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Por que Hamlet foi o primeiro moderno

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Por Beatriz de Sarlo Imagem: Tom Stanley   Leio O duplo , de Dostoiévski, em alemão, para que a distância da língua produza uma espécie de “efeito de distância”. Nunca pude imaginar como um romance estaria escrito em russo. Quando lemos as traduções em espanhol de outras línguas europeias, há sempre uma espécie de pano de fundo onde se projeta um original imaginado desfocado. Mas do russo? Como posso imaginar o russo? Bakhtin diz que Dostoiévski pega um pequeno balconista e o apresenta como autoconsciência. Exatamente. Só que a autoconsciência de Goliadkin está equivocada e, em vez de ser conhecida, é radicalmente desconhecida. Ele é um duplo desconhecido de si mesmo, em um longo monólogo cortado por diálogos onde nada é confiável, pois é justamente alguém que vê seu duplo. Dostoiévski se apega à alucinação do personagem de Gógol.   Neste romance não há “assassinos por amor” e outros assuntos contraditórios que provocaram o olhar condescendente de Borges. Em vez disso, al...

A poesia de T. S. Eliot

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Por Emir Rodríguez Monegal T. S. Eliot. Foto: Ida Kar. Algumas determinantes   Nem os breves dados de sua biografia, nem a enumeração de seus estudos filosóficos, permitem antecipar — ainda que ligeiramente — essa obra poética que transformou profundamente a poesia inglesa na primeira metade do século XX. Também é necessário destacar as influências literárias. Uma das mais óbvias é a da poesia simbolista francesa. (Montgomery Belgion menciona como provável estímulo inicial a leitura do livro The Symbolist Movement in Literature , de Arthur Symons, 1899.) A descoberta de Baudelaire e Rimbaud, de Mallarmé e Verlaine, de Jules Laforgue e Tristan Corbière, anulou em Eliot a segunda influência dos pós-românticos ingleses e lhe permitiu modificar profundamente seu conjunto de valores. Por outro lado, Eliot havia nutrido sua sensibilidade e sua inteligência não apenas lendo os filósofos gregos, mas (também) pelo estudo minucioso dos dramaturgos elisabetanos e jacobinos — Kyd, Marlowe, Web...

Boletim Letras 360º #477

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    DO EDITOR   1. Caro leitor, durante a semana anunciamos em nossas redes e também por aqui quais os três livros do catálogo do grupo Companhia das Letras formam o Kit a ser sorteado no próximo mês de maio entre os apoiadores do Letras .   2. São eles: o romance O avesso da pele , de Jeferson Tenório; o livro de contos Gótico nordestino , de Cristhiano Aguiar; e o romance Ossos secos escrito pelo coletivo formado por Luisa Geisler, Marcelo Ferroni, Natalia Borges Polesso e Samir Machado de Machado.   3. Para se inscrever é simples. Envia R$25 através do PIX blogletras@yahoo.com.br ; finalizada a operação, envia neste mesmo endereço (nosso e-mail) o comprovante. O sorteio está previsto para o dia 29 de maio. A escolha dos títulos desta vez sublinha o Dia da Literatura Brasileira (celebrado no primeiro dia do próximo mês) e a pluralidade de novas vozes de nossa literatura hoje.   4. Outras formas de colaborar com o Letras estão disponíveis aqui . Sua aju...

Ética e espírito absoluto em “Memória de minhas putas tristes”, de Gabriel García Márquez

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Por Wagner Silva Gomes Ilustração: Ginnie Hsu. Memória de minhas putas tristes (2004), como discorre o pesquisador Pedro Fernandes em texto escrito para o blog Letras in.verso e re.verso (ver o final do texto), é um romance envolvido por uma névoa onírica romântica, que percebo acionar do romantismo o seu poder subjetivo em mexer com o imaginário da forma que o homem branco liberal melhor entende, com as visões de liberdade que impulsionaram o Velho Mundo.    O protagonista é um senhor de idade avançada, que mora em um casarão herdado e tem como atividade escrever uma crônica semanal para o jornal local. É quando pensa em escrever sobre o seu aniversário de 90 anos, ao invés de escrever sobre música, como lhe é corrente, que a personagem traz à tona os lapsos temporais de sua memória. Ao dizer que sua crônica será uma glorificação sobre a velhice, sobre a consciência de ser velho, a protagonista nos coloca em dúvida se tudo o que diz realizar no presente em que vive é m...

Carlos Emílio Corrêa Lima, pedaços da história mais longe

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Por Pedro Fernandes   O ego de todo escritor sempre se acomoda penosamente no seu corpo e não importa qual sua estatura. Alguns poucos disfarçam isso na modéstia outros estendem-no para o domínio do gênio, outra matéria indissociável de um grupo de criadores em contínua extinção (ou sempre foram raros?). Ora, quem conheceu alguma vez Carlos Emílio Corrêa Lima encontrou nele esses elementos que oferecem apenas duas possibilidades de convívio: a sedução ou o distanciamento. Para os tempos que correm, é mais comum a iniciativa segunda, mesmo porque, é esta uma era de falsos escritores e de gente falsa, se pensarmos no esforço de muitos em figurar na calçada da fama ou desses ou outro tanto que se magoa com um dedo de sinceridade a mais levantado pela crítica, para citar dois fenômenos dos recorrentes na nossa confraria.   Sempre se diz que os escritores do nosso tempo estão mais livres porque não submetidos ao estatuto dos agrupamentos, o que não é verdade. Os medíocres, por exem...

O acontecimento: meu corpo, minha luta

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Por Cristina Aparicio   No dia 5 de abril de 1971, a revista francesa Le Nouvel Observateur publicava em suas páginas um manifesto, escrito por Simone de Beauvoir, no qual trezentas e quarenta e três mulheres (incluindo figuras como Jeanne Moreau, Marguerite Duras, Agnès Varda ou Catherine Deneuve) declaravam ter feito um aborto. O contexto é importante: não foi até a Lei Veil de 1975, quatro anos depois, quando o país francês descriminalizou o aborto induzido, que até então era uma prática ilegal. A assinatura do referido manifesto implicou o reconhecimento público de um crime classificado no código penal francês, que poderia levar à pena de prisão para todas aquelas mulheres. As reações foram imediatas: uma semana depois, a revista satírica Charlie Hebdo ecoou em sua capa uma ilustração que apontava com firmeza um dos aspectos que não costuma ser apontado: “Quem engravidou as trezentas e quarenta e três vadias do manifesto sobre o aborto?” A interrupção voluntária da gravidez d...