Elizabeth Bishop: tinha um caju no meio do caminho

Por Patricio Pron 

Elizabet Bishop com seu gato Tobias, Rio de Janeiro.


Sabe-se que não existem acontecimentos triviais, ou melhor dizendo, que mesmo os que poderíamos considerar triviais têm consequências enormes e de uma duração prolongada. Se Elizabeth Bishop não sabia, descobriu pouco depois de completar 40 anos, quando, durante uma escala no Rio de Janeiro num percurso de viagem, a poeta estadunidense mordeu um caju e sofreu uma reação alérgica que lhe deformou o rosto e esteve a ponto de sofrer uma asfixia. “É uma fruta sinistra. Ninguém deveria combinar fruto e castanha dessa forma indecente”, escreveu mais tarde. Fez do Brasil, porque nunca continuou viajando; e ficou nesse país durante 20 anos.

Bishop não estava só quando padeceu da crise alérgica, o que foi uma sorte não só para ela: estava acompanhada de Carlota de Macedo Soares, Lota, uma herdeira que havia conhecido havia pouco tempo em Nova York. Era uma personagem singular: uma mulher rica, interessada em arte e de uma inteligência brilhante, que havia aprendido por conta própria a desenhar casas consideradas ainda hoje trabalhos irretocáveis de sensibilidade moderna; a mesma que permeia sua grande contribuição à paisagem do Rio de Janeiro, o Aterro do Flamengo, desde à bela baia de Guanabara.

Faltavam ainda 14 anos para a inauguração do parque (em 1965) quando Lota cuidava em seu sótão no bairro do Leme a poeta doente. Naturalmente, se apaixonaram. Bishop e ela estiveram juntas pelos 15 anos seguintes, numa história de amor que incluiu, junto aos previsíveis momentos de intimidade erótica e convivência, uma atitude desafiadora frente à sociedade carioca, brigas, infidelidades, um cada vez não dissimulado envolvimento com o álcool, rupturas e reconciliações e, no fim, a separação definitiva, segunda de um breve reencontro em Nova York em 1967: não se sabe se por vontade própria ou involuntariamente, Lota tomou uma dose mortal de soníferos no apartamento que sua antiga amante ocupava em Manhatthan no mesmo dia em que se reencontraram e morreu em seus braços.

Elizabeth Bishop havia nascido em 1911 e obtido o Prêmio Pulitzer de Poesia em 1956, numa idade relativamente inusual para um gênero como a poesia, onde (o comum) os melhores frutos se colhem ao fim do caminho. Algo na poesia de Bishop se inclinava para a urgência (a atenção ao detalhe em sua obra permite imaginá-la como alguém cujo olhar nunca estava quieto), e ela própria tendia a não permanecer parada durante muito tempo mesmo antes de sua chegada ao Brasil: a morte de seu pai a reclusão de sua mãe num manicômio quando era ainda criança a converteram em alguém habituado a afastar-se com frequência do fio da compaixão e a sorte de seus parentes. Antes de ingressa na universidade já havia vivido nos estados de Massachusetts e Nova York na província canadense de Nova Escócia, pois foi a maioridade e o acesso à herança o que lhe deu impulso para o seu período de maior itinerância.

Elizabeth Bishop em Ouro Preto.

Bishop viveu alguns anos na França, depois na Espanha e Marrocos, Key West (Flórida) e em Washington. “O simples fato de haver tido minha quota de viagens antes que os poetas que são mais ou menos meus contemporâneos, parece haver-me colocado numa geração diferente”, escreveu, do Brasil, ao poeta Randall Jarrell. Nesse país, também viajou: viu como Brasília surgia em meio à selva, atravessou o sertão, percorreu a Bahia e o norte do país. Seu poema mais famoso sobre o Brasil não surgiu de uma viagem: “O homem do rio” é o produto de uma imersão precoce nos livros e nos mapas do Rio Amazonas (que a autor só conheceu tempos depois, quando em 1960, desceu por ele até sua desembocadura), mas não de uma experiência direta que, em algum sentido, prefigura. Como se Bishop houvesse escrito esse texto para não viajar ou para demorar a partida.

Num ensaio excepcional sobre aqueles escritores que, por diferentes circunstâncias, caíram encalhados no Rio [N. T. Varados en Río], Javier Montes afirma: “Ao longo de suas viagens, Bishop não consegue resolver (ou melhor, prefere não fazê-lo) uma contradição e um desenraizamento que é justamente a raiz de seu trabalho”. Bishop disse isso de outro modo no seu belíssimo “Questões de viagem”, onde se perguntou: “Devíamos ter ficado em casa pensando nas terras daqui? / [...] Será falta de imaginação o que nos faz procurar / lugares imaginados tão longe do lar?” Todas as viagens levantam as mesmas perguntas, mas no caso de Elizabeth Bishop estas são puramente retóricas, porque a escritora sim sabia onde estava sua casa: ali onde uma fruta desconhecida havia feito possível a morte, o amor, o fim circunstancial da viagem.

Ligações a esta post:
>>> Um filme sobre o amor de Elizabeth Bishop e Lota.

* Este texto é uma tradução livre para "Elizabeth Bishop prueba el anacardo" publicado em El país.


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