O século das luzes, de Alejo Carpentier

Por Pedro Fernandes


Alejo Carpentier. Foto: Ulf Andersen


 
O Século das Luzes foi como ficou reconhecido o longo período de transformações intelectuais e filosóficas centradas no advento da razão como dimensão única de compreensão do mundo e que se irradia desde a Europa a partir do século XVIII. Centrado na França, alguns dos novos ideais iluministas primavam pela liberdade individual, o progresso, o fim da monarquia e separação entre a Igreja e o Estado, contribuindo para a série de revoluções que varreram o Ocidente de lés a lés no curso de pelo menos dois séculos de história.
 
Alejo Carpentier recorre ao mesmo designativo do que bem poderíamos chamar de uma era para o seu livro de 1962 porque o seu interesse fundamental é compreender como o ideário da Ilustração alcança o Novo Mundo quando este em sua grande parte se encontrava integrado ao velho continente ora como um vasto campo de recursos para o seu progresso, ora como zonas de disputas territoriais, ora ainda um território de expurgo das monarquias. Filiado ao agora escasso modelo do romance total, o que busca o romancista são as múltiplas contradições estabelecidas no interior de quaisquer transformações interessadas numa mudança de curso das mentalidades e dos modos de pensar, ser e estar no mundo, individual e coletivamente.
 
O escritor cubano carreia não apenas uma complexa rede de situações, eventos e geografias, mas várias expressões da tradição ficcional anterior e posterior ao romanesco. Utiliza-se, assim, desde o modelo das antigas narrativas de viagem muito em voga no período colonial nas Américas, passando pelo romance marítimo, o romance de aventura de tintas românticas, o romance naturalista e realista e alcançando esteios do romance histórico e do Bildungsroman. Essas combinações oferecem um rico painel dos principais epicentros das colônias espanholas, francesas, holandesas e inglesas na América Central sem que o registro se prenda ao documental ou historiográfico — isto é, sem se perder a essencial qualidade ficcional — e abrindo-se para pontos ainda atuais quando revisitamos o que tem sido a penosa travessia dos agora países.
 
A narrativa devota interesse pelos irmãos Carlos e Sofia e o primo adotivo Esteban nos instantes posteriores ao da morte do patriarca quando a grande casa em Havana liberta das rédeas familiares se converte em pequeno mundo aberto aos interesses dos mais diversos para um grupo de adolescentes. Esse primeiro paraíso é conspurcado pela visita de um forasteiro. Passando-se por negociante   do círculo comercial do falecido patriarca da casa habanera, Victor Hugues aos poucos se imiscui na rotina e vida folgazãs dos três órfãos fundando um mundo outro marcadamente teatral e deformador do arremedo de anarquia vivido pelos adolescentes até a descoberta dos verdadeiros interesses desse viandante francês, quando os três, sequestrados pelo seu discurso libertário — a princípio mais que tudo aventureiro — jamais reconstituirão a trindade e o mundo originais. Hugues é uma figura histórica que o romance de Carpentier reconstrói em gesto de preenchimento de uma dessas lacunas perenes na história oficial: o próprio escritor explica o incômodo com o esquecimento do marselhês entre os nomes da Revolução Francesa e o seu interesse devido o papel dicotômico que assumiu em dois momentos diferentes da vida: como um ferrenho defensor dos ideais revolucionários durante sua atuação como administrador colonial em Guadalupe e em seguida na Guiana Francesa.
 
O século das luzes está organizado em sete capítulos de extensões e focos narrativos diferentes, sendo o do paraíso conspurcado pelo forasteiro o primeiro. Depois, centrando-se numa década do itinerário de Esteban entre a França sacolejada pelo espetáculo da guilhotina, passando pela longa peleja de Victor Hugues na tomada de Guadalupe e imposição de um governo autocentrado e tortuosamente guiado por um ideário iluminista um tanto mal ajambrado; adiante, ainda pela perspectiva de Esteban, seguimos seu desterro pela Guiana Francesa a mando de Hugues, a fuga de regresso para Cuba e o reencontro com uma cidade e uma família irreconhecíveis. Ao périplo do primo recebido, o filho ressurrecto ou a prova faltante para o avanço com os ideários da revolução, nos quais uma Sofia zelosa da casa e da vida matrimonial ao lado do marido e um Carlos estão mergulhados até o pescoço, sucede-se o igualmente tortuoso caminho da mulher da casa na busca pelo primeiro homem e pelos sonhos da viril força revolucionária contada a contrapelo por Esteban.
 
Irrequieta com a pequena e monótona vida burguesa ou avisada da nova perseguição das forças de segurança contra os partidários da Revolução, Sofia escapa para Caiena e decepcionada porque todo idealismo — amoroso e revolucionário — resulta em vento, a narrativa perde de vista os destinos das quatro personagens. Quer dizer, parte deles é revelada a um sombrio Carlos que revisita a grande casa espanhola onde encontra os vestígios do refúgio de Sofia e Esteban. Alejo Carpentier, demonstra com essa alternativa epilogar que se a história não alcança a resposta definitiva para os inescapáveis furos do que se conta tampouco a literatura, mesmo a que se expande entre as lacunas históricas, possui essa possibilidade. Na travessia entre o acontecido e o que dele se conta, possível apenas e necessariamente pela linguagem nunca é o acontecido que se materializa, mas uma distensão mais ou menos deformada.




O romance de Alejo Carpentier persegue uma tese semelhante ao testemunhar os distanciamentos entre os planos da teoria e da prática. O périplo dos mais seduzidos pelos ideais da revolução francesa guarda esse significado, à medida que na vida comum nenhuma das promessas levantadas no ideário se concretizam ou se concretizam a ferro e fogo; se as intenções parecem boas, as atitudes estão integralmente consumidas pelo que existe de mais terrível. O suplício dos condenados por não aderir ao frágil e móvel inventário de ideias propostas quase ao bel-prazer dos executores, o infinito espetáculo de execuções sumárias que as tribunas parciais celebram com a guilhotina, a fracassada tentativa de abolição das faculdades imaginativas ou do infinito universo para o qual a ciência, a história ou o pensamento não constituiu uma resposta racional são três das linhas perseguidas em O século das luzes.
 
Dessa maneira, o romance assume a feição oposta das promessas do imperativo racional, colocando este como a face disforme do irracional e do selvagem. Existe um detalhe — talvez não muito sutil — na narrativa que podemos interpretar como uma síntese disso que chamamos acima de tese do romance. Ele antecede a grande treva que se abate nessas regiões já mergulhadas na mais cruel ignorância desde o estabelecimento do europeu como posseiros do incivilizado e alinhava a possível descoberta de Carlos acerca do convívio em Espanha entre Esteban e Sofia. Entre a parafernália barroca que compõe a casa em Havana, o narrador se interessa — e o próprio Esteban — por uma tela napolitana intitulada Explosão numa catedral, de autoria desconhecida. Pelo que o denuncia o título o que ela transmite é “a apocalíptica imobilização de uma catástrofe”, “uma colunata fazendo-se em pedaços no ar […] antes de despejar suas toneladas de pedra sobre pessoas espavoridas.” Essa imagem comparada algumas vezes ao estado de seus observadores infere a época capturada pelo romance, a da instauração da perpétua queda sem cair dos modelos vigentes com o império colonial.
 
A catedral em ruínas tem sentido literal e metafórico, tanto pode ser o desfazimento do poder da Igreja Católica como o do sólido modelo imperial. Nos dois casos, a resistência das colunas, denota a permanência dos pilares contra os quais a revolução investira pesadamente. Como nenhuma transformação coletiva deixa de afetar seus indivíduos, e mesmo aproveitando-se da ideia cristã segundo a qual a igreja é próprio ser, a catedral em queda funciona como uma imagem acerca da interioridade das personagens. Esteban repara isso depois da longa descida aos infernos passada na travessia entre Paris, Pointe-à-Pitre, Sinamary e Caiena. A obsessão dessa personagem com essa pintura adquire proporções estreitas no avanço da narrativa; depois da condena a trabalhos forçados na prisão de Ceuta, Esteban atenta contra o quadro atirando uma cadeira antes de observar que “Até as pedras que irei quebrar agora já estavam presentes nesta pintura”. No episódio epilogar, Carlos volta a reencontrar a Explosão numa catedral “mal curado do grande ferimento que recebera um dia”; ao abandono de Carlos da casa espanhola, o quadro, nas palavras finais do narrador, “deixou de ter motivo, apagando-se, virando uma mera sombra sobre o encarnado escuro do brocado que forrava as paredes do salão, e parecia sangrar onde a umidade manchara o tecido.”
 
Essa paulatina transmutação entre a tela e a história e entre a tela e o homem cumpre, por fim, a reivindicada necessidade da arte e sua função imaginativa e criadora como o pequeno gesto — mas autêntico — de sublevação ante o desmesurado imperativo da razão. O império das luzes se forjou e ajudou a forjar um tipo de arte realista, desfeita de qualquer efeito fora do aceitado aos olhos da razão; Alejo Carpentier fabula exatamente essa época, por vezes, utilizando-se da meticulosa linguagem descritiva, mas toda vez, mesmo no seu inventário figurativo, propositalmente colado ao estilo de profissão exercido pela personagem que se faz o ponto a partir do qual se instaura o foco narrativo — Esteban atua como escrivão dos mercantes piratas ao serviço de Victor Hugues em Guadalupe — a narrativa não deixa de reparar na insuficiência da linguagem em relação à realidade e no seu esforço de capturá-la. Toda obra literária pode ser lida como parte nesse esforço; sorte a nossa é a existência de escritores como Carpentier que entende a literatura não como apelo ao raso da razão e sim deslocamento, o espaço da linguagem ideal para fazer parecer enquanto tudo muda para permanecer como está.


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O século das luzes
Alejo Carpentier
Sérgio Molina (Trad.)
Companhia das Letras, 2024
384 p.

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