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Mostrando postagens com o rótulo Patricio Pron

A metade fantasma, de Alan Pauls

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Por Patricio Pron “Uma causa sem efeito” (mas também sem utilidade e sem propósito) leva Savoy a marcar visitas a apartamentos e casas sem planos de morada e, posteriormente, a comprar produtos de segunda mão de que não necessita através de uma plataforma de comércio eletrônico; o que você procura enquanto se submete a uma apresentação moderadamente entusiástica de “bijuterias, móveis velhos, quartos com cheiro de mofo, corredores cheios de roupas sujas, brinquedos e acessórios para animais de estimação, unidades de serviço equipadas como oficinas de bricolagem ou pronto-socorro para casais em crise” é algo que nem ele mesmo consegue compreender plenamente, embora, claro, não pare de pensar nisso: Savoy é mais um daqueles personagens “lúcidos e inúteis” que povoam a obra de Alan Pauls cuja inteligência e completude constituem um certo tipo de invalidez.   Mas a sua irrupção na vida alheia, o breve, sempre insuficiente vislumbre de uma existência possível, embora indesejável, que g...

Como fazer coisas com livros

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Por Patricio Pron Ilustração: Joe Prytherch Ninguém jamais verá este livro nas listas “dos mais vendidos”, mas os únicos prejudicados por esta omissão serão aqueles leitores que ingenuamente creem que algo só é bom se for comprado por muitas pessoas. Apesar disso, não há o que reclamar a sua jovem autora, a poeta e artista multidisciplinar Amaranth Borsuk, nem quanto a seu tema, a história do livro e suas transformações ao longo de, digamos, os últimos 5.500 anos, uma história especialmente atrativa nos tempos em que o livro e o que se relaciona com a cultura surgida em torno dele se convertem em fetiche mercantil enquanto os índices de leitura não deixam de diminuir. A razão pela qual é improvável que El libro expandido seja lido por muitos leitores reside no fato de que, ao contrário de outros livros recentes sobre o tema, sua autora não banaliza essa história, a do livro e da leitura, nem a degrada em uma fantasia sobre reis e escribas ou em uma lição escolar repleta de lugares-com...

Ricardo Piglia em busca do tempo perdido

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Por Patricio Pron Ricardo Piglia. Fotograma do documentário 327 Cuadernos , de Andrés Di Tella   “Gostaria de editar este diário em sequências que sigam as séries de acontecimentos”, escreve Ricardo Piglia: “todas as vezes que me encontrei com amigos em um bar, todas as vezes que fui visitar minha mãe. [...] Não uma situação despois da outra, senão uma situação igual a outra”. A doença degenerativa que foi diagnosticada três anos antes de sua morte em 2017 impediu o escritor argentino de dar forma a esta tentativa pereciana de esgotar a experiência; porém, alterar o que seu autor denomina “a causalidade cronológica” é um dos propósitos mais habitualmente repetidos ao longo de Los diarios de Emilio Renzi , cujo terceiro e último volume permite agora vislumbrar o que Piglia poderia ter feito com seus diários se tivesse obtido um adiamento da sentença: em sua segunda seção, “Un día en la vida” [“Um dia na vida”], o autor ordena as situações narradas ao longo de vários anos em u...

O espírito dos meus pais continua a subir na chuva, de Patricio Pron

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Por Pedro Fernandes “Enquanto eu tentava deixar para trás as fotografias que tinha acabado de ver, compreendi pela primeira vez que todos nós, filhos dos jovens da década de 1970, teríamos que desvendar o passado de nossos pais como se fôssemos detetives, e que nossas descobertas seriam parecidas demais com um romance policial que preferiríamos nunca ter comprado, mas também percebi que não havia forma de contar a história deles à maneira do gênero policial ou, para ser mais preciso, que contá-la dessa maneira seria trair suas intenções e suas lutas, já que narrar a história deles como se fosse uma história de detetive apenas contribuiria para ratificar a existência de um sistema de gêneros, ou seja, de uma convenção, e que isso seria trair seus esforços, que tentaram desafiar essas convenções, tanto as convenções sociais como seus pálidos reflexos na literatura.” Essa reflexão do narrador de Patricio Pron é importantíssima para a compreensão de O espírito dos meus p...

Se tens tempo suficiente

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Patricio Pron 'Study for don’t cross the bridge before you get to the river' (2008), obra de Francis Alÿ Jean-Jacques Rousseau caminhava para pensar; Friedrich Nietzsche o fazia pelas montanhas e para poder escrever; Martin Heidegger passeava pela Floresta Negra para experimentar o “ser” de uma forma mais autêntica que a vida em sociedade lhe permitia (e também para coletar cogumelos); Immanuel Kant atravessava Königsberg (a atual Kaliningrado) sempre às cinco da tarde, sozinho, respirando profundamente pelo nariz (considerava que fazê-lo pela boca ao ar livre poderia prejudicar a saúde), sempre pelas mesma ruas e vestindo exatamente o mesmo que no dia anterior. Robert Louis Stevenson, Walt Whitman, William Wordsworth, Ezra Pound, Jack Kerouac, Patrick Leigh Fermor, Bruce Chatwin, Régis Debray, Gary Snyder, Patti Smith e Sophie Calle foram ou são grandes caminhantes (e escreveram sobre isso) e alguns dos textos fundamentais de várias culturas (a Epopeia de Gil...

Sepulcros de vaqueiros: uma oportunidade única e fascinante

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Por Patricio Pron Rigoberto Belano, narrador de “Pátria” (o primeiro dos três textos que compõem Sepulcros de vaqueros [Sepulcros de vaqueiros]), recorda que quando era criança brincava com seus irmãos a “converter os momentos felizes em estátuas”; e enquanto foge de Santiago do Chile no carro de Patricia Arancibia, se descobre desejando que “alguém, um anjo que nos observasse do céu, convertesse [em estátua] a velocidade e a fuga”. Poucas literaturas são mais relutantes a adotar uma rigidez estatuária que a do seu autor, Roberto Bolaño; catorze anos depois de sua morte, essa obra nem sequer pode ser dada como concluída: de 1996 a 2003 (seus anos de maior visibilidade), Bolaño publicou 11 livros; desde esta última data até a atualidade publicaram 10, entre eles 4 imprescindíveis: 2666 (2004), A universidade desconhecida (2007), As agruras do verdadeiro tira e Bolaño por sí mismo [Bolaño por ele mesmo] (estes dois últimos de 2011). A existência de outros inéditos cuj...

Como alguém se transforma num escritor? Dez notas sobre o primeiro livro

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Por Patricio Pron Leonid Pasternak, A paixão da criação . 1 “O primeiro livro é o único que importa, tem a forma de um ritual de iniciação, uma passagem, uma travessia de um lado para outro”, disse Ricardo Piglia. Sua história, contada em Anos de formação marcou-se por essa frase de 1967, quando escreveu Jaulario (que o autor e o editor rebatizaram no mesmo ano, para publicação, como A invasão ), é retrospectiva, vaga de entusiasmos transitórios, extrai sentido de assuntos pouco relevantes no momento em que tiveram lugar mas que se tornaram significativos com a passagem do tempo (uma mudança, uma conversa, um rumor nos corredores de uma universidade), reúne vislumbres do escritor que Pigilia será mas que, no momento da escrita não é ainda (embora na leitura, sim, certamente); aceita, por fim, a nula relevância da primeira publicação para qualquer um que ainda não seja um autor, mas admite a emoção gerada por esta: “A importância do assunto é meramente privada, ...

Flannery O’Connor se molha

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Por Patricio Pron “Sou dessas pessoas que antes morreriam por sua religião que tomar um banho por ela”, escreveu Flannery O’Connor a uma amiga: não falava de um banho qualquer, mas da imersão nas águas da Cave Spring Lourdes, a que os enfermos de todo mundo atribuem propriedades curativas desde quando, segundo a lenda, a Virgem apareceu ali a uma jovem em 1858. O’Connor tinha trinta e três anos no momento de realizar sua viagem; apesar de jovem, já era considerada uma das escritoras estadunidenses mais importantes de sua época graças principalmente a dois livros: o romance Sangue sábio , publicado em 1952, e os contos de Um homem bom é difícil de encontrar (1955). O primeiro é a história de Hazel Motes, um sobrevivente da Segunda Guerra Mundial que, depois de perder a fé em detrimento da experiência, a recupera fundando uma seita, a Igreja Sem Cristo. Os outros textos estão povoados por assassinos piedosos, falsos pastores, aleijados, idiotas, vendedores de bíblias, ceg...

Elizabeth Bishop: tinha um caju no meio do caminho

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Por Patricio Pron  Elizabet Bishop com seu gato Tobias, Rio de Janeiro. Sabe-se que não existem acontecimentos triviais, ou melhor dizendo, que mesmo os que poderíamos considerar triviais têm consequências enormes e de uma duração prolongada. Se Elizabeth Bishop não sabia, descobriu pouco depois de completar 40 anos, quando, durante uma escala no Rio de Janeiro num percurso de viagem, a poeta estadunidense mordeu um caju e sofreu uma reação alérgica que lhe deformou o rosto e esteve a ponto de sofrer uma asfixia. “É uma fruta sinistra. Ninguém deveria combinar fruto e castanha dessa forma indecente”, escreveu mais tarde. Fez do Brasil, porque nunca continuou viajando; e ficou nesse país durante 20 anos. Bishop não estava só quando padeceu da crise alérgica, o que foi uma sorte não só para ela: estava acompanhada de Carlota de Macedo Soares, Lota, uma herdeira que havia conhecido havia pouco tempo em Nova York. Era uma personagem singular: uma mulher rica, interessada e...