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Segredos e sementes: O olho mais azul, de Toni Morrison

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Por Guilherme Mazzafera “onde as crianças brincam existe um segredo enterrado” (Walter Benjamin, “Chichleuchlauchra: Sobre uma cartilha”) O primeiro romance de Toni Morrison, O olho mais azul (1970), relançado recentemente pela Companhia das Letras em tradução de Manoel Paulo Ferreira, debruça-se em sua própria concepção sobre um problema dificultoso: como uma escritora negra pode falar de pessoas e assuntos negros valendo-se de uma forma concebida para adequar-se ao indivíduo branco, burguês, livre tanto na esfera da produção (o romancista) quanto na de representação (os personagens)? Em face de tal pergunta, recorramos ao didático Marxismo e crítica literária, em que Terry Eagleton fornece uma importante observação sobre o imbricamento profuso entre forma literária e ideologia: “Ao selecionar uma forma, portanto, o escritor descobre que sua escolha já está limitada ideologicamente. Ele pode combinar e transmutar as formas disponíveis em uma tradição lit...

Boletim Letras 360º #373

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DO EDITOR 1. Nesses dias de confinamento social, os que acompanham muito de perto o universo dos livros, terá encontrado uma programação quase inalcançável de conversas virtuais desenvolvidas por editoras. Particularmente, não acompanhei nenhuma – exceto uma entrada ou outra nas transmissões. Isso porque os assuntos quase sempre estão restritos aos bastidores de trabalho dos profissionais da edição, assunto pelo qual não guardo qualquer interesse, e porque o trabalho aqui segue em alta. Mas, é uma oportunidade de ouro para que os leitores possam compreender a dinâmica de realização de um livro, além, é claro, sobre a extensão do mercado editorial e como os segmentos são afetados pelas imposições de novos hábitos, o que, por sua vez, permite rever aquela compreensão que falta a alguns de pensar fora do seu próprio conforto e bem-estar na aquisição do livro, quando escolhe vias duvidosas ou ainda de menor custo para se ter sempre mais. E é, para quem procura, uma alternativa de dis...

A pedagogia libertadora de bell hooks

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Por Rafael Kafka bell hooks é um caso ímpar de intelectual engajada que vive uma profunda intersecção de militâncias políticas. Os ensaios de Ensinando a transgredir  são uma forma bem interessante de conhecer o seu pensamento multifacetado, pois por meio de uma escrita repleta de elementos autobiográficos hooks expõe suas visões políticas acerca de temas como o feminismo e a política identitária. O fio comum desses ensaios é a pedagogia libertadora e em diversos pontos dos textos a autora não esconde o débito tido com o pensador brasileiro Paulo Freire, que em seu exílio também trabalhou por alguns anos nos Estados Unidos. Os ensaios contidos nessa coletânea, aliás, podem também ser considerados um pequeno tributo à obra de Freire. A sua pedagogia é vista pela autora como a base fundamental para o desenvolvimento de um conjunto de metodologias as quais favoreçam o pensamento crítico por meio do uso dos saberes prévios dos estudantes. A partir de então é possível se...

Utz, de Bruce Chatwin

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Por Pedro Fernandes Utz é um romance que se insere na rica tradição de estudo da personagem. Um pesquisador interessado pelo Renascimento do Norte visita a Tchecoslováquia em 1967 com a incumbência de escrever um artigo sobre a paixão do imperador Rodolfo II por colecionar objetos exóticos. O trabalho resulta num fracasso. E este se distingue, por sua vez, como o que se narra no romance. Mas, o leitor sossegue que não estará outra vez diante do escritor em crise, tampouco da narrativa que se deixa mostrar em sua intimidade. O outro caminho encontrado por esse pesquisador é ainda mais interessante porque parece servir ao seu interesse original: a personagem encontrada permite-lhe o relato sobre um colecionador compulsivo e por ele uma rica viagem pelo imaginário da Europa Central, sobretudo por entre a tradição da porcelana sem, contudo, deixar de evidenciar os imperativos das sucessivas tentativas de poder que cercearam essa parte do velho continente. Quer dizer, o r...

Seberg contra todos, de Benedict Andrews

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Por Pablo Augusto-Silva Não sei se o crítico de cinema de nossa época considerará  Seberg contra todos ¹ (2020) um grande filme, menos ainda quanto à atuação da atriz protagonista, a americana Kristen Stewart (1990-), porque li algumas críticas afirmando que, até hoje, ela só fez filmes que ainda não exigiram muito de seu muito talento.   Mas resolvi compartilhar contigo o que penso sobre a obra porque minha intuição diz que é um daqueles filmes com potencial de ser agraciado pela justiça do deus tempo, que se consagram com o passar dos anos, além de discordar das opiniões negativas do trabalho dela; neste filme é possível ver uma artista séria, processando sua maturidade cênica e dando o melhor de si na construção da personagem. Eis a sinopse oficial: "Paris, 1968. A atriz Jean Seberg (Kristen Stewart) está no auge de sua popularidade, graças ao sucesso de vários filmes rodados na França. Ao voltar para os EUA, ela logo se envolve com o ativista de direitos c...

O amor, saída para o tempo

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 P or Tiago D. Oliveira Só quando terminei a leitura percebi os protestos vindos das panelas em vários prédios ao meu redor. Voltei para o livro, ainda sobre a mesa, e entendi – está tudo ali. Assim, entre a literatura e a realidade, comecei a digerir os versos de O nome do mapa e outros mitos de um tempo chamado aflição , novo livro de Clarissa Macedo, que ainda me levou para deambulações que me desconectaram permitindo-me imaginar como seria se tudo fosse diferente.  Depois de polarizar, calmamente, preenchi a mão direita contra o peito, guardei-me em uma respiração mais profunda – faz anos também que o cheiro do peixe invade as paredes, o catre, os sonhos, /[a minha oração . (“Dança”) – para uma aflição mapeada, desmitificada e combatida com a voz da poeta empunhada – eu continuo: persisto,/ de anzol gasto,/ no exercício de dar de comer à mãe, às filhas, às irmãs ;(“Dança”) – e entendo que a voz dessa mulher, que é filha, irmã e leitora de seu espaço/ tempo, é o...