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O que quer um escritor?

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Por Pedro Fernandes Já muitas vezes tenho me deparado com a ardilosa pergunta. E ela volta agora no trabalho de reflexão sobre a obra literária: trabalho que parece ser o de construir um conjunto de ideias  formadoras de uma obra e consequentemente do pensamento de um escritor. Já muitas vezes tenho respondido a mim mesmo e a quem me pergunta da real importância que se tem ler literatura, que o escritor e a literatura não querem nada. É verdade que essa resposta anarquista é forjada no calor de instaurar um problema na ordem da existência da arte e na ordem da nossa própria relação para com ela. Quando afirmo pela boca coletiva de que "nada" é a essência da querença do escritor e consequentemente da literatura, digo que o escritor e a literatura existem para desestabilizar ordens, instaurar paradigmas, resolvê-los é o que menos lhe interessa. Não existe o escritor para compactuar sempre com a ideia dominante. Existe para propor caminhos diferentes dos já trilhado...

Drummond, a tradição e o talento individual: propósitos para Considerações do poema

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Por Pedro Fernandes Entendo que poesia é negócio de grande responsabilidade, e não considero honesto rotular-se de poeta quem apenas verseja por dor-de-cotovelo, falta de dinheiro ou momentânea tomada de contato com as forças líricas do mundo, sem se entregar aos trabalhos cotidianos e secretos da técnica, da leitura, da contemplação e mesmo da ação. Estas foram as palavras de quem por longa data, a vida inteira, para ser mais preciso, dedicou-se ao fazer poético, atividade que certamente, e os livros e a crítica estão aí para provar isso, ultrapassou o sentido da outra função que veio a exercer a vida inteira também, a de funcionário público. Estas palavras foram as de Drummond, poeta de alma e ofício. O que pretendo com estas suas palavras é o entendimento, ainda que breve, do poeta em diálogo para com a tradição e a constituição de seu talento no corpo desta tradição, entendendo que o poeta não figura em momento algum como instância deslocada do meio e das outras ...

Clarice Lispector

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Tenho várias caras. Uma é quase bonita, outra é quase feia. Sou um o quê? Um quase tudo. (Clarice Lispector citada por Nadia Battella Gotlib, Clarice, uma vida que se conta ) ... eu só escrevo quando eu quero, eu sou uma amadora e faço questão de continuar a ser amadora. Profissional é aquele que tem uma obrigação consigo mesmo de escrever, ou então em relação ao outro. Agora, eu faço questão de não ser profissional, para manter minha liberdade. (Clarice Lispector, entrevista a Júlio Lerner, 1977) Escrever é procurar entender, é procurar reproduzir o irreproduzível, é sentir até o último fim o sentimento que permaneceria apenas vago e sufocador. Escrever é também abençoar uma vida que não foi abençoada. (Clarice Lispector, A descoberta do mundo ) Clarice Lispector, 1961. Foto: Claudia Andujar Clarice Lispector nasceu em Tchelchenik, na Ucrânia, em 1920; chega ao Brasil com os pais e as duas irmãs aos dois meses de idade. A família se instala em Recife, capital de Pernamb...

Diário de bordo

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Por Pedro Fernandes Michelangelo. A expulsão do paraíso . Detalhe da Capela Sistina Esta tela me leva a pensar o segundo capítulo de minha dissertação. Depois do gatilho oferecido pela tela Ceci n'est pa une pomme resolvi adotar, claro, porque lido com um objeto artístico, esse diálogo entre a reflexão teórico-crítica a partir de representações nas artes plásticas. Também lido com um tema cuja matéria serviu de maneira diversa a esse outro universo: figurações sobre o feminino. A reflexão sobre o par realidade::ficção  no intuito de conceber que tais modos não são gratuitos, mas produzidos com alguma intenção, ou ainda, que a literatura não é elemento apartado do mundo, findou com a leitura sobre a construção da personagem - desta, a feminina - na literatura de José Saramago. Aqui, um parêntesis: este estudo tem como núcleo os romances Memorial do convento  e Ensaio sobre a cegueira , mas não se perde numa leitura isolada desses textos. Centrais, tais narrativas são p...

Fractais para uma leitura da constituição discursiva do romance Memorial do Convento, de José Saramago

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Por Pedro Fernandes O termo fractal  foi criado em 1975 por Benoît Mandelbort. A referência é de conceituar aqueles objetos cujo tamanho não se deixam caber nas definições tradicionais da geometria euclidiana. Esses objetos em suas partes separadas repetem padrões. Embora o termo não seja a questão, foi utilizado com esse sentido (conceitual) para a literatura de José Saramago, tendo em vista que, mesmo repetindo  padrões já determinados pela ciência da literatura, sua obra constitui expressão singular que analisada em conjunto demonstra-se fabricada  por elementos repetíveis : como por exemplo, seu estilo que atribuiu novas funções para o comportamento da sinalética narrativa.  Além disso, o conceito de fractal  é mesmo utilizado em algumas circunstâncias pela própria literatura desse escritor; veja-se o caso explícito do duplo em O homem duplicado  ou das caracterizações espaciais em Todos os nomes . Sobre o aspecto arquitetônico aproveito ...

Fargo, de Joel e Ethan Coen

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Em nenhum outro momento de sua carreira, o humor negro dos irmãos Joel e Ethan Coen atingiu tamanha excelência quanto no gelado Fargo , em que o equilíbrio entre o lado "sério" da dupla ( Gosto de Sangue , de 1984, Ajuste Final , de 1990) e o cômico ( Arizona Nunca Mais , de 1987, A Roda da Fortuna , de 1994) atinge solidez, sempre utilizando o fracasso como mote.  Fargo é uma pequena cidade do meio-oeste americano, no estado de Minnesota - região definida pelos cineastas como uma "Sibéria com restaurantes familiares". Um vendedor de carros usados (William H. Macy) contrata dois pilantras (Gaer Grimsrud e o hilário Steve Buscemi) para sequestrar sua esposa, pedir o resgate ao sogro milionário e, com isso, escapar da ruína financeira.  Por uma coincidência, acabam cruzando o caminho da grávida e impassível policial Marge Gunderson, interpretada com brilho por Frances McDormand, mulher de Joel.  A fórmula de sarcasmo dos irmãos é acumular um grande ...