Miguel Delibes, cem anos

Por Rafael Narbona

Miguel Delibes. Foto: Alberto Schommer



Estamos próximos do primeiro centenário de nascimento de Miguel Delibes e os leitores ainda não dispõem das obras completas acessíveis. Há alguns anos, o Círculo de Lectores em parceria com a editora Destino publicou uma magnífica edição aos cuidados de Ramón García Rodríguez, mas atualmente é uma raridade bibliográfica. Em seu tempo, Miguel Delibes gozava do reconhecimento público e da crítica, mas nas últimas décadas seu trabalho começou a ser visto com menos fervor. Situado em grande parte no mundo rural e com parte da organização narrativa bastante tradicional, salvo alguns romances com certas inovações formais, uma nova geração de leitores buscou outros horizontes e mais de acordo com sua sensibilidade e suas experiências. Seus livros sobre caça, por exemplo, não contribuíram para preservar sua popularidade, pois a violência contra os animais gera cada vez mais animadversão. O seu cristianismo, livre e nada conservador, também não despertou simpatias numa época de ceticismo e desencanto. Tal como Azorín ou Camilo José Cela, Delibes ficou em segundo plano e aí permanece. Desfruta da lealdade de um punhado de leitores, mas os mais jovens olham seu trabalho com indiferença. Este centenário deveria corrigir essa perspectiva, mostrando que Delibes, longe de haver envelhecido, nos ajuda a compreender um presente marcado pelo desengano, o desenraizamento, os conflitos ecológicos, o individualismo e o niilismo existencial. A Espanha vazia sobre a qual tanto se fala hoje em dia está em Delibes, alertando sobre o perigo de romper os vínculos com a terra, família e transcendência. O ser humano precisa de raízes sólidas para enfrentar experiências como a solidão, a angústia e a morte.
 
Na juventude, Miguel Delibes se apaixonou pelo desenho, mas o Curso de Derecho Mercantil de Joaquín Garrigues o seduziu com sua prosa elegante, sua serenidade estoica e suas razões logicamente impecáveis. Em suas páginas descobriu sua vocação literária, o que mostra que a força da linguagem transcende os gêneros. A beleza aparece da maneira mais inesperada, desprezando nossas expectativas. Paradoxalmente, o Derecho Mercantil pôde ser a porta para um sentido lírico de existência. O sucesso abriu sorriso a Delibes muito cedo com A sombra do cipreste é longa1, premiados em 1947 com o Prêmio Nadal. Seu primeiro romance não responde a uma reflexão prévia sobre a arte de contar histórias baseada na leitura dos clássicos, mas a um impulso intuitivo de fundo existencial. A obra é uma viagem pela solidão, o amor e a morte. As aventuras de Pedro, o protagonista, começam numa Ávila espectral onde os muros não são uma barreira protetora, mas os limites de uma prisão. Como as personagens de Baroja, Pedro vaga por diferentes terras e territórios em busca de um sentido para sua existência. Ainda que exista um vislumbre de paz interior, ao final o pessimismo é o que se impõe, resultado de uma exigência moral estrita. Não é possível ser feliz em um mundo maltratado pela falta de solidariedade e pela injustiça.
 
O próximo romance de Delibes, Aún es dia (Ainda é dia, em tradução livre), flerta com o “tremendismo”2, mantendo a atmosfera sombria de sua estreia narrativa. Não é seu melhor trabalho. É em 1950 que chega a primeira obra-prima e um de seus romances mais populares, O caminho. Situado num povoado da Cantabria, significa o encontro de Delibes com seu estilo literário, com uma voz própria e inequívoca que credita a originalidade de um autor. Seu estilo adquire maturidade e consistência, refinando os elementos alheios até desembocar na austeridade, no equilíbrio e na transparência. Uma prosa limpa explora o amor e a amizade, recria as maravilhas da natureza, especula sobre a morte e submete a um olhar crítico sobre os costumes ancestrais. Daniel, o Coruja, o filho do caseiro, evoca seus primeiros anos de vida no povoado durante a noite antes da sua partida para um internato na cidade. O caminho é um romance de aprendizagem que recria as experiências fundamentais da infância, quando qualquer novidade é um fato que contribui para forjar uma imagem do mundo. Setenta anos após sua publicação, o romance preserva intacto seu frescor. Permite-nos viajar a um mundo em processo de desaparecimento, mas que continua ainda nos pequenos ajuntamentos, ilhas no auge da civilização urbana, que convivem num misto de inocência e crueldade.
 
Delibes reconhece uma preferência pessoal pelas “gentes primitivas, pelos seres fundamentais”. O homem do povo é “o homem em suas reações autênticas, espontâneas, sem mistificação”. A escola, lugar de educação urbana, “começa por disfarçar e acaba pela uniformização”. Para Daniel, o Coruja, sair do povoado significará quebrar o contato com a vida natural, perder a autenticidade da infância. Só no campo e entre seu povo o homem pode se realizar plenamente, uma criatura que nas grandes aglomerações urbanas se torna doente e deformada, como acontece com o protagonista de Meu filho adorava Sis, vítima de um pai que tenta isolá-lo de todos os aspectos ingratos da vida, abortando seu progresso em direção à maturidade. Diz-se que Miguel Delibes desenvolve “um ambientalismo humanista” que tenta frear o processo de anomia do indivíduo nas sociedades modernas. Em seu discurso de entrada na Real Academia Espanhola intitulado “O sentido de progresso em minha obra”, o escritor afirma que “o verdadeiro progressismo não está no desenvolvimento ilimitado e competitivo [...], mas na racionalização do uso da técnica, facilitando o acesso de toda a comunidade ao que é necessário, revitalizar os valores humanos, hoje em crise, e estabelecer relações homem-natureza em um nível de harmonia”.
 
Miguel Delibes nunca se considerou um intelectual. Sempre se apresentou como “um homem do povo” que segue seu próprio caminho, sem se submeter a nenhuma ideologia ou agitar bandeiras que dividam e suscitem enfrentamentos. Completamente espanhol, desprezava o falso patriotismo. Seu amor pela humanidade o impediu de construir paredes que separam e excluem. Admirador do Concílio Vaticano II, observou o mundo de uma perspectiva ecumênica. Seu amor pela natureza explica por que ele se descreveu como “um caçador que escreve”. Seus livros sobre as trutas, a perdiz vermelha e a pequena caça são manifestos a favor de uma relação responsável com o meio ambiente. Miguel Delibes nunca foi um caçador embriagado pela experiência de matar. Apoiador de uma atividade de caça sustentável e conservacionista, ele expressou sua aversão às caçadas em massa que causam estragos. Seu ambientalismo peculiar não tem muitos adeptos hoje, mas responde a uma visão realista do mundo natural, onde as espécies regulam sua população por meio de uma competição justa. “Existem caçadores”, escreve ele, “que medem o sucesso de suas caçadas pelo peso do bornal. Eu tenho um ponto de vista diferente: um par de perdizes difíceis justificam a excursão; seis para um ovo, não” (El último coto, [A última reserva], 1992).
 
Os romances Diário de um caçador (1955) e Diário de um emigrante (1958) narram as experiências de Lorenzo, um jovem bedel que despreza a oportunidade de emigrar e melhorar sua situação econômica para permanecer nos campos de Castela, onde se sente feliz caçando e curtindo a amizade com seus companheiros de espingarda. Esses dois romances constituem o momento mais brilhante da narrativa de Delibes. Seu protagonista não pensa que está desperdiçando sua vida ou que vive preso por uma terra que hipoteca seu futuro, condenando-o ao fracasso e à solidão. “Em todos os outros romances” ― admite o escritor ― “esse problema da frustração, do assédio do meio, é uma constante. Apenas deixa de existir neste caçador, conhecedor de que me apanhou num momento de raro otimismo, e eu o pari, dei à luz a alguém com atributos diferentes”.
 
Delibes nunca foi praticante da caça a grandes animais. O olhar dos grandes animais o comovia, pois lhe parecia quase humano. Mais do que um caçador, o escritor era um caminhante que ocasionalmente caçava. Vangloriar-se nunca pareceu a coisa importante para ele. No prefácio de O livro de caça menor, Delibes escreve: “Caçar é um entretenimento fundamentalmente dinâmico. A caça é montada em madrugadas inclementes, caminhadas difíceis, refeições frias numa natureza inóspita, chuvas e geadas implacáveis…”. Cristóbal Cuevas traçou um semblante que expressa com clarividência as motivações últimas de Miguel Delibes como caçador de perdizes e pescador de trutas: “Aqui está um caçador que vê o campo como um espetáculo, sente a paisagem com uma sensibilidade reminiscente de Virgílio, Garcilaso ou frei Luis de León, e ele não sofre muito por errar um tiro ou voltar sem uma caça. Mais do que um caçador convencional, ele se parece com um sacerdote de uma novela pastoral que oficia um rito sacrificial pagão no templo da natureza”.
 
Publicada em 1959, A folha vermelha é uma reflexão melancólica sobre a velhice. Don Eloy, aposentado, viúvo e esquecido pelo único filho, divide seu cotidiano com Desi, uma simples empregada doméstica abandonada por um namorado canalha. A ternura e o humor contêm a lágrima de uma bela crônica de desamparo. Don Eloy comenta repetidamente que encontrou com a “folha vermelha” no livro da vida, aludindo à folha dessa cor que nos anos 50 do século passado incluíam os livrinhos de papel com que os fumantes enrolavam seus cigarros, anunciando que as existências chegavam ao fim. A folha vermelha transita da introspecção, dolorosa e precisa, ao diálogo, coletando com enorme maestria a fala popular. Um romance coloquial, alguns diálogos sem clichês ou afetação dão vida às personagens, que esbanjam humanidade e são inteiramente credíveis. “As personagens de Delibes” ― escreve Francisco Umbral ― “estão sempre presentes porque falam como são, são definidas pelo que dizem e, sobretudo, pela forma como o dizem. Acredito mais no significante do que no significado. Acho que o que configura um romance é o significante, e não o significado. E o significante é muito rico em Miguel Delibes. E com isso ele consegue, justamente, o que eu chamaria de realismo convencional, que é arte para mim”. Darío Villanueva definiu A folha vermelha como uma “epifania do próximo”, já que Don Eloy e Desi superam a solidão por meio de um casamento desigual que rompe o isolamento de ambos.
 
Ratos foi publicado em 1962. Em certo sentido, é o oposto de O caminho, pois mostra a aspereza do mundo rural. A perspectiva infantil de Nini, uma criança sábia e quase sagrada, acentua a desumanização de um ambiente mergulhado na miséria e na falta de expectativas. O tio Ratero sobrevive caçando e comendo ratos. Sua vida está situada no nível mais elementar. Limita-se a lutar pela sobrevivência. Delibes não esconde seu pessimismo, mas resgata o ser humano, destacando a nobreza de certas emoções, como a amizade, a compaixão, o amor filial e o apego à terra. O ponto de vista crítico de Ratos é transferido para o meio urbano com Cinco horas com Mario (1966), uma obra inconcebível sem Tempo de silêncio, que em 1962 introduziu técnicas narrativas experimentais em Espanha, sem renunciar ao espírito de denúncia do realismo social. Escrito na forma de um monólogo interior, o romance narra o confronto entre a mentalidade conservadora e classista de Carmen e a de seu marido, professor de ideias liberais e progressistas. Carmen é a voz do nacional-catolicismo: classista, intransigente e autoritária. Não esconde seu ódio pelos Vermelhos, pelos Judeus e pelos Protestantes. Mario é um católico identificado com a reforma promovida pelo Concílio Vaticano II. Jornalista e escritor, na guerra esteve ao lado de Franco, mas sonha com o fim da ditadura. Ele odeia a injustiça, a desigualdade e a corrupção. Eles não estão interessados ​​em dinheiro ou aparências. Já se disse que Cinco horas com Mario é uma encenação da luta entre as duas Espanha, mas seria mais correto dizer que mostra o conflito entre a imobilidade e a abertura. O romance, aliás, não teve problemas com a censura.
 
É impossível mencionar nesta nota todas as obras de Miguel Delibes, prolífico contador de histórias e prolífico jornalista. No entanto, não quero terminar sem mencionar três livros. Em 1981 foi publicado Os santos inocentes, uma exposição contra o caciquismo, que oprime os camponeses com uma odiosa e autoindulgente desumanidade. A ternura de Delibes contrasta com a impiedade de Cela em A família de Pascual Duarte (1942), agravada pelo fato de que nos anos 1940 o caciquismo era uma realidade palpável e nos anos 1980 estava em extinção. Delibes demonstra mais uma vez em Os santos inocentes seu domínio do registro oral, captando o espírito das personagens pelas peculiaridades de sua fala às vezes primitiva e obscura. Ramón García Domínguez explica o método de trabalho de Delibes, sublinhando a sua capacidade de escrutinar a realidade, detectando o que essencial: “Delibes é pura observação, um olhar atento e fascinado, um ouvido atento, uma total predisposição para o genuíno e, portanto, para o espanto. Daí sua precisão para o tom exato de uma personagem, para a palavra certa, para a nuance que coloca as coisas no seu lugar, para a indicação ou sintoma de se vai chover ou não”.
 
Em 1991, Delibes publicou Dama de vermelho sobre fundo cinza, uma bela homenagem à sua esposa, Ángeles Castro, que morreu prematuramente em 1974. A perda causou-lhe uma dor da qual nunca se recuperou. O romance mantém uma relação complementar com Cinco horas com Mario, já que Ana, a esposa falecida, é uma mulher admirável, com uma visão das coisas totalmente oposta à de Carmen, mesquinha e ressentida. As duas obras compõem “um díptico com perspectivas contrastantes” (Hans-Jörg Neus Chäfer). Miguel Delibes disse adeus à literatura com O herege. Lançado em 1998, o romance recria os pequenos conventos reformistas surgidos em Valladolid e a forte repressão ao Santo Ofício. O próspero comerciante Cipriano Salcedo entrará para os grupos que estudam a doutrina de Lutero, o que lhe custará a vida. Miguel Delibes defende a liberdade de consciência, censurando a intolerância religiosa e política. Sua sensibilidade cristã se rebela contra uma igreja dobrada aos interesses políticos da coroa espanhola.
 
O primeiro centenário do nascimento de Miguel Delibes é uma excelente oportunidade para relançar a sua obra completa e um bom pretexto para resgatar um autêntico clássico das letras espanholas. Não é um autor vencido pelo tempo, mas um explorador da alma humana que lida com inquietações imperecíveis, como o amor nas suas diversas formas, a amizade, a injustiça social, a relação com a natureza, a solidão, o sentimento religioso, a morte. Em sua entrevista a Joaquín Soler Serrano, Delibes confessou: “Sobre minha própria morte, a única coisa que me preocupa é o fato físico de morrer: gostaria que fosse rápido e na minha cama. [...] [Minha amargura precoce] suponho que será uma herança neurótica como tantas outras coisas. A verdade é que a morte era uma obsessão para mim. E não apenas como possível protagonista dessa morte”. Delibes morreu em 2010, aos oitenta e nove anos. Passou apenas uma década, mas sinto que passou muito mais tempo, talvez porque a sua voz se calou em 1998. Delibes incentiva-nos a regressar ao campo, onde tudo parece feito à medida do homem. A cidade é o fim da jornada; a Natureza, um caminho aberto para um amanhã luminoso.
 
Notas da tradução:
1 Os títulos são citados em língua portuguesa apenas quando constatado os registros de tradução neste idioma; quando não, a tradução possível é mostrada entre parêntesis.
 
2 O tremendismo pode ser designado como uma corrente estética nas artes em Espanha na década de 1940; caracteriza-se pela ênfase aos aspectos mais grotescos da existência.
 
* Este texto é a tradução de “Cien años de Miguel Delibes” publicado aqui em El Cultural.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Boletim Letras 360º #579

Boletim Letras 360º #573

Seis poemas-canções de Zeca Afonso

Confissões de uma máscara, de Yukio Mishima

A bíblia, Péter Nádas

Boletim Letras 360º #575