1922: o ano 1 de Ulysses

Por Christopher Domínguez Michael




 
Artistas e intelectuais, provavelmente, nunca estiveram antes tão conscientes do início de uma nova era como naquele 1922 que agora celebramos. Foi notoriamente previsto por Virginia Woolf em “Character in fiction” (1924), uma reflexão sobre o novo romance onde ela afirmou, de forma vaga mas enfática, que “por volta de dezembro de 1910 o caráter humano mudou”, segundo nos lembra Kevin Jackson em Constellation of genius. 1922: Modernism year one.1 Mas foi Ezra Pound antecipou, em sua também conhecida e célebre carta ao crítico H. L. Mencken de 22 de março de 1922: “A era cristã terminou à meia-noite de 29 a 30 de outubro do ano passado. Agora você está no ano I p. s. U [post scriptum Ulysses], se isso serve de consolo.”2 O estravagante Mencken, cujo nietzscheanismo outrora provocador começava a sair de moda, certamente resmungou. Finalmente, em Not under forty (1936), Willa Cather o colocará mais claramente: “O mundo se dividiu em dois em 1922”.3
 
Tanto na cronologia anotada de Jackson (muito informativa) quanto no ensaio The world broke in two. Virginia Woolf, T. S. Eliot, D. H. Lawrence, E. M. Forster, and the year that changed literature, de Bill Goldstein (mais completo), entre os muitos livros que surgiram por volta de 1922, a ruptura “modernista”, para usar do conceito anglo-saxão, é mais ou menos o mesmo. Nesse ano apareceram Ulysses (o autor recebeu o primeiro exemplar em uma data auspiciosa: 2/2/22) e A terra devastada, e James Joyce e T. S. Eliot, seus autores, ficaram famosos, apoiados por Pound como “il miglior fabbro” e com Virginia Woolf (ela mesma publicando O quarto de Jacob em 1922) como exigente diretora de consciência devotamente auxiliada por seu marido Leonard. Se o grupo protagonista de 1922 é o de Bloomsbury, uma extensão urbana — segundo Goldstein4 — das irmandades universitárias de Oxbridge, vários dos atores se definem contra este, como o errante D. H. Lawrence, farto de si mesmo em sua “peregrinação selvagem” (de Taormina à Austrália, passando pela ilha de Ceilão e Taos, Novo México), que naquele ano publicou A vara de Aarão e Inglaterra, minha Inglaterra.
 
Do outro lado do Canal da Mancha, em Paris, fala-se apenas sobre Marcel Proust, que morreu na madrugada de 18 de novembro daquele ano, em súbito olor de santidade graças à sua “fama instantânea”. Quem em sua juventude foi desprezado pelo núcleo duro da Nouvelle Revue Française (NRF) como um rapazote frívolo (além da escandalosa primeira recusa editorial de André Gide) será enterrado com honras militares como Cavaleiro da Legião de Honra. Em 2 de maio havia publicado as primeiras páginas de Sodoma e Gomorra, a parte central de Em busca do tempo perdido (1913-1927), obra cujas primeiras provas serão corrigidas por um joveníssimo André Breton. Ciente dos elogios vindos de Londres, Proust não se digna a escrever a Eliot, que lhe pedira uma contribuição para The Criterion. “Estou cansado demais para isso”, disse Proust em julho.
 
E. M. Forster — conhecido apenas como Morgan por seus amigos — pode ser adicionado ao elenco, que também em 1922 preparava seu retorno ao romance que ocorre dois anos depois com Uma passagem para a Índia. Forster era amigo íntimo de Woolf (embora ela sentisse desgosto dos homossexuais quando chegavam à idade de Morgan, o autor póstumo de Maurice) e apaixonado — como Virginia — por Proust. E Forster, que será o sobrevivente da geração até 1970, renegará Joyce (“péssimo escritor”, dirá em 1959)5, cujo encontro com Proust em Paris é celebérrimo por ser impreciso e insípido: o inglês do francês, embora tenha traduzido John Ruskin com a ajuda de sua mãe, sempre foi pobre e o irlandês, a caminho da cegueira, cultivava de preferência o mais perfeito de seus sentidos: a audição. Woolf, por outro lado, será a primeira grande discípula de Proust fora da França e talvez a mais importante. Ela o admira até por sua natureza hipocondríaca. O crítico de arte Clive Bell, seu cunhado e marido de Vanessa, a pintora de Bloomsbury, não se acanha em incluir, ao lado de Proust, Igor Stravinsky e Pablo Picasso, Joyce entre as estrelas do século, contra a opinião da autora de Orlando.
 
Os ibero-americanos, por sua vez, celebram César Vallejo, que recebe em 22 de outubro os primeiros modestos duzentos exemplares de Trilce, um dos poemas centrais do século, a contribuição em espanhol para aquele annus mirabilis, que teve em São Paulo sua Semana de Arte Moderna organizado entre 13 e 17 de fevereiro por Emiliano di Cavalcanti e Mário de Andrade, para juntar ao século o português da América. Dias depois, em Granada, Federico García Lorca faz sua primeira leitura pública do Cante jondo, aos vinte e quatro anos. Jackson, forçado pela natureza cronológica de seu livro, menciona de passagem o poeta peruano e o festim vanguardista brasileiro, enquanto a obra decididamente anglocêntrica de Goldstein não.
 
Naquele ano de 1922 marcado pela difusão mundial do rádio e a erupção das flappers, pela enfermidade progressiva e incurável de Lênin e o assalto ao poder por Stálin que findará com a fundação da União Soviética em dezembro, a unanimidade moderna não existe. Se Eliot e Proust despertam admiração generalizada, Ulysses é uma dor de cabeça para Virginia, que está cortando as páginas da edição parisiense de Sylvia Beach para que Leonard possa lê-la como se fosse uma provação. Os Woolf se recusaram a publicar o livro na Hogarth Press, sua editora privada. Enquanto a tumba de Tutancâmon é descoberta, os preconceitos de classe de Virginia, seu puritanismo, vêm à tona contra Joyce, que ela considerava um bêbado irlandês, quando lhe atribuiu a má consciência de saber que negar Ulysses era negar o quão moderna ela era, a primeira a propor todo o descaramento.
 
Se Pound acaba desprezando o romance de Joyce em particular, o apoia “politicamente”, comemorando desde Veneza seu sucesso e tornando o irlandês herdeiro de Gustave Flaubert. Nem o poeta de Idaho foi muito paciente com Em busca do tempo perdido, é preciso dizer. Ainda assim, Pound é o primeiro a revelar o “plano homérico” de Joyce, enquanto Joseph Collins, do The New York Times, tem a primícia de declarar Ulysses a grande obra do século XX e em vincular o “fluxo inconsciente” de Joyce a Sigmund Freud. Ao apoio de Edmund Wilson (por sua vez o primeiro leitor e propagandista de Eliot na outra margem) em The New Republic, soma-se a condenação do católico Paul Claudel na NRF e de Wyndham Lewis, outro bad boy do modernism, que chama o romance de “masturbatório”.
 
A reação irlandesa é ambivalente. Com um gosto todo seu, um desconcertado W. B. Yeats confunde a leitura de Joyce com a do romancista vitoriano Anthony Trollope, escrevendo a um amigo em 17 de maio; a imprensa de Dublin ataca o filho pródigo como blasfemo, anti-jesuíta, imoral e obsceno, e se começa a falar de Ulysses como um produto do “bolchevismo cultural”. Mas em 20 de março, Joyce conta ao irmão que recebeu a visita de Desmond FitzGerald, ministro in pectore do novo Estado Livre Irlandês prestes a ser fundado, que compartilha com ele a intenção do governo nacionalista de apresentá-lo para o Prêmio Nobel de Literatura. O emissário terá lido Ulysses? — Joyce parece se perguntar. Embora o dinheiro lhe caísse bem, o romancista teme que a boa-fé ou a desorientação do gentil ministro o faça perder o emprego. Enquanto isso, o escândalo sobre a incorreção de Joyce continua e mesmo entre seus apoiadores há divergências. John Middleton Murry, em 22 de abril, zomba do poliglota francês Valery Larbaud, que aplaude o retorno da Irlanda, com Joyce, à literatura europeia. “Europeu!” grita Murry, o marido de Katherine Mansfield, “se Joyce é o homem com a bomba na mão que vai explodir o que resta da Europa!”6
 
Na longínqua Austrália, Lawrence — o protagonista de The world broke two — aguarda ansiosamente seu exemplar e sua reação, quando finalmente o lê, não é muito diferente daquela de seus odiados do clã de Bloomsbury. Mas ele e Joyce estão sendo perseguidos por obscenidade pelas autoridades estadunidenses, instigadas por John S. Sumner (1876-1971), chefe da Sociedade de Nova York para a Supressão do Vício, assim quem publicará O amante de Lady Chatterley em 1928 tentará ser solidário.7 O outro Lawrence, Thomas Edward, em 7 de maio, termina o primeiro rascunho de Os sete pilares da sabedoria e parece indiferente aos modismos e angústias de Paris e Londres. Edith Wharton continua ativa, prematuramente envelhecida, pertencendo à Belle Époque a despeito de si mesma, e o rabugento H. P. Lovecraft começa a escrever suas histórias de terror, não tão indiferentes ao seu século.
 
O sucesso de Eliot, quem Pound apresentou em janeiro com seu editor estadunidense Horace Liveright, seria impossível nesse tempo. Sua poesia, entretanto, é validada não apenas por seus amigos de vanguarda (embora esta se torne um modernismo conservador, pois o Dr. Johnson a incorporou ao Iluminismo conservador), mas também pelos novos professores formalistas (I. A. Richards à frente e mais tarde por William Empson e F. R. Leavis, este por sua vez um advogado histórico de D. H. Lawrence), pela crítica mais jornalística (Middleton Murry e Richard Aldington) e por um público bastante amplo, leitores de A terra devastada primeiro e de Quatro quartetos depois, que lhe chegam também pelo teatro e assistem, com alguma impaciência, à pregação cristã de Eliot, que trai a sua origem estadunidense (o seu acento tampouco convenceu totalmente o mais ortodoxo dos insulares). Em 6 de dezembro, de Nova York, Gilbert Seldes torna-se o primeiro crítico a encontrar uma afinidade entre Ulysses e A terra devastada, devido à predominância da forma. As relações pessoais, por sua vez, entre Joyce e Eliot nunca foram próximas: o poeta admirava o prosador — o contrário raramente foi manifestado pelo autor de Ulysses.
 
1922 ou o ano da introdução dos coquetéis estadunidenses na Europa, junto com o jazz e a primazia do gosto de Jean Cocteau sobre Paris, quando o compositor Arthur Honegger estreou ao lado de Picasso, os descendentes de Victor Hugo e Georges Auric, enquanto Paul Hindemith, ainda um obscuro violista, em Frankfurt, coloca música a um drama do pintor Oskar Kokoschka, e Gabriele D’Annunzio, pai do fascismo e invasor de Fiume em 1919, cai de uma janela. Franz Kafka escreve O Castelo entre janeiro e setembro; Charlie Chaplin chega, aos 33 anos, ao seu 71º filme; Alfred Hitchcock dirige seu primeiro filme e o filme mais lembrado será Nosferatu, de F. W. Murnau. Georges Bataille assiste à sua primeira tourada em Madrid, a 17 de maio, episódio que terá consequências decisivas para a sua escatologia; Arthur Schnitzler conhece a obra de Freud e, durante vinte e um dias desse ano, Rainer Maria Rilke escreve as Elegias de Duíno e os Sonetos a Orfeu, a serem publicados no ano seguinte.
 
Nessa mudança no humano que Woolf detecta está a primazia do indivíduo que desmantela casamentos e transforma costumes íntimos e mina, graças ao horror da Grande Guerra, a confiança na ciência e no progresso. Juntamente com o entusiasmo pela Revolução Bolchevique — “Lênin kaputt!” grita Stálin, ao saber do segundo ataque cardíaco de seu chefe, que reúne suas últimas forças para defenestrar o georgiano — as superstições se renovam. Ou, se se preferir, a busca incessante pelo outro continua. Se em 20 de dezembro um Thomas Mann insiste em sessões espíritas, dois meses antes é Breton que, graças a René Crevel, se entusiasma com a parapsicologia. Por seu lado, Pound concebe o primeiro sistema de apoio, através de subscrições públicas, à criação artística e, em particular, aos escritores.8
 
1922 ou o ano em que, no meio da primeira fome soviética, a República de Weimar reconheceu o que viria a ser a URSS graças aos ofícios de Walther Rathenau, é também a data de nascimento das obras de Walt Disney, dos primeiros exemplares do Tractatus logico-philosophicus, de Ludwig Wittgenstein, ou quando Ernest Hemingway, correspondente da guerra greco-turca, esculpiu seu estilo enviando telegramas e se antecipando ao Twitter. Em 1º de outubro, aparece a revista de Eliot, The Criterion (com A terra devastada incluída, a resenha de Larbaud sobre Ulysses, algo de Hermann Hesse e de Fiódor Dostoiévski), e é fundado o Instituto para o Desenvolvimento Harmonioso do Homem, do guru G. I. Gurdjieff, uma seita acusada, ao que parece injustamente, de ter deixado morrer ali a brilhante contista Katherine Mansfield, que em seu leito de morte teve de suportar a insultante visita de Lewis, o mais agressivo dos modernos antimodernistas.
 
Em novembro, o poeta Vladimir Maiákovski visita Stravinski em Paris; antes, a 9 de agosto nasce em Coventry, Philip Larkin e aparece The Enormous Room, de E. E. Cummings, um grande e subestimado romance sobre 1914-1918, e Vladimir Nabokov, depois que seu pai constitucionalista liberal é assassinado por um fanático de extrema-direita, começa sua vida literária em Berlim. Depois de elogiar D. H. Lawrence e Joyce, é a vez de Eliot encerrar o ano contando a um amigo, por carta, que Vivienne, sua primeira esposa que o deslumbrou em Londres como uma das moças emancipadas da nova década, estava muito cansada desde o Natal, mas que se sentou à mesa pela primeira vez em cinco dias. Ela lê para o marido, o homem com a máscara da tristeza que abusava do pó facial, trechos do Babbitt de Sinclair Lewis, o indiscutível best-seller de 1922, e Eliot não o considera de todo desprezível.
 
Em 1922, pelo menos Tom Eliot e Virginia Woolf ainda sofriam as consequências como sobreviventes da gripe espanhola.9 E aquele ano foi inesquecível porque a polícia, apreendendo carregamentos de literatura de vanguarda que iam e vinham de um lado ao outro do Atlântico, metia o nariz no Ulysses de James Joyce.
 
Notas
 
1 É frequente que essa citação de Virginia Woolf apareça referida no ensaio “Mr. Bennett and Mrs. Brown” quando pertence a “Character in fiction”, de acordo com a edição de Andrew McNeillie para Essays III, 1919-1924 (Virginia Woolf, Nova York e Londres, Harcourt Brace Jovanovich, 1988, p. 421) cf. Jackson em Constellation of genius. 1922: Modernism year one (p. 3-4).
 
2 Cf. Jackson (p. 3-4); Goldstein, The world broke in two. Virginia Woolf, T. S. Eliot, D. H. Lawrence, E. M. Forster, and the year that changed literature, p. 49 e 294.
 
3 Cf. Goldstein, p. 1.
 
4 Cf. Goldstein, p. 41.
 
5 Cf. Goldstein, p. 247.
 
6 Cf. Jackson, p. 118.
 
7 Cf. Goldstein, p. 250-251.
 
8 Cf. Goldstein, p. 110-111.
 
9 Cf. Goldstein, p. 92.
 
* Este texto é a tradução livre “1922: el año I de Ulises”, publicado aqui, em Letras Libres.

Comentários

AS MAIS LIDAS DA SEMANA

A vegetariana, de Han Kang

Cinco coisas que você precisa saber sobre Cem anos de solidão

Boletim Letras 360º #604

Rio sangue, de Ronaldo Correia de Brito

Boletim Letras 360º #597

16 + 2 romances de formação que devemos ler