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Sobre um retrato de Machado de Assis

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Por Pedro Fernandes Não faz muito tempo e passamos por uma intervenção proposta pela Faculdade Zumbi dos Palmares que chamava a atenção para um Machado de Assis preto. A ideia sob o título de “Machado de Assis real” visava, segundo palavras do texto então divulgado, constituir uma “errata histórica feita para impedir que o racismo na literatura seja perpetuado”. Os manifestantes chamavam a atenção para um Machado de Assis negado pela elite intelectual do país com tentativas de branqueamento dos registros fotográficos sobre o escritor. O chamado apresentava uma revisão em cores ( veja aqui ) de uma fototipia do autor de Memórias póstumas de Brás Cubas realizada por volta de 1892 de autoria atribuída a Juan Gutierrez (imagem). 1   Passou-se um ano da ideia e se considerarmos a sua repercussão parece que arrefeceu os ânimos de uma discussão antiga. Como toda imagem de apelo emocional, o manifesto logo se converteu viral nas redes sociais, depois alcançou projeção em vários jornais ...

O que teríamos feito sem Ursula K. Le Guin?

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Por Laura Fernández   Ursula K. Le Guin nunca quis ser escritora. Mas foi, sem mais delongas. “Não me lembro de ter feito outra coisa senão escrever”, respondia a qualquer pessoa interessada quando deu o passo definitivo. Desde criança, escrevia. Enviou seu primeiro conto para uma revista quando tinha 11 anos. Recebeu uma carta de recusa. Demorou mais dez anos para enviar qualquer outra coisa a qualquer lugar novamente. E o que conseguiu? Outra carta de rejeição. “Você escreve bem”, dizia a carta, “mas não sabemos exatamente o que você faz.” A época? Meados da década de 1950, quando ainda não existia uma ficção científica e literatura de fantasia que fosse considerada como tal. Na ficção científica reinava a chamada hard sci-fi , ou seja, aquela que tendia a dar detalhes técnicos, a justificar, em certo sentido, o papel da ciência numa época em que ainda ninguém confiava excessivamente nela, popularmente falando. No que diz respeito à Literatura com maiúsculas, esta era feita pelo ...

Júlio Verne: uma viagem ao coração do mar

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Por Juan José Rodríguez O capitão Nemo observa um polvo gigante da cabine do Nautilus. Gravura de Alphonse de Neuville e Edouard Riou, 1870. O quanto alguém tão peculiar como Júlio Verne ainda incendeia em nossas mentes? Ele não foi um Charles Dickens, um Balzac ou muito menos um Dostoiévski, mas toda a sua obra é uma coluna fundamental quando se trata de explicar o grande impacto da literatura nas sociedades modernas. Sem a sua presença não haveria marcos monumentais como a divulgação lúdica da ciência, a cultura do entretenimento, o gosto pelas viagens e o respeito sagrado pelas regiões desconhecidas da natureza. Júlio Verne ainda nos cativa com seu ar de Art Nouveau ― os especialistas em cultura francesa diriam Segundo Império ― com sua voz antiga de antiquário e sua cenografia de espaços abertos em horizontes desconhecidos. Sua prosa de folhetim, planejada para manter em suspense um leitor muito mais cavalheiresco do que o atual, hoje padece de digressões doutorais, pois o desej...

Jacques Roumain no céu do Caribe

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Por Pedro de la Hoz Jacques Roumain e Nicolás Guillén. Arquivo: Fundação Guillén   Talvez pela intuição de que logo partiria para sempre, a última vez que Jacques Roumain viu Nicolás Guillén em Havana deixou com o poeta cubano um exemplar do romance que marcaria sua grande estatura literária junto com a tradução francesa de alguns versos do amigo. Mas também, por essa mesma intuição, ele quis levar consigo uma lembrança. “Nicolás, se você me convida para almoçar, qualquer prato é bom, desde que tenha um pouco de inhame.”   Deus sabe, ou melhor, Papá Legbá, se para o haitiano aquele pedaço de alimento da terra que alimentava escravos e quilombolas, libertos e operários de seu país e do nosso foi, desde sua profunda condição antilhana, um gatilho de imaginação, como a famosa madeleine foi para Proust.   A verdade é que Roumain morreu pouco depois, exatamente em agosto de 1944, aos 37 anos, para entrar definitivamente no panteão daqueles seres que se recusam a morrer. Ainda...

Boletim Letras 360º #397

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DO EDITOR 1. Abro este boletim registrando a continuidade de uma marca que foi até então alcançada sempre esporadicamente: o número de visitas diárias ao Letras se manteve nas três últimas semanas sempre acima dos dois mil acessos, chegando a três, quatro mil visitas por dia.   2. O motivo das chegadas é sempre desconhecido sobretudo porque o blog deixou de divulgar as posts diárias no Facebook, restando apenas ao pequeno público de quase dois mil leitores que acompanha através do Twitter. Será o algoritmo dessa rede mais sadio que aquele? Pesquisar.   3. Este registro é para, além de entender a solidão na grande multidão. É para reafirmar os agradecimentos pela sua chegada, leitor. Sempre que possível interaja. É uma maneira de aliviar o abismo intransponível aberto entre o lado de cá e o daí.   4. Esta é a nova edição do Boletim Letras 360º, uma post semanal criada há 394 semanas, desde quando os algoritmos do Facebook passaram a trair nós todos. Reúnem-se aqui todas...

Os diários de Sylvia Plath: uma leitura tortuosa

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Por Rafael Kafka Sylvia Plath em registro do amigo Gordon Lameyer, 1953. Diários de autores famosos são obras que nos servem para indicar diretrizes de investigação de processos literários os quais se conectam às existências dos escritores por nós analisados. Obviamente, não defendo aqui uma visão do processo literário presa aos elementos biográficos de uma dada existência, o que seria empobrecer demais a literatura. Mas em alguns contextos, vida e obra estão tão conectados que é impossível não se pensar em mecanismos de entendimento mútuo. Sylvia Plath é um exemplo perfeito dessa situação. A autora cometeu suicídio muito jovem e é autora de um romance muito interessante chamado A redoma de vidro , obra que revela muito a dimensão de abuso por ela sofrida de um ambiente patriarcal brutal. Na figura de Esther, Plath conta a história de uma jovem moça mutilada entre o sonho de ter uma carreira bem sucedida enquanto contém dúvidas sobre o futuro ao lado de uma família tradicional. E...