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A festa, de Ivan Ângelo

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Por Henrique Ruy S. Santos As coisas mais terríveis são aquelas que nos escapam. — Georges Bataille 1     Muitos anos depois, Beckett diria que até as palavras nos abandonam e que com isso tudo está dito. — Enrique Vila-Matas 2   Ivan Ângelo. Foto: Renato Parada   Quando o autoritarismo está à vontade, e o cerceamento de direitos impera; quando o assalto à dignidade é a regra, e as anomalias políticas são a normalidade; quando a técnica está a serviço da tortura e da violação física e psicológica, e as ferramentas da modernidade são vassalas da gestão da morte. Quando tudo isso faz parte do cotidiano, por que fazer literatura? Assediados pela realidade, é o momento em que os autores engajados se perguntam: “de que vale o que escrevo se meus semelhantes morrem das formas mais cruéis todos os dias?” Surgem em profusão artistas que ecoam a perplexidade de Adorno, que se perguntava diante da brutalidade nazista: “a poesia é possível depois de Auschwitz?”   Mas a lit...

A rainha dos cárceres da Grécia, de Osman Lins

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Por Gabriella Kelmer Osman Lins publicou seu último romance em 1976. A obra, que sucede sua narrativa de maior sucesso e consequência crítica, Avalovara , de 1973, consiste em ainda outro passo da exploratória trajetória do autor frente a sua arte, a partir da proposição de um robusto nível de reflexão quanto ao desenvolvimento da produção literária.   A rainha dos cárceres da Grécia , título deste derradeiro romance, atua em dois níveis narrativos simultâneos. O primeiro corresponde à narrativa externa, cujo argumento se pode atribuir à pregressa relação entre um professor de Biologia, narrador, e sua amante Julia Marquezim Enone, já falecida. A mediação entre os dois ocorre, na obra, a partir da busca do primeiro por ocupar as horas ociosas e fixar algo da imagem fugidia da mulher perdida. Por isso, como alternativa que reconhece como mais proveitosa a si e aos eventuais leitores de sua escrita, evita a descrição da existência daquela e lança-se na leitura analítica de um manuscr...

Ut pictura poesis

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Por Eduardo Galeno Horácio. Gravura, 1606. Arquivo Biblioteca de Madri.   Há uma pequena passagem na Arte poética de Horácio (XXXIII) e um poema da mesma autoria que me fizeram relembrar alguns assuntos que atuam como fantasmas, seja individual ou coletivamente. A relação entre pintura e poesia seria o maior deles.   O que tem entre as duas artes? Precisamos pontuar brevemente uns contratos.   Como conhecemos, tanto a poesia como a pintura são enlaces de um fundo estrutural ligados a movimentos epocais de origem. Quando falamos de pintura e poesia — ou melhor, quando eu falo aqui de pintura e poesia —, falamos de pintura e poesia ocidentais, enraizadas no ambiente das antiguidades greco-romanas. Horácio e os afrescos de Roma têm um lugar (determinado), indicando a sobredeterminação de sentido histórico (que, é óbvio, vêm diretamente a nós, no século XXI).   Isso em si não impede nada. A universalização do enunciado pode convergir com o outro, principalmente se e...

Ismail Kadaré

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Ismail Kadaré. Foto: Leonardo Cendamo Durante a década de 1990 a presença da obra de Ismail Kadaré foi pródiga entre os leitores brasileiros. Muito dos seus livros, incluindo alguns dos mais conhecidos, chegaram nessa época abrindo entre nós o projeto de revelação da literatura albanesa. Assim é que algumas das expressões utilizadas por Bajram Begaj, presidente da Albânia, no comunicado por ocasião da morte de Kadaré em 1º de julho de 2024 não são gratuitas. O autor foi o “emancipador espiritual” dos albaneses, o “poeta dos mitos balcânicos” e um dos renomados nomes da literatura moderna.     A obra de Ismail Kadaré, no entanto, começa muito antes dos anos do seu boom entre nós. Mesmo o marco que o projetou internacionalmente, por exemplo, data ainda de 1963, com a publicação de O general do exército morto , quando a Albânia se encontrava sob domínio de Enver Hoxha. Este livro e com outros dos escritos do albanês logo o fez integrar as listas negras do governo comunista, forç...

Boletim Letras 360º #594

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Martin Amis. Foto: Jillian Edelstein LANÇAMENTOS   Martin Amis recupera períodos sórdidos de sua vida adulta e momentos de alegria e júbilo com amigos e mentores. As obsessões do autor, como a sombra de seu pai Kingsley Amis, também escritor, a rivalidade literária na cena cultural e o desejo sexual em contraste com a vida burguesa retornam em um texto explosivo .   Martin Amis construiu uma carreira literária ousada, com livros que deixaram sua marca pela verve desaforada, como Dinheiro , que trata de uma vida de excessos no auge do capitalismo, e pela coragem em tratar de temas espinhosos, como A zona de interesse , que retrata o cotidiano doméstico de algozes nazistas durante o Holocausto. Acossado pelo envelhecimento, o escritor decidiu em Os bastidores encarar o espelho e tentar dar conta da própria vida, em tudo o que ela teve de mais difícil, constrangedor e contraditório. É este o seu último livro — híbrido de romance, ensaio e memórias, e que poderia ser preguiçosame...

Correspondência alheia

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Por Alejandro Zambra Vincent van Gogh. Natureza-morta com prato de cebolas (1889). Museu Kröller-Müller.   É difícil ler a correspondência alheia sem pensar nas próprias cartas. Minha geração foi a última que escreveu e recebeu cartas. Só algumas, muito poucas, sobreviveram às mudanças.   O que buscamos nas cartas alheias? Segredos, revelações, detalhes? “Se a letra sair torta é porque bebi muita cidra esta noite”, escreve Sylvia Plath à mãe. “Te digo que estou triste. Te digo que estou só. Te digo que estou morta. Preciso de um ataúde e de um discurso ridículo”, lemos em uma atordoante carta de Violeta Parra a Gilbert Favre.   Às vezes as revelações não aparecem. A correspondência entre Mishima e Kawabata é, por exemplo, estranhíssima. Durante longas passagens presenciamos nada mais do que uma incansável troca de cortesias. Mishima manda um salmão e Kawabata responde com bocados de castanha e misteriosas palavras de alento: “Diga sua mãe o que quiser, sua escrita é...