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Um passeio pela obra de Anton Tchekhov

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Por Joaquim Serra Anton Tchekhov, 1892. Não só no século XX veríamos o esfacelamento do entendimento através da linguagem. Se em Beckett a sintaxe é subversiva para representar a incomunicabilidade dos seres no mundo pós-guerra, em Tchekhov, mesmo com o pleno exercício das frases acabadas, as personagens nem sempre se entendem através da comunicação, porque são vazias de sentido, ou não encontram uma continuidade do diálogo no interlocutor. O tragicômico Ivan Tolkatchov, o pai de família na peça Trágico à força , depois de seu monólogo no qual mostra seu mundo atarefado, de obrigações e abusos, não obtém do amigo interlocutor uma palavra que o acalme. Tolkatchov entra em cena com um globo de luz, um velocípede de criança, três caixas de chapéus femininos, uma grande trouxa de roupas, um cesto com cerveja e uma infinidade de pacotes pequenos. Pede um revólver emprestado ao amigo e não demora a se lamentar:  “ sou um mártir, sou um trapo. ”  Tolkatchov sente o...

Boletim Letras 360º #390

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DO EDITOR 1. Amigo leitor, em nossa página no Facebook, até agora nosso lugar no espaço virtual, depois deste blog, de maior trânsito, iniciamos uma campanha em busca do leitor 80 mil. 2. Ora, este é um dos desafios quase impossíveis de se alcançar pensando na queda de usuários desta rede e na situação das segmentações algorítmicas e o comércio desbragado. Mas, não é pago para se sonhar. 3. Por isso, deixo dois convites a você que agora se prepara para ler este boletim: se tem presença naquele espaço e tem interesse pelo universo literário mas ainda não acompanha a gente por lá, faça-nos uma visita, curta e siga nossa página. Basta ir aqui. 4. Abaixo registra-se as notícias que passaram, ou não, pelo mural de nossa página no Facebook. Além delas, as demais seções com novos conteúdos, sempre com o interesse de enriquecer e ampliar sua experiência cultural e literária. Fique bem. Boas leituras! Hilary Mantel. Foto: Michael Birt LANÇAMENTOS Novo livro d...

O espaço mínimo para a memória

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Por Paula Luersen Foto: Ishiuchi Miyako Uma blusa cor-de-rosa de mangas curtas, gola dobrada, pequenos botões. Ao que tudo indica, uma blusa cor-de-rosa de tamanho médio. O tecido está amassado. As mangas estão rasgadas. Faltam os primeiros botões. Nas costas e na lateral, mistura-se ao cor-de-rosa um tom terroso que também aparece salpicado em outras partes do tecido. É o vestígio material de uma tragédia. Antes, ali, entre rasgos e manchas de terra, habitava um corpo. A blusa foi fotografada pela artista Ishiuchi Miyako e é uma das peças de roupa que compõem o memorial das vítimas da bomba de Hiroshima, no Japão. Uma série de placas de mármore com imagens gravadas. Pela sequência de fotos e textos informativos, entendemos que ali está a narrativa heroica de uma guerra. Na placa de mármore final, a imagem derradeira: o grande cogumelo causado por uma explosão nuclear. Logo abaixo da imagem, uma descrição curta a situa como um registro da bomba de Hiroshima. Acima da ...

Carta à rainha louca, de Maria Valéria Rezende

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Por Pedro Fernandes Maria Valéria Rezende. Foto: Marlon de Paula. Integrado à tradição do romance epistolar, Carta a rainha louca é um livro feito de duas superfícies podendo, inclusive, ser lido como duas narrativas. Assumindo as feições de um recurso muito comum aos textos dos primeiros séculos da escrita e adotados em quaisquer circunstâncias em que os materiais necessários ao trabalho de escrever sejam raros ou escassos, este livro não é assim mais que uma crônica sobre o período colonial brasileiro; é sobretudo a revelação de uma voz coletiva de todas aquelas que pereceram ao longo desse tempo pelos silenciamentos impostos por aqueles que tinham o direito de mando. É que à medida que tomamos conhecimento sobre as peripécias da heroína missivista, não deixamos de ler, por debaixo da rasura todas as imprecações que, se públicas, falariam contra a própria escrevente ou justificariam a condição a qual foi rebaixada, a de mulher herege e/ ou tresloucada. Assim, na ...

Suk Suk, de Ray Yeung

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Por Pedro Fernandes A filmografia de Ray Yeung é marcada por uma constante: tornar visível histórias que mostram as transformações culturais e sociais pelas chamadas culturas dissidentes em relação aos padrões dominantes em seu país. Suk Suk é o terceiro longa que se infiltra no universo gay chinês: os dois primeiros foram Cut Sleeve Boys (2006), uma comédia romântica que lida com a revisitação às vidas de dois homens depois da morte de seu melhor amigo, e Front cover (2015), que perfaz um caminho semelhante, agora, pelo encontro entre um estilista e um renomado ator. Também os vários curtas que dirigiu tem a mesma raiz de interesse, o que o coloca numa posição um tanto paradoxal no seu país: a de uma persona non grata entre o ideário dominante e a de uma importante voz capaz de registrar os silenciamentos aí impostos. Os dois primeiros filmes apresentam-se interessados no pequeno drama burguês. Nesse sentido, parece que estamos diante de um cineasta encantado co...

O aprendiz secreto, de António Ramos Rosa

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Por Maria Vaz Tudo se inicia na contradição de dizer que “não é altura de dizer nada”. Nunca é altura de dizer alguma coisa quando nos possamos orientar pelo perfeccionismo inatingível, que é sempre caminho para melhorar qualquer coisa. Depois percebemos que, afinal, é altura de dizer alguma coisa. Que é sempre altura de nos assumirmos eternos aprendizes da arte onde as palavras nos encontram, porque supostamente tudo carece de unanimidade, na pluralidade democrática que nos permite, como alude o poeta, mediar enigmas. É da textura do silencio que nasce a palavra, é nele que brotam os sentidos e, muitas vezes, se constroem ideias ou se arejam os frutos da razão. E constatamos todos, tantas vezes, que o seu exercício, às vezes, também é uma fuga e uma força. Todavia, de toda a sua fecundidade, e “supremo elemento de defesa”, tudo se constrói através do antagonismo com a palavra. Do contraste. Do atrito da forma com a sua ausência. Percebemos com esta obra de Antó...