Górki, os engenhos da alma e o novo homem soviético



Por Javier Bilbao




É verdade que a empatia não era um dos pontos fortes de Stálin, não que fosse mal em julgar a psicologia dos que o rodeavam, fosse para detectar traidores ou para se servir deles com mais eficácia. Maksim Górki o calou certa vez: “És um homem vaidoso, devemos prendê-lo com correntes ao partido”. Assim, o escritor que passou um tempo autoexilado da União Soviética, fora do alcance repressor do regime, alguém que havia mostrado em ocasiões um critério independente e que pode converter-se totalmente num símbolo da dissidência ante os olhos do mundo, terminou sendo vigiado na volta à redoma, onde teria lugar uma relação simbiótica entre o intelectual e o poder extraordinariamente proveitosa para ambos. De maneira que sua cidade natal Níjni Novgorod passou a se chamar Górki, assim como uma das principais ruas moscovitas; recebeu a Ordem de Lênin, uma mansão e uma casa de campo junto a substanciosas somas de dinheiro; foi investido do cargo de presidente da União de Escritores Soviéticos e depois da sua morte o próprio Stálin foi um dos carregaram no ombro o caixão (embora depois, durante os julgamentos de Moscou de 1938, tenha sido dito que na verdade foi assassinado pelo serviço secreto). Alcançou oficialmente o status de “alma da literatura soviética” e soube corresponder de maneira proporcional em sua função de ideólogo e propagandista do que Lênin chamava o Novo Homem Soviético, pois um novo sistema político devia ser capaz de criar uma natureza humana à sua altura. Portanto, a figura de Górki é um bom fio condutor para conhecer as circunstâncias de sua época e do novo regime que trouxe consigo a revolução russa. Nisso nos centraremos a seguir.

Desde seu nascimento em 1868 sofreu tantas calamidades que daria um menino dickensiano e não o foi porque ele próprio tratou de descrever-se em Infância. Com quatro anos perdeu o pai, com onze presenciou a morte da mãe passando a ser criado pelos avós e tios que o maltratavam – inclusive chegou a apunhalar seu padrasto em certa ocasião. O livro citado conclui com seu avô dizendo-lhe aos doze anos: “Bem, Leksiei, você não é medalha para ficar pendurado no meu pescoço, aqui não tem lugar para você, então vá ganhar o seu pão e ser gente...” E saiu; e o que encontrou foi ainda pior, se era possível – deambulando por diferentes trabalhos até que com dezenove anos, depois de ser despedido do trabalho de ajudante de cozinheiro de um barco, tentou se matar com tiro sem que a bala chegasse ao coração.

Todas essas duras vivências que foi acumulando se converteram pouco a pouco em material literário que publicou com crescente êxito sob o pseudônimo de Górki (Amargo, em português). Em princípios do século XX já era uma figura pública, conhecido tanto por sua obra como por seu ativismo contra o regime czarista. A repressão exercida então fez com que o escritor fosse radicalizando cada vez mais sua postura, o que levou a travar amizade com Lênin, a quem definiu de maneira certeira como “uma guilhotina pensante”, e depois de exiliar-se, primeiro nos Estados Unidos (onde escreveu A mãe, texto ao qual logo voltaremos) e posteriormente em Itália.



Depois de regresso à Rússia em 1913 continuou conspirando contra o poder, embora no momento em que chega a revolução teme a violência que então desabrocha; considera que Lênin e Trótski “não têm nem a mais remota ideia do que significa a liberdade ou os direitos humanos, estão já intoxicados pelo nauseabundo veneno do poder” e os qualifica de “incendiários que submetem o povo russo a uma cruel experiência”. Inclusive chega a organizar vigílias com outros intelectuais frente a monumentos e palácios para proteger esse legado cultural da barbárie das massas. Depois chega a guerra civil e numa sociedade empobrecida exerce uma atividade filantrópica juntamente com diversos escritores e artistas que se aproximam pedindo ajuda, consegue dinheiro ou intercede por eles ante as implacáveis autoridades que os perseguem. Em 1921, por motivos de saúde, além de determinadas pressões de Lênin (“Me vejo obrigado a dizer-te: muda radicalmente de circunstâncias, de ambiente, de residência, de ocupação; do contrário, a vida te será amarga eternamente”), regressa à Itália, onde permanecerá os anos seguintes.

Aí recebia os amigos e vivia tranquilamente em companhia de várias pessoas entre as quais seu grande amor, um secretário pessoal e seu filho adotivo Maksim Peshkov. Posteriormente circularam rumores de que esse filho foi seduzido por um homossexual e esse seria supostamente o motivo porque anos depois, em 1934, Stálin proclamou uma lei que proibia esta prática; Górki escreve então: “extermínio aos homossexuais e o fascismo desaparecerá. Nos países fascistas a homossexualidade, que arruína a juventude, floresce sem castigo”. Sobre a heterossexualidade não mantinha a mesma intransigência, embora incomodasse que fosse tratada em público. Considerava que devia manter-se como um mistério: “Há muitas janelas abertas”, dizia, de maneira que as pessoas já não confiavam em sua intuição e todos os segredos humanos “foram expostos e arejados, inclusive os em torno à sexualidade”.

Essa atitude fazia a sexualidade coincidir com uma das correntes que competiram na sociedade russa dos anos vinte – a hedonista e a ascética, poderíamos denominá-las – até que finalmente se impôs a segunda. Inicialmente a chegada da revolução trouxe consigo uma liberação dos costumes, a legalização do divórcio e do aborto, inclusive a reprovação de toda forma de romantismo. Num conto de Panteleïmon Romanov de 1926 se dizia: “nós não temos amor, só relações sexuais, porque depreciamos o amor como ‘psicologia’, enquanto que só a fisiologia tem direito de existir. As mulheres facilmente ficam juntas com seus camaradas homens, por uma semana, por um mês, ou espontaneamente por uma noite. E qualquer um que vá em busca de algo mais no amor é ridicularizado como um idiota e uma pessoa mentalmente deficiente”.

Mas o próprio Lênin recusava as teorias sobre o amor livre como um passatempo com que divagavam os intelectuais, eram algo além disso que podiam desestabilizar a sociedade e ser perigoso para a reposição demográfica; assim, quase ao mesmo tempo, surgiram teorias como a do psiquiatra Zalkind Aron Borisovich, quem propôs nada menos que “Os doze mandamentos do sexo revolucionário”. Neles se recusava a promiscuidade, a frequência excessiva, as perversões, a coquetearia, a precocidade ou os desejos do sexo pelo sexo e se reivindicava a importância da concepção de um filho como fim último. A recomendação favorita das autoridades era clara: sublimar a energia sexual no trabalho. O acelerado processo de industrialização pode adaptar os até então camponeses a uma atividade laboral diferente a que estavam acostumados; o novo homem soviético devia ser produtivo e o consumo de álcool, a luxúria, as festividades religiosas, o egoísmo e a indisciplina eram os demônios internos que exorcizavam sua alma.

Mas voltemos a Górki. Em 1928 estava já com sessenta anos e quem governava então a URSS, Stálin, pensou que seria uma boa ideia trazê-lo de volta ao país. A nostalgia fazia-lhe doer e sofria certos apuros econômicos, assim talvez não fosse necessário insistir muito para tanto. Apesar de tudo, vários agentes secretos receberam a missão de enviar-lhe cartas fingindo ser admiradores de toda idade e condição que perguntavam insistentemente como podia preferir viver na Itália fascista a Rússia socialista. Nosso escritor tonto não era e percebia nisso certa malícia, pois segundo comentou com um amigo: “eu toco cartas com esses meninos e, por cada carta que envio, recebo vinte e dois. Coincide exatamente com o número de tutores dos diferentes departamentos. Curioso, não é verdade?” Assim, nesse ano iniciou uma série de cinco viagens até terminar por se instalar definitivamente de volta ao seu país. A recepção foi espetacular, foi tudo um êxito propagandístico do regime com alguém que de outra forma poderia ter sido perigoso e Górki... se deixou levar.



A partir daí abandonou qualquer escrúpulo moral. No ano seguinte, sem ir mais longe, se prestou a uma visita guiada ao gulag de Solovki com o fim de negar um livro inglês em que se descrevia a prisão nos tons mais cruéis. Para recebê-lo o centro se converteu no que se conhece como uma “aldeia Potemkin”, que vem a ser como o que fez Villar del Río para receber os estadunidenses no filme de Berlanga. Ele foi consciente disso, pois segundo conta Alexander Soljenítsin, os presos como sutil forma de protesto, fingiam ler os jornais que momentos antes haviam sido entregues, mas o faziam sujeitando-se de revés; assim que Górki se aproximou de um deles, enganou-o sem trocar palavra. Também pode manter uma conversa com um prisioneiro, que lhe relatou diversas formas de tortura a que eram os presos submetidos, e o escritor teria saído da reunião com lágrimas nos olhos. Tudo isso não o impediu de desfazer-se em elogios na dedicatória que deixou no livro de visitas, talvez revestida de certa ironia que em todo caso não molestou as autoridades. Noutras ocasiões foi ele mesmo o organizador de atos para o regime, como o de 1932, quando reuniu em sua casa um grupo de escritores que considerava representativo do que devia ser o espírito soviético numa cena que teve como convidado de honra o próprio Stálin, quem lhe dedicou este brinde:

“Nossos tanques são inúteis quando quem os conduzem são almas de barro. Por isso, afirmo que a produção de almas é mais importante que a produção de tanques. Alguém acaba de observar que os escritores não devem permanecer inativos, que devem conhecer a vida de seu país. A vida transforma o ser humano e vós tereis que colaborar na transformação de sua alma. A produção de almas humanas é de suma importância. E por isso levanto minha taça e brindo por vós, escritores, engenheiros da alma!”

As utopias políticas, desde Platão, sempre foram conscientes do obstáculo fundamental que expressa bem um ditado anglo-saxão: “Podes levar o cavalo ao bebedouro, mas não podes fazê-lo beber”. Pouco serve mudar radicalmente as estruturas sociais se não se muda também as pessoas, pois repetirão outra vez no novo modelo social os velhos vícios. A esperança do regime soviético, como vemos, estava depositada no âmbito da cultura. Os romancistas, artistas e cineastas, como modernos Pigmalião, deviam esculpir um homem que colocasse à frente do interesse individual o coletivo, o futuro antes do presente e a obediência à autoridade antes de seus próprios critérios. Para isso deviam criar modelos de conduta, exemplos morais, e mais visível de todos eles foi o da obra A mãe, essa que mencionamos acima em relação ao primeiro exílio de Górki; a obra chegou a ser o modelo para o chamado realismo socialista.

O livro foi adaptado para o cinema em 1926. Numa família, o pai, um velho bêbado taciturno e violento (o proletário alienado do passado) encarna o oposto a seu filho, um comprometido sindicalista, quando aceita colocar-se ao lado do patrão durante uma greve. Nos embates, o pai morre e a polícia do czar vai à casa do filho para prendê-lo como suspeito de haver encabeçado as revoltas. A mãe não quer ficar, além de viúva, sem o único filho, e então se presta a colaborar com a autoridade. Mas o sistema podre até suas bases e os juízes não entendem de justiça e o filho é condenado sob o olhar angustiado de uma mãe que toma consciência de que o traiu sem pretensão. Agora sabe que ele tinha razão, de maneira que são os pais quem devem aprender com os filhos e estes devem estar dispostos a questionar os pais. É preciso romper com a tradição, nos diz Górki, antes de concluir a história com um desgarrador desfecho que nos mostra mãe e filho como mártires da causa revolucionária. E aqui a expressão “mártir” não é gratuita, mas o irônico de tudo isso é que o escritor encontrou a inspiração na igreja ortodoxa russa, nas vidas dos santos e no próprio sacrifício de Cristo. É algo que não deixa de ter sua graça se temos em conta a onda antirreligiosa que sacudiu o país desde o começo dos anos vinte. Aqui podemos ver uma série de cartazes em favor do ateísmo da época bastante curiosos.

Por sua vez, Górki cada vez estava mais imerso em seu papel de padrinho das letras soviéticas. No ano seguinte daquela cena em sua casa, em 1833, liderou uma expedição de cento e vinte escritores escolhidos por ele mesmo para ver de perto o método de transformação da alma mais drástico: a reeducação mediante o trabalho no gulag. Concretamente deviam dar conta da construção do canal Belomor, uma gigantesca escavação que uniria o mar Báltico e o mar Branco, próximo da fronteira com a Finlândia, para que requereu mais de cento e vinte mil prisioneiros que trabalharam em condições excecionalmente duras, pois se estima que algo em torno da décima parte deles morreu nas obras. Seu crime? Alguns casos eram presos comuns e noutros dissidentes políticos de qualquer tipo. Circulava então uma anedota a respeito: “Quem cavou o canal? O lado direito os que contavam piadas e a esquerda os que as escutavam”. O canal no fim não teve a profundidade suficiente para ser utilizado pela maioria dos barcos mercantes, mas o importante era seu uso propagandístico e para isso Górki publicou Belomar, uma coleção de narrativas contadas por esse grupo de escritores que tomavam as vidas daqueles trabalhadores do gulag como exemplos de superação.

Naturalmente, a propaganda no podia se limitar a um livro por mais prestigiosa que fosse sua responsabilidade e também contou com um documentário sobre. O que nos leva à importância que o regime soviético deu ao cinema. Trótski foi o primeiro a vê-lo: “Esta arma, que está pedindo gritos para ser utilizada, é o melhor instrumento de propaganda técnica, educativa e industrial, propaganda contra o álcool, propaganda para o saneamento, qualquer tipo de propaganda que desejes, propaganda acessível a todos”. Bem, a propaganda é necessária para que a gente se adapte ao sistema e não o contrário e o cinema é uma ferramenta de propaganda muito útil ao facilitar a chegada da mensagem a todos. Mas isto nos leva de novo ao problema de fazer beber o cavalo no bebedouro. Como conseguir que as pessoas desejem ver esses filmes propagandísticos? Aí entra em jogo o talento artístico, a necessidade de contar com o espectador, não já como um receptor puramente passivo mas com alguém que demanda certas emoções, narrações e personagens que conectem com seus interesses. A propaganda no estado puro não é eficaz, tal como descobriram alguns cineastas. Tal como sublinha Peter Kenez em Cinema and Soviet Society:

“A partir do baixo número de filmes que fizeram com conteúdo dramático alguém suspeita que os diretores tiveram dificuldades em fazer interessantes os filmes sobre esse tema e portanto procuraram evitá-los. Pode ser, embora não possamos saber com certeza, que os públicos preferiram outros assuntos. Os trabalhadores não queriam ver-se em seu tempo livre. Eles queriam heróis maiores que a vida, e contrariamente à ideologia isso não se encaixa bem no ambiente da fábrica”.



Por isso, uma boa opção é a de evitar a competência estrangeira. Proibindo ou limitando o cinema de outros países, particularmente as produções de Hollywood, deixava o espectador sem muitas opções de entretenimento. E se, por exemplo, um gênero como o western tinha muito sucesso fora das fronteiras, sempre cabia fazer uma adaptação na forma de ostern. Assim, com maior ou menor sutileza, de uma forma ou de outra, a fórmula propagandística que se tenta projetar era facilmente distinguível e competida diretamente com o romance. Girava sempre em torno da tomada de consciência do protagonista (o que agora os anglo-saxões em outro contexto político chamam redpilling, remetendo a Matrix) e tinha com frequência três figuras arquetípicas, cada uma com suas qualidades morais e psicológicas: o líder de partido, o homem comum e o inimigo. Um exemplo curioso, visto hoje em dia, temos na comédia musical stalinista Tanya, cujo diretor, Grigori Aleksandrov, teve ligações diretas com Stálin... e com Górki, certamente, pois todos os caminhos nesse período levam a ele. A história é uma versão livre de Cinderela, com uma empregada de uma fábrica têxtil que à base da disciplina stalinovista logra ascender no partido até chegar a tornar reais seus sonhos, isto é, ser membro do Soviet Supremo. Vale a pena em particular uma cena com carro voador enquanto se canta as grandezas da URSS; já sabemos onde se encontrou a inspiração para certo momento de Harry Potter e a câmara secreta.

Retomando de novo nosso escritor, encontramos noutro ano, já em 1934, e chega ao seu ponto alto como paladino das letras e da propaganda russa: sua nomeação como presidente da União de Escritores Soviéticos, cujo primeiro congresso durará pouco mais de duas semanas. Em seu discurso inaugural, além de definir as vias pelas quais devia transitar o realismo socialista, Górki retomou a expressão de “engenheiros da alma” para si mesmo e seus colegas. Ele foi a grande estrela de um evento generoso em aplausos e em elogios à sua pessoa. Ficavam muito distantes já aqueles dias da infância e adolescência em que tanto sofreu, aquele momento em que tentou se suicidar... embora agora, de verdade, a morte se aproximava mais que nunca.

Em maio de 1935, o avião maior de seu tempo, chamado Maksim Górki, estreou o que poderia se entender como um mal augúrio (curiosamente se tratava de um avião dedicado à propaganda, com uma imprensa a bordo e grandes alto-falantes em sua fuselagem). Em junho de 1936 a tuberculose crônica que dominava Górki se agravou de forma que apenas podia sair da cama. Mas queria seguir tanto da atualidade e dado seu estado decidiu fazer com ele algo parecido ao que podemos ver no filme Good bye, Lênin!; para isso se editaram exemplares de Pradva especificamente para ele em que se retiraram as más notícias e ampliou-se o tom otimista. Não sabemos se isso melhorou seu ânimo, mas não a saúde, dado que morre no dia 18 desse mês.

Depois de sua morte, entre seus papéis se encontraram textos extraordinariamente críticos a Stálin, a quem definia como uma pulga gigante “com uma sede insaciável de sangue da humanidade”. Quem ia dizer que até o mais oficial de todos os escritores tinha pensamentos proibidos, criminais. Como grande sorte das letras soviéticas se vê que quis cultivar todos os gêneros, inclusive o chamado “escreve para o caixão”, tão praticado por outros escritores coetâneos e que só viriam à luz várias décadas depois. Por que então havia regressado de um exílio italiano e havia se prestado a toda esse jogo? Pode ser que, como disse Stálin, se tratasse de um homem vaidoso e esse vício – o pecado favorito do Diabo, segundo aquele filme onde o interpretava Al Pacino – não há engenharia da alma que o consiga repeli-lo.

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