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O rei das duas Sicílias, de Andrzej Kuśniewicz

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Por Jordi Corominas i Julián Andrzej Kuśniewicz. Foto: Czesław Czapliński   No dia 28 de junho de 1914, o arquiduque Franz Ferdinand morreu e levou para o túmulo o longo século XIX, aquele nascido com as luzes da tomada da Bastilha. O atentado em Sarajevo foi a centelha para o pavio ideal acender as fogueiras da Primeira Guerra Mundial, conflito que assombrou o Velho Mundo até materializar sua face, suicida, cadavérica e inauguradora de metamorfoses brutais.   Citaremos Cesare Pavese, a morte virá e terá seus olhos, podemos citar mil emblemas, mas a consciência do fim expressa na bomba de Gavrilo Princip enterrou um brilhante mal-estar que deu à Europa joias banhadas em ouro austro-húngaro, águia bicéfala que desde a sua decadência ofereceu esplendores sem precedentes, legados revolucionários engendrados em salões, cafés e numa Viena que naquelas horas pressentiu o desfecho trágico de uma utopia de nações, babeis e glórias culturais jamais reeditadas. Ainda ficou a memória e a...

Uma grafomaníaca secreta

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Por Ana Llurba Aurora Venturini. Foto: Nora Lezano   Aurora Venturini (1922 - 2015) foi uma escritora secreta, ou quase despercebida por muito tempo. Publicou por conta própria e em pequenas editoras antes de ganhar um prêmio destinado a obras novas e inovadores. Foi amiga de Evita, dividiu apartamento com Violette Leduc e passeou por Paris, onde morou por 20 anos, com Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir.   Sob o pseudônimo de Beatriz Portinari (em homenagem à famosa florentina idealizada por Dante), ela contou a história de Yuna Riglos, uma artista precoce com uma leve deficiência mental, numa prosa desenfreada em que se desenvolvem com franqueza perversa os segredos macabros e intimidades de uma família de classe média baixa na Argentina dos anos 1940. O romance se chamava As primas .   Um júri formado por escritores como Rodrigo Fresán, Alan Pauls e Guillermo Saccomano, entre outros, deu atenção a essa voz radical que vinha de um original datilografado com marcas d...

Boletim Letras 360º #542

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Italo Calvino. Foto: Ugo Mulas. LANÇAMENTOS   Em comemoração ao centenário de nascimento de Italo Calvino em 2023, a edição de  Todas as cosmicômicas  ganha ilustrações coloridas de Marcelo Cipis e projeto gráfico especial .   Todas as cosmicômicas  resulta da reunião de dois livros que Italo Calvino publicou na década de 1960: “As cosmicômicas” e “T = 0”. São narrativas que começam com um enunciado científico (ou pseudocientífico) sobre as origens do universo e dos planetas e outros temas do passado cósmico remoto para dar, em seguida, a palavra ao personagem central de todas elas, que tem o palindrômico e impronunciável nome de Qfwfq. O livro ainda inclui os “contos dedutivos”, nos quais o narrador parece mais interessado em examinar as ramificações de uma ideia do que em contar uma história, desenvolvendo uma espécie de raciocínio obsessivo, paranoico e labiríntico não estranho a certos textos de Kafka. Os textos, que reafirmam a posição de Calvino como um d...

Bolor

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Por David Toscana Ilustração de P. Brissand para Eugénie Grandet   Em Eugénie Grandet , Honoré de Balzac descreve a casa do Sr. Grandet no distrito de Saumur com adjetivos nada lisonjeiros e diz que “As duas pilastras e a abóbada que formam a abertura da porta tinham sido, como a casa, construídas com tufo, uma pedra branca peculiar à região de Loire e tão mole que sua duração média é de apenas duzentos anos.”   A pedra é porosa e absorve uma boa quantidade de umidade, por isso pode ser péssimo isolante no inverno e tende a desenvolver mofo. Há uma grande quantidade de edifícios na área do Loire, incluindo muitos pequenos castelos ou châteaux , que usam este tufo. Alguns deles estão de pé desde o século XV, sugerindo que Balzac tem mais habilidade como prosador do que como pedreiro.   Mas não é meu desejo observar levantamentos rupestres, mas apontar que para Balzac havia um defeito em uma construção feita para durar duzentos anos. Caminhando por qualquer cidade, pode se...

Passeio ao farol, de Virginia Woolf

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Por Gabriella Kelmer Virginia Woolf. Foto: Man Ray                        No mês de junho deste ano, a Companhia das Letras publicou, sob o selo da Penguin Companhia, uma nova versão do quinto romance de Virginia Woolf, To the lighthouse , lançado em maio de 1927. A nova tradução, de Paulo Henriques Britto, recebeu o título de Passeio ao farol , escolha que, perfeitamente compreensível, elimina uma das possibilidades do título em inglês (que poderia ser dedicado ao farol, além de tratar da ida até ele). Neste ponto, no entanto, encerram-se todas as nossas considerações tradutórias. Ao romance.   Elaborado a partir de um processo de criação que sabidamente, conforme as correspondências da escritora, buscava, na ficção, algo de sua própria infância e da imagem de seus pais, a narrativa centra-se na família Ramsay, que viaja à ilha de Skye, no arquipélago escocês das Hébridas, durante dois verões, se...

Depois da quarentena

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Por Agustín Sánchez Vidal Luis Buñuel. Foto: Jack Garofalo. As quatro décadas que se passaram desde a morte de Luis Buñuel poderiam ter se tornado um dos muitos purgatórios reservados para aqueles que desfrutaram de um reconhecimento em vida que depois desapareceu com ele. Mas no seu caso não tem sido assim. Por um lado, porque nunca teve uma projeção excessiva entre o público comum à maneira de um Alfred Hitchcock. E, ainda, pela falta de enfoque derivada de uma carreira atribulada que apagou sua trajetória por muitos anos até terminar com o Oscar para O discreto charme da burguesia (1972) e a homenagem em Hollywood assinada pelos quadros superiores de seus grandes mestres. Apenas o tardio livro de memórias Meu último suspiro (1982) começou a lançar as bases para uma certa perspectiva coerente, apesar de tantos preconceitos ou omissões. E a partir daí, seu cinema, como um estopim retardado, foi se tornando cada vez mais influente. Não apenas sobre outros diretores, mas também entre ...