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Seis poemas de “Numa folha, leve e livre”, de António Ramos Rosa

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Por Pedro Belo Clara António Ramos Rosa. Foto: Nuno Ferreira Santos.   Lúcido rosto de uma haste cálida de frementes veias tão meu como o espaço em que vogava entre nuvens e árvores   Era uma folha que entre folhas flutuava respirando a maresia viva de um mar que estava longe e perto e em voluptuosa leveza o peito abria-se   Que adolescência aérea partilhada em júbilo fresquíssimo com o deus dos elementos vivos na sua glória actual embriagadamente efémera como se nascêssemos continuamente em transparente plenitude     ***     Amar as palavras é inventar o vento através da noite em pleno dia   Se desapareço grão por entre grãos é porque um deus adormece como um astro imóvel polvilhado de pólen   Onde estiver serei o sono do amor num claro jardim e como se estivesse morto as ervas hão-de romper das minhas unhas verdes e a minha boca terá a ébria frescura da plenitude do espaço     ***     Creio nas palavras transparentes...

Boletim Letras 360º #553

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Bernardo Carvalho. Foto: Edilson Dantas LANÇAMENTOS   O novo romance de Bernardo Carvalho é descrito como feroz e comovente sobre as complexas relações entre pai e filho .   Durante a ditadura brasileira, um pai e seu filho de onze anos partem numa viagem à Amazônia. Num bimotor sobrevoam a floresta. O pai, um empresário em conluio com militares ligados ao governo, tem a tarefa de negociar a madeira da região com grupos estrangeiros. Enquanto o país sucumbe em tenebrosas transações, o menino se envolve mais e mais na leitura de uma novela de ficção científica na qual, após o fim do nosso planeta, um grupo de eleitos parte numa jornada exploratória do espaço. Tensionada todo o tempo entre a perspectiva do menino que vive a história enquanto ela acontece e a do adulto que rememora, a voz que narra este romance nos convida a olhar para a tragédia de um país. Reflexão incômoda sobre a história do Brasil dos últimos sessenta anos, Os substitutos mescla temas ecológicos urgentes, p...

Samuel Beckett não se faz esperar

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Por Matías Serra Bradford Samuel Beckett. Foto: Henri Cartier-Bresson   A Segunda Guerra ficara para trás numa vida em que era difícil virar cada página. A princípio, em Paris, Samuel Beckett alistou-se na resistência contra os nazistas; no fim, ele acabou ao volante de uma ambulância na Normandia. Pelo meio, refugiando-se em Roussillon, na Provença, escreveu Watt para não perder a cabeça (e é um livro que pode devolvê-la ou recolocá-la a quem o leia).   De 1947 a 1950, sob uma febre repetível, escreveu as três obras que, numa maneira muito própria, desmantelariam o horizonte de papel da ficção: Molloy , Malone morre e O inominável . De repente, os escombros começaram a oferecer uma visão privilegiada: o romance refundado como uma capital de ruínas.   Chegara um escritor que não tinha medo de prender os dedos numa porta. Era uma das poucas epifanias que escapara a outro garoto, seu amigo e cúmplice James Joyce: a gratuidade de narrar sem motivo . E a tese consequente: q...

As visitas que hoje estamos, de Antonio Geraldo Figueiredo Ferreira

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Por Pedro Fernandes O romance é um repositório de vozes. Essa qualidade permite que essa forma narrativa possa assumir infinitas feições, algumas delas, assimiladas a partir de linguagens ou de práticas linguageiras distintas da literatura, outras, a partir do exímio tratamento estético burilado na forja do romancista. No primeiro caso, encontramos os romances que se alimentam do tecido social e, no segundo, os que se alimentam da imaginação criativa e por vezes antecipam determinada experiência do mundo exterior. Nos dois casos, entretanto, a forma ao mesmo tempo que se renova constitui lentamente uma história que é parte indissociável na cultura, na formação do pensamento, no curso das ideologias e na milenar arte de narrar.   Costumamos distinguir Ulysses , de James Joyce, como o ponto mais radical ou a virada na história da forma romanesca. É verdade que os modelos mais tradicionais do romance nunca deixaram de existir e existirão enquanto encontrar um leitor neles interessado....

“O conde”, o filme que aborda Pinochet como um vampiro

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Por Alonso Díaz de la Vega   Gostaria de escrever sobre  O conde (2023) com absoluta raiva. Dirigido por Pablo Larraín, cineasta chileno complacente e inoportuno, o filme é protagonizado por Augusto Pinochet (Jaime Vadell), que, de costas para a historiografia, o ativismo e seus biógrafos, acaba sempre sendo um vampiro caprichoso e vingativo mas, mais do que nada, travesso. Quando o confrontam pelos crimes da sua ditadura, ele responde como uma criança que, depois de assaltar a lata de doces, se justifica porque não lhe deram o suficiente para comer. “De verdade, verdadeira”, diz o ditador vampiro, “o que tenho sido é uma vítima”.   É claro que a intenção de Pablo Larraín não é absolver Pinochet mas zombar dele, agora, a vida de um criminoso desse tipo é delicada para ser abordada a partir do humor; depois de tudo, Charles Chaplin caricaturou Hitler em O grande ditador (1940) antes que o mundo se inteirasse do Holocausto. As leis racistas de Nuremberg já existiam, é ver...

José Gorostiza para o novo século

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Por Luis Bugarini   A poesia é um bem social que se materializa quando os versos entram em contato com o leitor. Nos registros poéticos mais felizes, nos marcos distinguíveis à primeira vista na profusa história da criação literária — digamos, as obras de Ausiàs March ou Du Fu —, o instante poético é uma operação de inteligência e não uma mera manifestação emocional de seu autor, o que requer uma ação idêntica para se comunicar com seus potenciais destinatários.   1 Luz e poesia   Na leitura da poesia mais elevada, duas inteligências se olham para falar a partir de uma distância fora do tempo, independentemente de o poeta estar morto há quinhentos anos ou ter apenas vinte anos.   Essa operação encontra-se hoje em crise. Tudo se opõe à leitura e pior ainda se for aquela que exige amor ao detalhe. O tempo vigente exige habilidades para se concentrar e abandonar as intermináveis ​​preocupações e distrações da vida ultramoderna: chame-se dispositivos eletrônicos com qu...