Miacontear - Entrada no céu

Por Pedro Fernandes


Cena da adaptação para o cinema de O auto da Compadecida.
No conto de Mia Couto, "Entrada no céu", a personagem vive um dilema com
simbólico semelhante ao que vivem as personagens do auto de Ariano Suassuna.

Usando de um tom anedótico e confessional este conto traduz as inquietações de um negro africano diante de algumas 'formulações' católicas caras ao entendimento daqueles que mantém um contato com o simbólico por outra via que não o total abstracionismo da religião ocidental. Digo isso, mas boa parte das inquietações dessa personagem são inquietações, inclusive, de muitos que nasceram num berço cristão. A imagem do paraíso celeste com sua enorme placa "Welcome to paradise!" ou a de grande tribunal a averiguar todos os fatos da existência das pessoas, por exemplo, são imagens que muitos de nós, quando crianças, fizemos.

O choque, portanto, que aqui se constata está para além das culturas, está na própria relação do homem com o simbólico e o abstracionismo da natureza - duas questões caras ao pensamento humano desde as formulações de Platão entre mundo sensível e mundo das ideias. Bem ao modo platonino, esse protagonista tende a assimilar tais 'formulações' católicas pelas vias de sua própria história terrena: é citando o amor vivido-sofrido por uma tal de Margarida que buscará respostas para questionamentos sobre a sua salvação e sobre os santos, por exemplo.

- Quero ser santo, senhor padre.
E o senhor se ria. Que santo não podia. E porquê? Porque sano, dizia o senhor; é uma pessoa boa.
- E eu não sou bom?
- Mas santo é uma pessoa especial, mais único que ninguém.
- E eu, Padre, sou especialmente único.
Que eu não entendia: um santo é uma pessoa que abdica da Vida. No meu caso, Padre, a Vida é que tinha abdicado de mim. Sim, agora entendo: os santos são santificados pela morte. Enquanto eu, eu é que santifiquei a vida.
Agora, estou no fim. Um santo começa quando acaba. Eu nunca comecei. Mas não é desta vez que a morte em mim se estreia. O meu coração se apagou foi nessa longíqua noite do baile. Entrei no salão do Ferroviário, sim. Mas fiquei fora do coração da mulata Margarida. A moça deu deferimento de me olhar à distância, fria e ausente. Branca entre os brancos. ¹

É este outro conto de O fio das missangas em que os veios da colonização estão presentes. Trata-se de um sujeito que está à beira das fronteiras entre a sua cultura e a cultura do colonizador, entre o seu plano real de dor, sofrimento, e o simbólico, entre o sagrado e o profano. É todo um sujeito em estranhamento.


Notas:
¹ O fio das missangas. São Paulo: Companhia das Letras, 2009, p.79.


Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Boletim Letras 360º #576

O som do rugido da onça, de Micheliny Verunschk

Boletim Letras 360º #570

Boletim Letras 360º #575

Dalton por Dalton

Boletim Letras 360º #574