Diário de bordo

Por Pedro Fernandes

Michelangelo. A expulsão do paraíso. Detalhe da Capela Sistina

Esta tela me leva a pensar o segundo capítulo de minha dissertação. Depois do gatilho oferecido pela tela Ceci n'est pa une pomme resolvi adotar, claro, porque lido com um objeto artístico, esse diálogo entre a reflexão teórico-crítica a partir de representações nas artes plásticas. Também lido com um tema cuja matéria serviu de maneira diversa a esse outro universo: figurações sobre o feminino. A reflexão sobre o par realidade::ficção no intuito de conceber que tais modos não são gratuitos, mas produzidos com alguma intenção, ou ainda, que a literatura não é elemento apartado do mundo, findou com a leitura sobre a construção da personagem - desta, a feminina - na literatura de José Saramago. Aqui, um parêntesis: este estudo tem como núcleo os romances Memorial do convento e Ensaio sobre a cegueira, mas não se perde numa leitura isolada desses textos. Centrais, tais narrativas são pontos irradiadores para uma compreensão mais ampla sobre o tema na obra do escritor português. 

Agora, por que esta tela do Michelangelo? Numa ocasião em que a discussão caminha para o papel assumido pela figura feminina no interior da obra romanesca, essa tela inclui uma série de questões relacionadas ao tema que deverão suscitar a construção da reflexão aí pretendida. Primeiro, trata-se da representação da fundação sobre o discurso de perseguição à mulher no Ocidente cristão: aí está Eva, quem recebe da serpente o fruto proibido, este que lhe despertará para verdade do mundo, e na mesma ocasião, como se tratasse de uma continuidade do enredo bíblico, a expulsão do casal do paraíso, tema que dá título à obra e determinante na construção da culpa à mulher pelo mal do mundo. 

E essa pintura integra o extenso afresco composto pelo artista italiano para ilustração do teto da Capela Sistina - um texto pictural que reafirma a construção de um discurso largamente sustentado pela Igreja de redução da figura feminina. Talvez para acentuar essa convicção, Michelangelo ainda tenha jogado com outro sentido: o feminino serpente. Note que, embora a cobra normalmente seja apresentada noutras representações picturais sem uma forma sexual definida, na tela em questão é apresentada como uma forma-mulher e a imagem é retocada por cores quentes numa invocação à insinuação do que é proibido, da volúpia, vindos de um lugar de condenados segundo o discurso religioso. Desse modo, a tela de Michelangelo sugere uma dupla culpa à mulher: a de ser propiciadora da queda e da queda do paraíso. Já aqui, quantas ideias se mostraram?

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Boletim Letras 360º #579

Boletim Letras 360º #573

Seis poemas-canções de Zeca Afonso

Confissões de uma máscara, de Yukio Mishima

A bíblia, Péter Nádas

Boletim Letras 360º #575