Rabelais perdeu a oportunidade (1959)

Por Louis-Ferdinand Céline


Gustave Doré. Gargantua, personagem criada por François Rabelais.


 
(Uma entrevista sobre Gargantua e Pantagruel concedida ao Le Meilleur Livre du Mois)
 
Você quer que eu lhe fale de Rabelais? certo, hoje de manhã folheei de novo a Enciclopédia, então, agora eu sei. Tem tudo lá dentro, na Grande Enciclopédia. Fazem-se carreiras formidáveis com isso. Justamente, procurei a palavra “Rabelais”.
               
Veja, com Rabelais, falam sempre do que não se deve. Dizem, repetem por toda parte: “É o pai das letras francesas”. E, então, há o entusiasmo, elogios, que vão de Victor Hugo a Balzac, a Malherbe. O pai das letras francesas, ulalá! não é tão simples. Na verdade, Rabelais perdeu a oportunidade. Sim, ele perdeu a oportunidade. Não conseguiu.
               
O que ele queria fazer, era uma linguagem para todo mundo, uma verdadeira. Ele queria democratizar a língua, uma verdadeira batalha. A Sorbonne, ele era contra, os doutores e tudo isso. Tudo o que era aceito e estabelecido, o rei, a Igreja, o estilo, ele era contra.
               
Não, não foi ele que ganhou. Foi Amyot, o tradutor de Plutarco: ele teve, nos séculos que se seguiram, muito mais sucesso que Rabelais. É nele, em sua língua, que vivemos ainda hoje. Rabelais tinha desejado fazer passar a língua falada na língua escrita: um fracasso. Enquanto Amyot, as pessoas querem agora, ainda e sempre Amyot, o estilo acadêmico. Isso é escrever porcaria: linguagem congelada. As colunas de um grande periódico matutino, que se lisonjeia de ter redatores que escrevem bem, estão cheias disso. O que resulta numa latrina de verbos bem elaborados, frases bem conduzidas com, ao final do artigo, um truquezinho inocente. Não muito perigoso, não forte demais, para não assustar o público. É esse o fracasso de Rabelais, é a herança de Amyot. Uma verdadeira porcaria, eu continuo.
               
Rabelais realmente quis uma língua extraordinária e rica. Mas, os outros, todos, eles a emascularam, essa língua, até a deixarem toda banal. Assim, hoje, escrever bem é escrever como Amyot, mas, isso não é nada mais que uma “língua de tradução”.
               
Uma de nossas contemporâneas quase célebre disse uma vez ao ler um livro: “Ah! como é lindo de se ler, parece uma tradução!” É isso que dá o tom.
               
É essa a raiva moderna do francês: fazer e ler traduções, falar como nas traduções. Quanto a mim, teve gente que veio me perguntar se eu não tinha apanhado essa ou aquela passagem de meus livros em Joyce. Sim, me perguntaram! é lógico, porque o inglês está na moda. Eu falo inglês perfeitamente, como o francês. Ir apanhar alguma coisa em Joyce! Não, como Rabelais, encontrei tudo no próprio francês.
               
Lanson diz: “O francês não é muito artista.” Não há poesia na França; tudo é cartesiano demais. Ele tem razão, evidentemente, Amyot, eis um pré-cartesiano, e foi assim que tudo se estragou. Mas, não era o caso de Rabelais: um artista.
               
Rabelais, sim, ele falhou, e Amyot ganhou. A posteridade de Amyot, são todos esses romancezinhos emasculados publicados hoje em dia nas melhores editoras. Milhares por ano. Mas, romances assim, faço um por hora.
               
Ora, só publicam isso, onde está a posteridade de Rabelais, a verdadeira literatura? desaparecida. O motivo é claro. Seria preciso compreender, uma vez por todas (basta de pudicícia!), que o francês é uma língua vulgar, desde sempre, desde o seu nascimento no tratado de Verdun. Só que isso, não querem aceitar, e continuam a desprezar a Rabelais.
               
“Ah! é rabelaisiano!” dizem, às vezes. Isso significa: cuidado, não é delicado, esse troço, carece de correção. E o nome de um dos nossos maiores escritores serviu, assim, a forjar um adjetivo difamatório. Monstruoso! Pois, era um sujeito muito forte, Rabelais, escritor, médico, jurista… Ele teve aborrecimentos, o coitado, ainda em vida, inclusive: passava seu tempo tentando não ser queimado.
               
Não, a França não consegue mais entender Rabelais: ela se tornou preciosa. O que é terrível pensar, é que poderia ter sido o contrário, a língua de Rabelais poderia ter se tornado a língua francesa.
               
Mas, só há lacaios, que sentem o mestre e querem falar como ele. Viva o inglês, a retenção superficial!
               
Rabelais, me dirá você, cheira um pouco a sistema: sim, ué, esse sujeito foi acossado pela persecução católica, ele atacava os poderosos. Sim, cheirava um pouco a fogueira, o que ele fazia.
               
Eis o essencial do que eu queria dizer. O resto (imaginação, poder de criação, cômico etc.) não me interessa. A língua, só a língua. Eis o importante. Tudo o mais que se pode dizer, está por toda parte. Nos manuais de literatura e, então, leia a Enciclopédia. Se você quiser mais, vá perguntar a todos esses grandes escritores que, quanto a eles, têm “ideias sobre Rabelais”. Ah! quantos conheço que poriam a cabeça entre as mãos e lhe diriam seriamente: “Rabelais, que prodigioso inventor de palavras!” São apenas uns tagarelas.
               
Concentre-se no que é interessante em Rabelais: sua intenção algo demagógica de atrair o público falando como ele, eu entendo, Rabelais era médico e escritor como eu. Isso se vê, a crueza justa. Ele era um bom anatomista, aliás, e, coisa prodigiosa para a época, já operava. Até inventou um aparelho cirúrgico.
               
Ele não devia acreditar muito em Deus, mas não ousava dizer. Além disso, ele acabou bem, não teve suplício. Foi depois, o suplício, quando academizaram o francês que ele falava para transformá-lo em uma literatura de vestibular e de ensino fundamental.
               
Como diz Robert Poulet, fizeram um francês magro enquanto ele tinha um francês robusto. Pior: esquelético. Nem mesmo Balzac ressuscitou nada. É a vitória da razão.
               
A razão! É preciso ser louco. Não se pode fazer nada desse jeito, tudo emasculado. Eles me fazem rir. Veja o que os contraria: nunca se conseguiu fazer “razoavelmente” um bebê. Nada a fazer. É preciso um momento de delírio para a criação.
               
Mas, não, na literatura, é preciso permanecer limpo. Então, hoje põem reticências quando ocorre algo e, em seguida, continuam bem tranquilamente: “no dia seguinte, foram todos os dois convidados à recepção da duquesa.” Oh! não recomendo a erotologia, isso me enoja, mas o que é terrível é a linguagem polida demais.
               
O que há, com efeito, de bom em Rabelais, é que ele colocava sua pele na mesa, ele arriscava. A morte o espiava, e isso inspira, a morte! é, inclusive, a única coisa que inspira, eu sei, quando ela está ali, bem atrás. Quando a morte está com raiva.
               
Ele não tinha uma vida fácil, Rabelais, dizem isso, é falso. Ele trabalhava. E, como todos que trabalham, era um galeriano. Quiseram pegá-lo, condená-lo. Outras dificuldades, as do papa, existiram, é verdade. E aí, os rapazes, era preciso que remassem1.
               
Bardamu também, meu herói no Viagem2, ele diria isso. Ah! os imperfeitos do subjuntivo…
               
Tive em minha vida o mesmo vício que Rabelais. Passei também meu tempo me pondo em situações desesperadas. Como ele, não tenho nada a esperar dos outros, como ele, não me arrependo de nada.
 
 
Notas da tradução:
 
1 Céline joga com a polifonia das palavras galérien (galeriano), galérer (trabalhar duro) e ramer (remar, matar-se de trabalhar) em francês. (N. T.)
 
2 No original “le Voyage”, referência a Voyage au bout de la nuit, primeiro romance de Céline, publicado em 1932, pela editora Denoël. (N. T.)

 
* Tradução de Amanda Fievet Marques. O texto original, “Rabelais, il a raté son coup” está publicado em Cahier de L’Herne Céline, livro organizado Dominique de Roux, Michel Thélia e Michel Beaujour (Paris: Éditions de L’Herne, 1972, p. 515-518)
 
 

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