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Annie Ernaux: entre a vida e a escrita

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Por Aloma Rodríguez Annie Ernaux. Foto: Arquivo Télérama/ Reprodução   O primeiro livro de Annie Ernaux que li foi A ocupação ¹ e não gostei: não gostei da narradora, me parecia uma narcisista que se deixava levar pelos ciúmes e, para falar a verdade, me parecia um pouco pesada. Terminei o livro e o devolvi à estante: contava 24 anos, tinha me tornado independente recentemente e queria encher minha primeira — e última — estante Billy meio vazia. A ocupação é a história de uma separação: W., de quem a narradora acaba de separar, inicia um novo relacionamento. A imagem da outra mulher invade a vida da escritora, o livro narra a sua luta, a luta para não se deixar ocupada pelos ciúmes. Talvez eu não tenha gostado porque me sentia muito reconhecida, porque temia que o que aconteceu com a narradora acontecesse comigo.   Embora eu me lembre qual foi o primeiro livro dela que li e até quem me deu — o escritor Félix Romeo — e quem foi a primeira pessoa que me falou sobre ela — meu ir...

Teoria e prática nas Anotações de um jovem médico, de Mikhail Bulgákov

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Por Joaquim Serra   Um médico recém-formado, de vinte e quatro anos, é enviado a um povoado distante de Moscou. Ao chegar, conhece a equipe de trabalho, que não esconde o espanto diante daquele noviço que assumiria o lugar do experiente Leopoldo Leopôldovitch. Encabulado, tentando fugir dos olhares que o cercam, ouvimos seus pensamentos; talvez devesse, mesmo sem problema algum nos olhos, colocar óculos sobre o nariz, ou assumir alguma postura física para impor respeito — já que a gravidade é um mistério do corpo, como diz a fórmula machadiana para um medalhão. Em termos técnicos, desamparado o jovem não está: “até que vocês têm um equipamento decente”, diz o jovem, “tudo graças aos esforços do seu antecessor, Leopoldo Leopôldovitch. Ele operava literalmente desde a manhã até a noite” (p. 22). Mikhail Bulgákov, ao escrever suas Anotações de um jovem médico nos moldes do que hoje poderíamos chamar de autoficção, sequer muda o nome do seu antecessor, como nos diz o prefácio de Érika...

Guerra e paz (na casa dos Tolstói)

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Por Rafael Ruiz Pleguezuelos Liev Tolstói e Sófia Tolstaia. Foto: Hulton Archive   “Todas as famílias felizes são iguais; cada família infeliz é infeliz à sua maneira.” A famosa abertura de Anna Kariênina confirma uma das grandes verdades do estudo da literatura: muitos dos grandes autores não só produziram obras imensas por seu valor e transcendência, mas também, consciente ou inconscientemente, deixaram nelas uma espécie de livro de instruções com o qual interpretar seu legado. Supondo que assim seja, a tarefa de quem estuda literatura (ou de quem a adora a ponto de perder o tempo interpretando-a) é desvendar essa espécie de livro-chave descontínuo que deixaram escondido no fundo de seus textos. Quando, no início do século XX, alguns críticos quiseram distanciar o estudo da literatura do biografismo, refugiando-se na ideia de que isso tornaria seus resultados mais científicos (como se isso fosse uma coisa boa em sua totalidade), não se davam conta de que a maioria dos escritore...

A escrita dos insetos

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Por Mauricio Molina À memória de Roger Caillois e Severo Sarduy Ilustração: Jean-Michel Folon   À primeira vista, você só pode ver um emaranhado de rabiscos distribuídos nas folhas de papel. Pode-se dizer que a escrita é uma selva em miniatura onde se esconde um animal mimético, metamórfico, confundido entre as letras, raramente percebido com clareza: o sentido.   Ler palavra após palavra envolve seguir um rastro na paisagem em miniatura da página, como se o olho decifrasse, ao longo das fileiras de manchas, pontos e rabiscos, uma cadeia de formigas ou o contorno de uma borboleta confusa mais além, mimetizada na escrita.   Um lugar comum faz do escritor um matador de insetos que ele esmaga na página em branco, mas milagrosamente, graças à percepção distante do olhar, essa série de manchas adquire significado. Ou pode-se dizer também que a escrita é o rastro de um inseto que escapou do frasco do tinteiro e laboriosamente escapa pela página. É um inseto invisível, que ...

O renascer de Witold Gombrowicz em Buenos Aires: o Ferdydurkismo

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Por Sergio Ernesto Negri Witold Gombrowicz. Foto: Bohdan Paczowski   Não consigo! Exclamou trêmulo Witold Gombrowicz, com a bagagem nas costas. E desce apressadamente do transatlântico em que havia embarcado dez minutos antes, aquele que se preparava para zarpar de volta ao porto de origem na Polônia.   Marian Witold Gombrowicz, como constava no passaporte, havia chegado a Buenos Aires cinco dias antes, em 19 de agosto de 1939, na viagem inaugural do Chrobry, um imponente navio branco polonês que fez uma viagem de três semanas pelo Atlântico, tendo partido do porto de Gdyni, situado no mar Báltico. Era uma das personalidades convidadas a promover a primeira viagem transoceânica realizada por uma empresa polonesa.   Desceu do barco de uma maneira tão inesperada quanto premonitória. A Segunda Guerra Mundial eclodiu uma semana depois de zarpar, quando se encontrava em Pernambuco. Os passageiros tiveram que permanecer no Brasil e o navio conduzido para Southampton, no Reino U...

Boletim Letras 360º #502

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    DO EDITOR   1. Caro leitor, até o mês de novembro, lembrarei aqui sobre o sorteio que agora o blog realiza com o apoio da Editora Trajes Lunares. A casa disponibilizou dois Kits com três livros cada para sorteio entre os participantes do nosso clube. Este clube de apoios é uma das alternativas para ajudar este blog com o pagamento das despesas anuais de hospedagem na web e domínio.   2. Para participar dos sorteios é simples. Envia um PIX a partir de R$15 a blogletras@yahoo.com.br; para saber mais sobre os livros da Trajes Lunares disponíveis, sobre outras formas de apoiar, visite aqui . E lembro que: a aquisição de qualquer um dos livros pelos links ofertados neste Boletim garante a você desconto e ajuda ao blog sem pagar nada mais por isso .   3. Um fim de semana com responsabilidade (dia 2 de outubro é dia de eleições) e boas leituras! Peter Handke. Foto: Laura Stevens   LANÇAMENTOS   Chega ao Brasil a primeira obra de Peter Handke pós-Nobel ....