Carlos Drummond de Andrade e as tentativas de ser outro

Por Pedro Fernandes


Recortes do próprio Carlos Drummond para a construção de uma linha do tempo sobre sua vida. Acervo Fundação Casa de Rui Barbosa / Arquivo Museu de Literatura Brasileira. Fundo Carlos Drummond de Andrade. 


Em 1925, Carlos Drummond de Andrade editou o primeiro número de A revista. Era ainda um jovem desprovido de qualquer ambição literária como terá admitido mais tarde. Embora essa condição seja facilmente questionável não deixa de ser aceitável. Apesar de ser filho de família de posses, seu destino parecia fadado ou à vida pacata da minúscula Itabira ou na tímida Belo Horizonte. As estadias fora do interior de Minas Gerais, primeiro na capital, e depois em Nova Friburgo, no Rio de Janeiro, para concluir os estudos básicos, terão contribuído decisivamente para a formação de um espírito totalmente alheado ao destino – este que poderá ter sido visto, como ainda é para a maioria dos jovens dos interiores desassistidos do Brasil ou de lugares silenciados pela prepotência dos grandes centros, como uma desbragada fatalidade.

A mudança da família para Belo Horizonte em 1920 serviu de alguma maneira para suavizar no jovem esse sentimento. Mas, o casamento com Dolores de Morais reativará velhos fantasmas uma vez lhe inflige novas necessidades de trabalho. Por isso, outra vez rumará para sua cidade natal, seis anos depois de parecer estabilizado na capital mineira. Na estadia que durou poucos meses foi professor de Geografia e Português no Ginásio Sul-Americano.

Numa entrevista ao jornal O Estado de São Paulo em 28 de abril de 1985, o poeta tocava na atividade de jornalista exercida desde muito cedo – sua estreia, pode-se definir de quando foi estudante no Colégio Anchieta, em Nova Friburgo, entre 1918 e 1919 no jornalzinho da escola Aurora Collegial uma vez que daqui, por gosto e capricho, se seguiu uma contínua atividade, em tempos, febris, como cronista exercida pelo restante da vida. Dizia na entrevista que o jornalismo fora sua vocação. “Gostaria de ser jornalista, apesar de ser uma profissão ingrata.”

Muito antes, no intervalo de publicação de A revista, que só durou três números entre o biênio 1925-26, comunicava em carta a Mário de Andrade seu novo emprego como redator no Diário de Minas: “Sabe que me mudei de Itabira? Mudei. Não pretendo mais voltar pra lá. Um amigo camarada me arranjou um lugar de redator no Diário de Minas, jornalzinho do PRM, de sorte que larguei a geografia pra pegar no oficialismo.” O tom decisivo deixa prevalecer certa dose de entusiasmo por conseguir estabelecer uma porta de acesso a um mundo fora dos limites provincianos onde nasceu e se criou.

A publicação de A revista, fundada com Martins de Almeida, Emílio Moura e Gregoriano Canedo, foi já produto de um homem que encontrava na escrita uma possibilidade de acesso a outra realidade que não a da roça, para utilizar o termo com o qual se refere à capital mineira na referida carta ao agitador da Semana de Arte Moderna. Se não isso, uma tentativa de construir seu próprio destino, sem condenações e fatalismos. Todo esse itinerário prova que sua ambição literária esteve escondida por entre a construção primeiro de um hábitat que o afastasse da sentença de ser um mineiro miúdo, um José.

Se a aproximação ao jornalismo e a criação de um periódico à maneira daqueles recorrentes na difusão da doutrina modernista ainda for insuficiente, uma visita à profusão de correspondências com figuras que tinham algum trânsito pela cena literária se oferece como mais uma possibilidade: primeiro os de sua terra, depois os que vivam entre Rio de Janeiro e São Paulo. Entre 1921 e 1924, sua rede de comunicação por essas três cidades inclui Abgar Renault, Aníbal Machado, Pedro Nava, Manuel Bandeira, Oswald de Andrade, Tarsila do Amaral e Mário de Andrade, o grande impulsionador de consciências inquietas como a do tímido rapaz de Itabira. Os esforços foram muitos e diz muito de como o Brasil é este país que se vinga dos seus próprios filhos; embora há quem diga o contrário, a energia dispendida para construir um teto todo seu certamente atenta contra a dinâmica da criação.

Carlos Drummond de Andrade em Ouro Preto. Acervo Fundação Casa de Rui Barbosa / Arquivo Museu de Literatura Brasileira. Fundo Carlos Drummond de Andrade. 


O primeiro número de A revista, de julho de 1925, apresenta uma situação inusitada, produto dessa ambição por um lugar, que ainda não é puramente literário; dentre os nomes que contribuem para o periódico – exceto Mario de Andrade, Pedro Nava e Abgar Renault – quase todos são hoje desconhecidos. Carlos Drummond de Andrade foi o autor de muitos dos textos aí reunidos: o editorial sem assinatura, “Para os céticos”; um texto de opinião, “Sobre a tradição em Literatura”; um conjunto de textos da seção “Marginália”, uns sob o pseudônimo de Antônio Crispim “Enterro da rua pobre”, “As opiniões de Chiang-Tzú” e “A estrela”; e outros não assinados, “Os criados do quarto da literatura” e “A morte de Pierre Luÿs”.

O que esse episódio em particular demonstra é um poeta que, à maneira de Fernando Pessoa, flertou com as fronteiras da heteronímia, se reparamos que a criação de Antônio Crispim e dos anônimos constituem um exercício de persona do seu criador pela dicção verbal, a visão de mundo, a estilística e forma literária variadas e distintas. O que sintetiza esse trabalho de variedade escritural – que não alcança, obviamente, o caso do poeta português –, não se reduz à imposição das necessidades. Estas formam apenas a atmosfera favorável à vivacidade criativa e natureza comum ao poeta. É possível recorrer aqui à teoria poética expressa por Novalis para quem o gênio poético seria uma pluralidade, uma sociedade interna de indivíduos diferentes, heterogêneos, em diálogo interior como um mesmo ser*.

Essa condição múltipla reveste-se da necessária determinação espiritual do poeta – e paradoxalmente – da impossibilidade de ser outro. Antes que alguém levante o caso Pessoa para justificar o contrário dessa possibilidade, um lembrete: na heteronímia cada um é um à sua maneira, dotado inclusive da mesma determinação de ser outro, logo, não estamos diante de uma continuidade pura e simples do criador. No âmbito do universo pessoano, isso fica notável sobretudo na colocação de Alberto Caeiro, um heterônimo, como o mestre de todos os demais, inclusive do próprio Fernando Pessoa.

Antônio Crispim ainda teve vida fora de A revista. No Diário de Minas publicou diversas crônicas. Dividiu lugar no jornal com Barba Azul. Mas, mesmo alcançando fronteiras além das fabricadas pelo seu criador, são nomes por ele reivindicados ou ainda constituem estreita relação com o campo ideológico de Drummond. Quer dizer, mesmo assumindo-se com outro nome, como fingimento, pesa a fragilidade da identidade uma vez ser da natureza do pseudônimo desempenhar o papel de máscara – o que no poeta mineiro se justapõe de maneira eficiente pelo seu comportamento de recato. A máscara visa esconder o escritor; no caso do autor de A revista, da acusação de peça amadora frente a outros trabalhos tão-melhor executados. Já nos jornais, essa possibilidade se amplia por certa posição de não se expor e vigiar à espreita as opiniões alheias. É o caso, por exemplo, dos textos de crítica literária que assina com os pseudônimos de “O Observador Literário” na seção “Conversa Literária” na revista Euclides, em 1941, e Policarpo Quaresma, Neto no suplemento Letras e artes do jornal A manhã, em 1948.

Quando dizíamos sobre a aproximação de Carlos Drummond de Andrade com a heteronímia pensávamos nessa razão inerente ao fenômeno da criação literária: o fingimento. Além, claro está, de algumas marcas que se lapidadas levariam a autêntica manifestação de um Outro. Conta-se que A manhã chegou a desafiar seus leitores, inclusive o poeta Manuel Bandeira, sobre a identidade de Policarpo Quaresma, Neto. Aos curiosos, o jornal o descreveu como “homem de um só parecer, meio risonho, meio severo. Não tão severo que chegue a denunciar a nudez do rei na via pública. Para ele, a camisa do rei existe; só que costuma estar um pouco rasgada. Isso pode chocar à primeira vista, num meio infelizmente algo afetado pelo excesso do elogio e que por isso recebe arrepiado a mais branda restrição”. Estava denunciado o blague.

Em 1980, por ocasião do cinquentenário de vida literária de Drummond – Alguma poesia, seu primeiro livro, foi publicado em 1930 aos custos do autor, de um empréstimo em folha na época quando era funcionário público estadual –, Fernando Py publicou o que foi seu primeiro balanço bibliográfico sobre o poeta. O levantamento circunscreve os anos de 1918 e 1930, isto é, os anos de formação do autor; nele, o crítico arrola então 65 pseudônimos usados de maneira diversa pelo poeta. Esses disfarces, parece, também constituíram, a certa altura, uma espécie de hobby; sabe-se que coletava informações não para as assinaturas que inventava, mas sobre as assinaturas de certas figuras brasileiras.

Aqui chegando parece interessante recordar “Poema de sete faces”. Publicado em Alguma poesia. As leituras que agora reduzem tudo ao autobiográfico já se adiantaram em dizer que as sete estrofes desse poema constituem um autorretrato do poeta, justificando, de maneira extremamente pobre e superficial, a simples aparição do nome Carlos em passagens como “Vai, Carlos! ser gauche na vida.” Mas, esse poema assinala justamente um desdobramento do eu-poético que se assume ele e outro assemelhado, “um anjo torto”. Entre o eu e outro se estabelece uma relação que busca realçar a verdadeira face do eu; esta, entretanto, é o rosto oculto, o que só se revela pela relação do eu-poético com o mundo.

Esse desdobramento, à medida que realça a natureza do poeta, seu gauchismo, oferece-nos uma imagem da sua sedução pelo múltiplo, condição que em Carlos Drummond ganhou forma nas tentativas de ser outro. Ao ressaltar a condição de canhestro no mundo e sua multiplicidade perfeita (denotada pelo número sete), o poema não nos oferece qualquer imagem de apreensão do poeta, e sim, da sua natureza universal, o que contradiz a leitura imediata e simplista dos da autoconfissão. “Mundo mundo vasto mundo, / se eu me chamasse Raimundo / seria uma rima, não seria uma solução.” – conclui o poema. Quer dizer, quando o outro designa o eu-poético como um torto, isso não é um designativo sobre o autor do poema e sim a apropriação de um elemento através do qual poeta se mostra. O que o anjo lhe oferece, sua própria condição, e ele se percebe na sina natural de todo poeta.

Por isso que, uma leitura possível para os fragilíssimos traços de heteronímia e a variedade de pseudonímia em Carlos Drummond de Andrade é a materialização pela obra enquanto campo de performance do ser-poeta e da relação poeta-mundo, essa criação moderna que nos propiciou acesso a outro universo, ainda mais rico porque integralmente afastado de todo sentimentalismo desbragado com o qual se costuma, mesmo hoje, caracterizar a poesia. Foi assim que contatamos mais de perto o lugar do literário, vaso intercomunicante entre imaginação e criação.**

Notas:
* Parafraseio a leitura de Óscar Lopes sobre Novalis num texto singular sobre o fenômeno da heteronímia em Fernando Pessoa.

** Este texto é parte de um ensaio mais elaborado, ainda no prelo.


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