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O que nos observa em A árvore mais sozinha do mundo

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Por Vinícius de Silva e Souza Desde há alguns anos que Mariana Salomão Carrara vem se mostrando uma grande narradora. Sua obra, bastante característica, peculiar e madura desde o início, tem como cerne a narração e o tempo (não por acaso já se declarou, por diversas vezes, leitora de Elvira Vigna).   Mas, se em Se Deus me chamar não vou temos algo de cronológico na organização temporal da narrativa pelos olhos de uma criança, em É sempre a hora da nossa morte amém , temos uma narrativa mais intrincada e que se desdobra com o passar do tempo, na mente de uma mulher idosa; em Não fosse as sílabas do sábado trabalha com o vai e vem do luto também pelos olhos de uma única personagem; e, em A árvore mais sozinha do mundo , a autora rompe com estruturas estabelecidas para criar quatro narradores diversos que observam e discorrem sobre um mesmo ponto em comum: uma família.   O espelho, o carro, a roupa e a árvore. Partindo de objetos inanimados e sempre tão presentes no cotidiano,...

Boletim Letras 360º #617

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Katherine Mansfield. Foto: Ida Baker.   LANÇAMENTOS   Revisitar Katherine Mansfield. Linda Burnell, mãe de Kezia e Lottie, descansa no andar de baixo, enquanto sua mãe organiza a nova casa da família no interior da Nova Zelândia. Seu marido, Stanley, foi trabalhar, mas voltará sempre ansioso em rever a família. As filhas brincam de preparar o almoço em um degrau de concreto, e sua irmã canta canções de amor para um jovem imaginário. Ainda que a vida familiar seja exemplar, há algo vazio e intenso em Linda. A trama de A Aloe  remete às memórias da infância de Katherine Mansfield (1888-1923), mas engana aqueles que, à primeira vista, limitam a obra a um romance curto de memórias. Num fio que passa por três gerações de mulheres, o texto é repleto de conjecturas e experimentações estilísticas. Um tesouro redescoberto a cada nova leitura. Contemporânea de Virginia Woolf, com quem teve uma amizade complexa, com períodos de distanciamento e outros de muita proximidade e até cum...

Os acadêmicos que não gostam de ler

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Por Rafael Kafka Ilustração: Ximo Abadia. Fato curioso que percebo em muitos acadêmicos que me rodeiam: a falta de gosto pelo hábito de leitura. Penso em específico em Teresa. Uma das maiores e mais sensíveis inteligências que conheço, ela literalmente lê aquilo que o programa de um determinado curso de pós-graduação a manda ler. Um dia, estávamos numa livraria e eu observei algum autor que sinto que preciso ler — acredito que James Baldwin —, uma espécie de dívida literária, como se fosse um compromisso meu comigo mesmo. Ela disse que não entendia esse sentimento, que não tem isso para consigo e fiquei imaginando que ela não entende o real sentimento de alguém que faz da leitura um combustível para sua existência cotidiana, não a que é apenas marcada pelos resultados acadêmicos. A leitura é acima de tudo prazer, mas também é uma tarefa de descoberta do mundo. Um autor leva a outro e assim vou criando malhas de leitura que minha mente torna necessárias serem percorridas. Exemplo: em co...

O século das luzes, de Alejo Carpentier

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Por Pedro Fernandes Alejo Carpentier. Foto: Ulf Andersen   O Século das Luzes foi como ficou reconhecido o longo período de transformações intelectuais e filosóficas centradas no advento da razão como dimensão única de compreensão do mundo e que se irradia desde a Europa a partir do século XVIII. Centrado na França, alguns dos novos ideais iluministas primavam pela liberdade individual, o progresso, o fim da monarquia e separação entre a Igreja e o Estado, contribuindo para a série de revoluções que varreram o Ocidente de lés a lés no curso de pelo menos dois séculos de história.   Alejo Carpentier recorre ao mesmo designativo do que bem poderíamos chamar de uma era para o seu livro de 1962 porque o seu interesse fundamental é compreender como o ideário da Ilustração alcança o Novo Mundo quando este em sua grande parte se encontrava integrado ao velho continente ora como um vasto campo de recursos para o seu progresso, ora como zonas de disputas territoriais, ora ainda um ter...

O quarto ao lado, de Pedro Almódovar

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Por Paula Vázquez Prieto   Num hospital de Manhattan, Martha (Tilda Swinton) acaba de receber más notícias. A esperança em seu novo tratamento contra o câncer se esvazia como o balão esquecido de um aniversário distante. Não resta muito tempo e a isso se soma o prognóstico de uma agonia lenta e dolorosa. Quem chega para visitá-la é Ingrid (Julianne Moore), uma amiga de juventude, quando ambas eram atiradas e imprudentes, e desfrutavam da aventura e da escrita. Martha como correspondente de guerra e Ingrid como romancista partilharam anedotas e amantes apaixonados, como agora compartilham a nostalgia e uma amizade reconquistada. Para Ingrid, a morte é o tema do seu último romance; para Martha, a realidade que está por vir.   Enquanto observa a neve cair pela enorme janela de seu quarto, Martha cita as últimas falas de Os vivos e os mortos , filme de John Huston baseado no famoso conto de James Joyce. “Cai debilmente no universo, e cai debilmente, como o final inevitável, sobre...

Navilouca

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Por Eduardo Galeno Do original de Auto da barca do inferno (1517)   O teatro de Gil Vicente é a monarquia de Portugal. Pode parecer estranho nomear assim de supetão um objeto que é formado numa gestação complexa — as letras e as significações das letras, que são tão maleáveis —, mas a dinastia de Avis (no poder do rei transmutado pelas enunciações vicentinas) transfere a imagem teológica para a poética.   A ideia do humanismo perante a moralização ad infinitum dos costumes, que era preconizado através do ensejo e do uso do tropo alegórico, não é precisa para elencar os traços de um auto . O caráter de humano era calculado pela lógica aristotélica de hierarquia no representamen , ou seja, mesmo com o misto de qualidades da extração social (baixas e altas) no bojo da peça, Auto da barca do inferno situava exatamente o viés do contrassenso no lugar platônico do diálogo : a homologia , dizia Lyotard, e também a unicidade do referente ( salvação )   Fato é: a possibilidade ...