITOR
 
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Joseph Conrad. Foto: The Granger Collection / Forum


 
LANÇAMENTOS

Obra pouco conhecida de John Milton, mas igualmente grandiosa, ganha tradução e edição no Brasil.
 
Composta em versos trágicos à moda clássica, a peça dramática de Milton acompanha as últimas vinte quatro horas do herói bíblico Sansão, já cego após ter sido traído por Dalila e capturado pelos filisteus. É ao dar voz e profundidade psicológica a esse personagem, conhecido apenas muito superficialmente na narrativa do livro de Juízes da Bíblia, que o poema de Milton se destaca. Oferecendo uma visão humanizada do herói, atravessado pelos arrependimentos e pelas tensões entre suas vontades pessoais e seus deveres impostos por sua nação e seu deus, Sansão Agonista é muito mais do que uma mera dramatização de um episódio bíblico. É uma história sobre prisão e liberdade, sexualidade e sacrifício, penitência e redenção. É a última e mais marcante demonstração de vitalidade poética de um autor já no final de sua vida, cego — tal qual o protagonista da peça — e debilitado pela experiência do cárcere e da perseguição política. Ainda que menos famosa do que a épica de Milton, o drama Sansão Agonista é de uma beleza impactante. Segundo o crítico George Steiner, “o teatro inglês jamais produziu qualquer coisa com a qual ela possa ser comparada”. A mescla entre a forma grega, seguida à risca, e o conteúdo bíblico faz dela uma obra única. A tradução é de Adriano Scandolara e o livro é publicado pela De Cultura.
 
Livro reúne seis contos e duas peças de Joseph Conrad.
 
Conrad é mais conhecido por seus romances. No coração das trevas, Lord Jim, Nostromo, Sob os olhos do Ocidente, O agente secreto figuram entre as obras mais populares da literatura mundial. Porém, ele sempre se dedicou às narrativas curtas, que formam um extraordinário conjunto em sua produção. “Os idiotas”, aliás, que abre a coletânea, foi o primeiro trabalho completo que escreveu e publicou. Nesses textos, encontramos concentrado tudo aquilo que nas obras mais longas encantaria os leitores: a descrição de lugares longínquos habitados por povos dos quais poucos já ouviram falar, a linguagem refinada, a aventura, os anti-heróis. E com ele, quanto mais longe se vai na selva ou no mar, mais fundo se entra na psique humana. Que o leitor não se deixe enganar nem pelo colonialismo nem pelo exotismo, pois ao viajar com Joseph Conrad por um império britânico onde o sol jamais se põe, acabará por reconhecer nos seus retratos uma humanidade complexa que faz do Outro um espelho de si mesma. Com organização, tradução, apresentação e notas de Alcebiades Diniz Miguel, Narrativas inquietas reúnem seis contos e duas peças de Joseph Conrad. O livro é publicado pela editora Perspectiva.
 
Um novo livro de Pepetela chega ao Brasil.
 
Em O desejo de Kianda, a ação se desenvolve em Luanda, em 1994, numa Angola marcada por sequelas da guerra civil. O romance se inicia com o desmoronamento de um prédio no dia do casamento de João Evangelista. Outros desmoronamentos se sucedem sem aparente motivo, alterando o ritmo de vida de todos. Kianda, espírito que vive em todas as águas — mar, lagos e rios —, é personagem determinante nessa história em que tradições angolanas e atualidade política e econômica são retratadas com maestria e sensibilidade. O livro é publicado pela Editora Kapulana.
 
Uma visita ao tempo dos grandes intelectuais franceses do século XX.
 
O projeto empreendido por François Dosse em A saga dos intelectuais franceses 1944-1989 nos traz uma historiografia comentada da intelligentsia francesa na segunda metade do século XX, face aos acontecimentos do pós-Segunda Guerra Mundial aos eventos de 1989. A obra é mais do que uma “história” reconstruída por meio das principais figuras da época, e sim uma “narração” em que não se excluem mitologias sociais, sonhos e esperanças dos protagonistas, ilusões, decepções e proclamações. A obra aborda a evolução das ideias que dominaram cada momento, da história intelectual da França e, em grande parte, da Europa e do mundo. Ninguém estava mais bem equipado do que François Dosse para enfrentar este desafio: narrar de forma panorâmica e sistemática a aventura histórica e criativa dos intelectuais franceses, que vai da Libertação e do fim da Segunda Guerra Mundial ao bicentenário da Revolução Francesa e à defenestração do muro de Berlim. O primeiro volume agora publicado pela Estação Liberdade, abarca os anos de Camus, Sartre e Beauvoir e as suas controvérsias, as relações contrastantes com o comunismo, o choque de 1956, as revoluções chinesa e cubana, a Guerra da Argélia, a consolidação do terceiro-mundismo, a irrupção do momento gaulliano e a sua contestação: é um período dominado pelo teste da história, a influência do comunismo e a progressiva desilusão subsequente. O segundo volume, 1968-1989, vai das utopias esquerdistas e do combate contra o totalitarismo, à “nova filosofia”, ao advento de uma consciência emancipadora e ecológica e à desorientação da década de 1980: um tempo marcado pela crise do futuro e que vê se instalar a hegemonia das ciências humanas. Eis apenas alguns dos pontos de referência desta saga que engloba um dos períodos mais efervescentes e criativos da intelligentsia francesa, de Sartre a Lévi-Strauss e Foucault e de Lacan a Barthes e Derrida. O tema já suscitou uma vasta bibliografia, mas um afresco de tal amplitude destina-se a fazer época. A tradução é de Guilherme João de Freitas Teixeira.
 
Projeto dá conhecer a obra completa de Luiz Gama.
 
Poeta e advogado abolicionista, Luiz Gama se tornou símbolo da luta contra a escravidão no Brasil. Nascido em Salvador, Bahia, em 1830, foi responsável pela libertação de mais de quinhentas pessoas escravizadas. Na contramão de sua importância, sua obra permaneceu praticamente incógnita até o momento. Preenchendo essa lacuna histórica, a editora Hedra lança suas “Obras completas”, em um conjunto de mais de 750 textos, divididos em 10 volumes, que desvelam as diversas esferas nas quais Gama atuou: seu universo de personalidades, referências mitológicas e jurídicas. Bruno Rodrigues de Lima, doutorando em História do Direito pela Universidade de Frankfurt, pesquisou por nove anos esses textos inéditos em arquivos da imprensa e do judiciário paulista, fluminense, gaúcho, paranaense, mineiro e baiano. Junto com os dez títulos, o projeto reunirá neste site materiais audiovisuais como leituras comentadas, entrevistas, vídeos e documentos que iluminam a história da escravidão e dos movimentos abolicionistas no Brasil.
 
A Garupa Edições publica o segundo livro do poeta Italo Diblasi.
 
Escrito entre 2016 e 2021, A morte não é magrinha traz poemas densos e desesperados, fruto de período tempo em que testemunhamos uma série de desmontes e desastres. Povoado por nomes, aqui encontramos uma pessoalidade transversal, desidentificada. A hipótese perseguida é a de que é preciso cantar o percurso enquanto ele ocorre, e, assim, construir uma paisagem que vai se refazendo na medida de sua própria destruição. Assim como n’O limite da navalha, primeiro livro do autor, a memória é tema central, mas está reposicionada neste livro: é no tumulto secreto, que ainda a envolve no presente, que encontramos o fio narrativo dos poemas. Italo parece mostrar o buraco das coisas enquanto as observa. Há uma certa inocência que ficou para trás e o resultado é um livro lírico, um livro comprometido com o sonho, um livro às voltas com Eros.
 
Em uma prosa que recende o grande poeta que foi, Adam Zagajewski se dirige com energia e lirismo às questões centrais da poesia do século XX, sem perder jamais a esperança.
 
Nos quatro ensaios que compõem esta defesa do fervor, Adam Zagajewski desenraíza a criação literária e reafirma a literatura como um conjunto de peças moventes que orbitam os sujeitos, a dúvida, as democracias e a presença. Avesso às classificações e arremetendo contra os juízos generalizantes, destaca a mornidão das leituras individualistas para cravar: “Talvez, então, o verdadeiro fervor não divida, mas una. E nem leve ao fanatismo, nem ao fundamentalismo”. O poeta e ensaísta polonês navega entre Czesław Miłosz e Emil Cioran, entre Thomas Mann e Simone Weil; produz-se assim um posicionamento apaixonado em defesa da literatura, contra a “tagarelice interminável de literatos satisfeitos consigo mesmos”. A tradução de Em defesa do fervor é de Eneida Favre e é publicada pela editora Âyiné.

REEDIÇÕES
 
A L&PM Editores publica edição comemorativa em alusão ao cinquentenário de As veias abertas da América Latina, de Eduardo Galeano.
 
Se a história é escrita pelos vencedores, As veias abertas da América Latina, lançado em 1971, é a exceção da regra. Trata-se de uma história dessa região, da colonização à segunda metade do século XX, que foca no derramamento de sangue indígena, na espoliação econômica e na dominação política impostos primeiro pelos europeus, depois pelos Estados Unidos. Hoje, em um mundo pós-Guerra Fria, mesmo com o fim das ditaduras militares do período (durante algumas das quais o livro foi proibido, na Argentina, Brasil, Chile e Uruguai), as veias da América Latina continuam sangrando. Como Galeano escreveu em 2010: “O autor lamenta que o livro não tenha perdido atualidade. A história não quer se repetir [...], mas a obrigamos a se converter em destino fatal quando nos negamos a aprender as lições que ela, senhora de muita paciência, nos ensina dia após dia”. Cinquenta anos após seu lançamento, em meio à globalização da poluição e dos desastres ambientais (mas não dos lucros das grandes multinacionais), à desigualdade social crescente, à persistência da epidemia de fome nessa que é uma das regiões mais férteis do mundo, este best-seller internacional é mais necessário do que nunca. Com seu texto lírico e amargo, ilustrado com o traço do argentino Tute para esta edição, Galeano transmite, com sua consagrada maestria, uma mensagem que transborda humanismo, solidariedade e amor pela liberdade e pelos desvalidos. A tradução é de Sergio Faraco.
 
DICAS DE LEITURA
 
Há alguns anos esperamos uma nova tradução do grande empreendimento da literatura do século XX, Em busca do tempo perdido. Como o nosso mercado editorial funciona aos solavancos, com pouca e às vezes nenhuma projeção de futuro, parece que perderemos a grande oportunidade desse acontecimento se firmar junto com um motivo especial. É que neste 10 de julho de 2021 passam-se o 150.º aniversário de nascimento de Marcel Proust e pouco se sabe de concreto acerca da chegada de uma nova edição da obra máxima do escritor francês. Por enquanto, o leitor pode se contentar com as duas traduções em circulação: a editada pela Biblioteca Azul e realizada a várias mãos — Carlos Drummond de Andrade, Mario Quintana, Lúcia Miguel Pereira, entre outros; e a editada pela Nova Fronteira, realizada por Fernando Py. Bom, enquanto a espera continua, é possível, se ainda não leu, usar a efeméride como motivo para o encontro com este longo romance. Se não, algumas outras obras de Proust também estão à espera dos leitores. Nas dicas desta semana, quatro delas.
 
1. Jean Santeuil. Começamos por este romance que foi reeditado recentemente pela Nova Fronteira, no quadro de colocar acessível aos leitores parte importante do rico catálogo dessa editora. Este é o primeiro romance do escritor francês. Começou a ser escrito a partir de 1895, mas nunca chegou a ser concluído e só veio a público trinta anos depois da morte de Proust, quando o manuscrito foi encontrado na França. Pode-se ler Jean Santeuil como um percussor do monumental Em busca do tempo perdido; a narrativa acompanha as memórias de infância, adolescência e formação do protagonista, tudo feito à base do anedótico, da reflexão e uma caleidoscópica visão de mundo. A tradução é de Fernando Py.
 
2. O fim do ciúme e outros contos. Sabe-se que recente — e falamos sobre isso por aqui — apareceu na França vários textos inéditos de Proust, ampliando a região da narrativa curta em sua obra. Essa pequena antologia com tradução de Julia da Rosa Simões editada pela L&PM Editores é uma boa alternativa aos leitores brasileiros para entrar em contato com essa pouco conhecida atividade criativa do escritor francês. São textos publicados entre 1896 na edição Os prazeres e os dias e são produto do início da carreira literária já interessada pela vida mundana da alta sociedade parisiense e por temas como o ciúme, o amor e suas derivações dolorosas, o afeto das relações entre filhos e mães, as pequenas angústias da infância, enfim, uma visita à riqueza do nosso mundo interior.
 
3. Salões de Paris. E por falar sobre o interesse proustiano pela vida burguesa de uma Paris dos salões, se o leitor se sentir encorajado pelo tema, uma boa pedida é esta antologia que chegou no Brasil numa das caprichas tiragens de luxo da Carambaia, mas que circula numa coleção mais popular por esta mesma casa editorial. Os textos reunidos neste livro também datam do período anterior ao nascimento de Em busca do tempo perdido e são de quando o escritor aparecia com regularidade no jornais. As crônicas testemunham um tempo e um contexto cujas marcas e influências atravessaram meio mundo e se notaram mesmo em países como o Brasil: o dos Salons. Por estes lugares transitavam a literatura, a arte, a moda, as reflexões críticas sobre esses e outros temas. Os vinte e um textos de Salões de Paris apareceram principalmente no Le Figaro, em jornais de pequena tiragem e circulação como o Le Mensuel e revistas especializadas como Revue d’Art Dramatique e Revue Blanche. As traduções são de Caroline Fretin de Freitas, Celina Olga de Souza.
 
4. Três livros de ensaios. Marcel Proust também pensou várias de suas inquietações ante a atividade da escrita, da leitura em ensaios como Contra Sainte-Beuve. Aqui, o leitor encontra um escritor envolvido em considerações sobre a necessidade da escrita, revelando o porquê de seu interesse em dar forma literária à memória pessoal a partir de circunstâncias e objetos ordinários. Este ensaio, publicado pela editora Âyiné, foi traduzido por Luciana Nogueira. O leitor interessado por esta forma de escrita pode recorrer ainda a outro ensaio disponível entre nós intitulado Sobre a leitura. Trata-se de um prefácio oferecido por Proust a Sésame et les Lys, de John Ruskin, em 1905, no qual o escritor acaba oferecendo uma série de reflexões sobre o ato de ler e visitando nomes como Homero, Shakespeare e Racine. A tradução de Julia da Rosa Simões está publicada pela L&PM Edições. Por fim, atenção para Nas trilhas da crítica. Parte da coleção Imaginário editada pela Edusp, este livro reúne não um, mas quatro ensaios: “Sobre a arte”; “A propósito do estilo de Flaubert”; “Observações sobre o estilo”; e “A propósito de Baudelaire”. A tradução é de Plínio Augusto Coelho.
 
VÍDEOS, VERSOS E OUTRAS PROSAS
 
1. Em 2017 veio a público este vídeo com o que o pode ser as únicas imagens em filme de Marcel Proust, a partir do que afirma o professor e pesquisador Jean-Pierre Sirois-Trahan, da Universidade do Québec. O filme de 1904 foi encontrado por ele nos arquivos do Centro Nacional do Cinema, em Paris e mostra o escritor no casamento de uma amiga como revela um texto numa revista de estudos proustianos. 

2. A Companhia das Letras organiza nos dias 13, 20 e 27 de julho a Jornada Raduan Nassar. São três encontros para discutir a obra do escritor brasileiro. No primeiro, Andréa del Fuego discorre sobre Lavoura arcaica; no segundo, Estevão Azevedo, sobre Um copo de cólera; e, por fim, Marcelino Freire, fala sobre Menina a caminho. Todo o evento acontece online no canal do YouTube da editora a partir das 19h. A jornada abre as celebrações da Companhia pelos 35 anos.
 
BAÚ DE LETRAS
 
1. Em 2013, quando o primeiro volume de Em busca do tempo perdido alcançou o primeiro centenário da sua publicação, o Letras publicou a tradução de uma série de textos em torno desta obra. Das várias entradas neste blog sobre a obra e escritor francês, recordamos esta sequência; são três publicações: esta, de Winston Manrique Sabogal; esta, de Félix de Azúa; e esta de Colm Tóibín.

2. Esta semana estreou nas plataformas de streaming brasileiras a adaptação cinematográfica de Laços, romance de Domenico Starnone. Toda a obra do escritor italiano editada no Brasil pela Todavia está comentada aqui no blog. Para ler o texto sobre o romance-tema do filme de Daniele Luchetti que abriu o 77.º Festival Internacional de Cinema de Veneza, visite aqui.

3. Ainda Marcel Proust. Uma face quase desconhecida do escritor francês, inclusive no seu país natal, é a do poeta. Por aqui, é possível citar traduções de textos neste gênero realizadas por Carlos Felipe Moisés apresentadas numa edição esgotada — Os prazeres e os dias — e também de Fernando Py, o mais importante tradutor de Proust no Brasil. Em 2013, o blog dedicou uma post com este material: um ensaio de Moisés e a tradução sua para oito poemas.

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