Postagens

Futebol de literatura periférica

Imagem
Por Wagner Silva Gomes Ilustração: Giovanna Jarandilha.    Pasolini, escritor, poeta e cineasta italiano, escreveu em 1971 o ensaio intitulado “O futebol”. Nele o escritor analisa as diferenças entre o que ele chama de futebol de prosa (cerebral, esquemático, técnico) e futebol de poesia (imprevisível, gingado, inventivo). Ele diz que o primeiro tipo de futebol tem mais a ver com a realização europeia e o segundo com a realização latino-americana, mais especificamente a brasileira. Refiro-me a Pasolini pra trazer a minha constatação de que há um futebol de literatura periférica (esquemático e imprevisível; cerebral e gingado; técnico e inventivo) que, para além dos gêneros literários narrativo e lírico, é realizado por uma literatura em que as palavras e frases são pensadas, enchidas, energizadas, por construtos estéticos-sociais (escola de samba, dança de quadrilha, futebol, capoeira, música, principalmente o rap, a cultura hip-hop em geral etc.) realizados e exercitados fort...

Mãe, de Hugo Gonçalves

Imagem
Por Pedro Fernandes Hugo Gonçalves. Foto: Manuel Manso. Caso curioso o do romance, descrito algumas vezes como a forma mais instável da prosa. E isso é notável quando encontramos livros que assim se designam sendo apenas o romanesco enquanto possibilidade. Mãe , de Hugo Gonçalves, que por razões óbvias recebeu um título diferente do original no Brasil — em Portugal, saiu como Filho da mãe — é um desses casos. Trata-se do itinerário de um escritor às voltas por reconstituir a memória da mãe que morreu vitimada de um câncer quando ele ainda criança. A obsessão por essa ideia assume direções variadas e a de descrevê-la se demonstra nascer, primeiro como silêncio e fuga, e depois como fala e compreensão do acontecido, a história possível. Esses dois movimentos fundem-se e oferecem o conteúdo do livro, mas o conteúdo procurado, este se realiza — e daí porque falamos de um romance enquanto possibilidade — apenas como imaginação. Agora, não será isso mesmo um romance, o vivido perspectivado?...

Rubén Darío e o destino político da lírica americana

Imagem
Por Edgardo Dobry   Toda uma fase da obra de Rubén Darío, e mesmo de toda a poesia latino-americana, tem como pórtico um parágrafo do ensaio que José Enrique Rodó publicou em Montevidéu em 1899 intitulado “Rubén Darío, sua personalidade literária, sua última obra”:   “A poesia inteiramente antiamericana de Darío também produz certo efeito de descontentamento, ao se destacar no pano de fundo, ainda sem expressão e sem cor, de nossa Cosmópolis americana, toda feita em prosa. Incenso de boudoir que pretende ser diluído numa baforada de fábrica; pó de ouro parisiense o novaiorquismo portenho” (p. 37).   O léxico de Rodó é levemente agressivo: ofende precisamente pela estudada suavidade do “incenso de boudoir ” e do “pó de ouro”. Essa acusação condensava parte do que Juan Valera já havia dito sobre ele (“Vejo, então, que não há autor em castelhano mais francês do que você”), Clarín (“Coloridos e trombetas”) e Unamuno (“Eternismo e não modernismo é o que eu quero”) em termos e...

O poeta que inspirou a pirataria

Imagem
Por Martín Sacristán Protegido da noite que me encobre, Escura como o vão entre os mastros, Eu agradeço a quaisquer deuses que acaso existam Por minha alma inconquistável. Nas garras das circunstâncias, Não estremeci ou chorei em voz alta. Sob os golpes do acaso Minha cabeça sangra, mas não curvada. Além deste lugar de ira e lágrimas, Agiganta-se o horror das sombras, E, ainda assim, a ameaça dos anos Me encontra, e me encontrará, sem medo. Não importa quão estreito seja o portão, Quão cheio de punições o pergaminho, Eu sou o mestre do meu destino, Eu sou o capitão da minha alma.¹ William Ernest Henley, 1899. Arquivo Constable and CO. Ltd.ª Nelson Mandela, preso por defender o fim do racismo na África do Sul, repetiu os versos deste poema durante vinte e sete anos. De acordo com sua biografia, suas palavras o ajudaram a tolerar seu longo confinamento. Lidas no contexto de uma prisão, qualquer prisão, adquirem um significado profundo, ainda maior se, como o líder sul-africano, alguém fo...

A literatura como reparação

Imagem
Por Javier Munguía   Quando, em 13 de julho de 1942, foi capturada pelos agentes de polícia franceses que a entregariam às forças nazistas, Irène Némirovsky abandonava anos de perseguição. Já em 1936 ela escreveu a seu editor, Albin Michael, sem dar maiores detalhes para não se comprometer, que a situação havia se tornado muito difícil para ela. Se na França, onde tinha escolhido viver, era comum que judeus fossem submetidos a linchamentos sociais, a situação só se agravou com o início da Segunda Guerra Mundial, primeiro, e depois, numa França ocupada pelos alemães, com a promulgação do leis antissemitas, que deixaram o marido de Irène, um banqueiro, incapaz de trabalhar, e a escritora, sem o direito de publicar. Terá que fazer isso sob um pseudônimo até sua morte.   Exilada de sua terra natal, a Ucrânia, desde os 15 anos de idade, Irène se recusou a recuperar sua condição de fugitiva quando um agente sugeriu que ela fugisse para evitar os campos de concentração. Foi presa num...

Frank O’Hara. Seis dos “Vinte e cinco poemas à hora do almoço”

Imagem
Por Pedro Belo Clara Frank O’hara. Foto: Fred W. McDarrah        POEMA   Café instantâneo com natas ligeiramente amargas e um telefonema para o além que não parece estar a aproximar-se. “Ah pai, quero ficar bêbado muitos dias” da poesia de um novo amigo a minha vida precariamente sustida nas mãos videntes de outros, as suas e minhas impossibilidades. É isto amor, agora que o primeiro amor finalmente morreu, no qual não havia impossibilidades?     A UM PASSO DE DISTÂNCIA   É a minha hora de almoço, vou pois passear por entre os táxis pintados de ruído. Primeiro, pelo passeio onde trabalhadores alimentam os troncos sujos brilhantes com sanduíches e Coca-Cola, usando capacetes amarelos. Acho que os protegem da queda de tijolos. Depois pela avenida em que saias rodopiam nos calcanhares e levantam voo sobre os gradeamentos. O sol queima, mas os táxis agitam o ar. Observo pechinchas em relógios de pulso. Há gatos que brincam na serradura.   ...