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Saul Bellow em Boston

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Por Jeffrey Mehlman   Saul Bellow. Foto: Giovanni Giovannetti   Para o mundo ele era a encarnação de Chicago, uma sensibilidade filosófica cuja linguagem preferida era a indiferença urbana e das ruas. Seu amigo Allan Bloom afirmava que ele era para Chicago o que Balzac era para Paris. E, em certo sentido, Chicago era para ele o oposto de Paris. Havia viajado para a capital francesa em 1948 na esperança de escrever o que era conhecido em seu ambiente pela sigla “G.N.A.”: o “grande romance americano”. E ele mais ou menos fez com As aventuras de Augie March . Mas nas margens do Sena, a inspiração lhe veio como uma aparição que viera visitá-lo do Meio Oeste estadunidense. De repente, ele percebeu que a voz de seu amigo esquecido Chucky, de Chicago, um “charlatão que não parava de anunciar que tinha algum super plano”, seria a voz de seu romance. E a voz não parava. “Tudo o que eu tinha que fazer era ficar recolhendo-a a baldes.”   Por mais nativo de Chicago que parecesse...

Dez livros já imprescindíveis do século XXI

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© Erika Lee   Para que qualquer obra literária se torne um clássico é necessário a passagem do tempo. É sempre o argumento utilizado para demarcar os limites do termo. A questão, entretanto, não se resolve de maneira tão simples porque outras muitas variáveis se implicam no conceito. Talvez, mais que o tempo, possamos pensar noutro critério comum desde quando se consolida o ideal modernista — o da inovação. O que determinada obra apresenta de qualidade estética em relação aos seus antecedentes, ainda que, é claro, todo objeto artístico deve ser lido num arco que abranja seu lugar no interior do seu contexto vigente.   Voltemos ao tempo. Sobre este, paira outra interrogação que é a de quanto tempo é necessário para um livro virar clássico . Como medir uma grandeza que se faz relativa, a depender de como se observa. Quatro, cinco, seis séculos é muito quando colocado nas nossas limitadas possibilidades de existência. Ante a eternidade — essa dimensão que só conseguimos ver...

O silêncio das estrelas

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Por Tiago D. Oliveira Fiquei me perguntando sobre o que seria o novo livro do Rodrigo Garcia Lopes, O enigma das ondas , e me deparei com um grande leque de alcances. A sensação primeira foi a de adentrar em uma biblioteca que se desenha no enquadramento de uma página, funda surpresa que convoca para um mergulho onde a poesia polariza em pontos de partida e chegada reinventando-se em toques múltiplos contemporâneos ou não – eis o lirismo de um poeta que reage ao mundo, eis um mundo como barro nas mãos sobre o papel provocando também reflexões. Vejo seus versos como a imagem do leitor. Leio suas palavras, que são leituras mundanas. Nós, dois leitores em busca de entendimento – “uma outra imagem, móvel, vazia (apta a tomar não importa quais contornos) que nunca é mais do que o lugar de seu efeito: lá onde se entrevê a morte da linguagem” , afirmou um dia Roland Barthes – sendo a primeira margem a dada pelo texto e a segunda, construída. Estamos os dois, lado a lado, unificados pelo livro...

1922: o ano 1 de Ulysses

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Por Christopher Domínguez Michael   Artistas e intelectuais, provavelmente, nunca estiveram antes tão conscientes do início de uma nova era como naquele 1922 que agora celebramos. Foi notoriamente previsto por Virginia Woolf em “Character in fiction” (1924), uma reflexão sobre o novo romance onde ela afirmou, de forma vaga mas enfática, que “por volta de dezembro de 1910 o caráter humano mudou”, segundo nos lembra Kevin Jackson em Constellation of genius. 1922: Modernism year one . 1 Mas foi Ezra Pound antecipou, em sua também conhecida e célebre carta ao crítico H. L. Mencken de 22 de março de 1922: “A era cristã terminou à meia-noite de 29 a 30 de outubro do ano passado. Agora você está no ano I p. s. U [post scriptum Ulysses ], se isso serve de consolo.” 2 O estravagante Mencken, cujo nietzscheanismo outrora provocador começava a sair de moda, certamente resmungou. Finalmente, em Not under forty (1936), Willa Cather o colocará mais claramente: “O mundo se dividiu em dois em 1...

Boletim Letras 360º #466

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DO EDITOR   1. Caro leitor, as publicações diárias nesta página retornam na próxima segunda-feira, 24 de janeiro de 2022. Estamos preparados para continuar mais um ano juntos, o 15.º, lendo, comentando, discutindo livros de significação para nós e temas ligados ao literário e recomendando leituras. Tudo é deveras desafiador no atual tempo, muito pior, diria, que noutros anos, mas, se estamos vivos, continuemos com os propósitos que nos animam.   2. Reitero os constantes agradecimentos ao leitor que acompanha o Letras há muito e o que chega agora. Sua colaboração, lendo, comentando, compartilhando, expandindo os pequenos horizontes nossos é o mais importante. Por isso, todo o nosso obrigado! Mario Quintana. Foto: Eneida Serrano.   LANÇAMENTOS   Samuel Beckett em alta. Livro reúne três peças de que compõem sua obra tardia .   Vozes femininas — Não eu, Passos, Cadência  reúne três peças de Samuel Beckett que compõem a obra tardia deste que é um dos mais impor...

Reflexos da História: dualismo e polifonia na literatura judaica moderna

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Por  Guilherme de Almeida Gesso Don Copeland.   1. O mundo polarizado   Toda a organização de O Homenzinho (1864), estreia literária de Mêndele Môikher Sfórim, baseia-se no conflito entre os valores atrasados do shtetl russo, oriundos de formas medievais de sociabilidade, e as inovações iluministas que vinham sendo engendradas no seio da Europa Ocidental, sobretudo na França e na Alemanha. A bipolaridade Oeste-Leste, descrita por historiadores como Steven Ascheim, na verdade pautava boa parte dos debates internos à comunidade judaica internacional, indecisa quanto a assimilar ou rejeitar as produções ideológicas em nascimento. O objetivo de Mêndele ao escrever seu livro debutante não poderia ser mais claro: colocar em cena os termos deste conflito para então apresentar um posicionamento político reformista, cujo pressuposto era a necessidade imperativa de superar a paralisia mental e a pobreza material das comunidades dos Ostjuden . Conforme se vê pelo desenvolvimento d...