Machado para quê?


Por Pedro Fernandes



Patricia Secco descobriu o mapa da mina: os jovens não leem Machado de Assis porque “os livros dele têm cinco ou seis palavras que não entendem numa frase. As construções são muito longas.” A grande descoberta tem seguidores desde quando me entendo por gente e, portanto, não tem novidade nenhuma. É batida e ultrapassada. Quando eu tinha ainda catorze anos, uma professora de Língua Portuguesa sempre comentava em sala de aula que a obra do autor de Dom Casmurro era muito difícil. Este, aliás, foi o incentivo que tive durante toda minha vida escolar para a leitura. A mesma coisa é válida para José de Alencar - outro facilitado de Patricia. Tive que, na Faculdade de Letras, me abeberar do chá amargo que é Iracema

O problema não está na novidade ultrapassada de Patricia. Está na ideia da qual participa. A notícia publicada pelo jornal Folha de São Paulo se tornou logo motivo de críticas nas redes sociais. Eu mesmo encabecei as discussões com um “MACHADO DE ASSIS? SÓ O ORIGINAL!” Sim, a questão tem de suscitar discussões. O título da matéria do jornal paulista fala em “mudança” do texto de Machado de Assis e Patricia completa com os termos “Eu simplifico isto” e se contradiz “A ideia não é mudar o que ele disse, só tornar mais fácil”. Num texto publicado depois de instalada a polêmica no blog Prosa, novamente a personagem reaparece, agora, tirando o corpo fora do que fez: “Houve um trabalho bastante elaborado para que Machado continuasse a ser Machado”, fala que aparece indicada pela afirmação de que ela “não trabalhou diretamente na versão do texto, embora tenha participado das revisões e aprovado o resultado”; Ao que acrescenta Patricia, de novo, contradizendo-se: “A complexidade de Machado está lá, ele é um gênio inigualável, um autor que admiro.”

Minha reação de desaprovação seguindo o coro dos contrários pode ser que esteja no âmbito dos esbravejamentos inúteis porque é possível que tudo não passe de um mal entendido (tomara!): que se, de repente, a questão for o de uma adaptação (como aponta os termos do texto publicado no Prosa) e não “versão facilitada” estaremos num bate-boca instaurado pela irresponsabilidade de um jornal (e já sabemos que nas mídias não podemos nos fiar totalmente). Mas, acreditando na primeira versão que a notícia nos chega, esta polêmica encontra-se com diversas outras formas de mutilação do texto literário: sejam os resumos escritos de qualquer forma a título de substituir a leitura, sejam as cópias soturadas que circulam na web e caem no colo dos alunos, seja a total ausência do texto literário em sala de aula por uma leva professores de língua portuguesa que (e isso é ainda mais triste!) não gostam de ler, seja a carência pela aquisição do contato com o livro, fato corriqueiro Brasil afora. Tudo isso passa pela questão do Machado de Assis facilitado. E por isso a indignação. Não há mal nenhum nas adaptações, nas releituras (quantas não já foram feitas a partir de sua obra). A questão está na descaracterização da própria obra e na subestimação da capacidade dos leitores.

Até agora, a maioria dos nomes consideráveis está desde lado da novidade: encarando-a com reprovação. Domício Proença Filho, por exemplo, diz que “em lugar de substituir as palavras de Machado seria mais adequado situar em nota explicativa a significação e a sinonímia dos termos usados por ele. Com as notas o leitor não só entenderia a obra, como é o objetivo da autora, como se familiarizaria com o texto machadiano. Enriqueceria o seu vocabulário e teria a ideia precisa da proposta e do estilo do escritor.” Luiz Antonio Aguiar, quem adaptou O alienista para os quadrinhos, não concorda com a dificuldade da obra de Machado de Assis:

“É uma linguagem elegante, traz sutilezas que enriquecem”; e dá a dica “Para introduzir um leitor no universo de Machado você poderia usar as crônicas, por exemplo, um texto mais curto”.

Ana Maria Machado, autora de centenas de livros para crianças, além de romances e ensaios, lembra que adaptações são boas. “Mas acho inconcebível passar a limpo um mestre da língua. Que se espere um pouco até que o próprio aluno passe a limpo a si próprio, e possa adquirir robustez linguística para chegar perto”.

De Alcides Villaça – um dos primeiros que esbravejou contra a ideia – tem nos chegado as observações mais lúcidas: “Quando a barbárie e a burrice se aliam, dá em iniciativas como essa. É absurdo imaginar que a função da escola seja facilitar qualquer coisa, em vez de levar a trabalhar com as dificuldades da vida, da crítica e do conhecimento. Outro absurdo é imaginar que a arte possa ser traduzida em linguagens outras que não as duramente conquistadas pelos grandes artistas, e que por isso passaram a ser um tributo à nossa inteligência e ao nosso prazer. Apresentar como sendo de Machado de Assis uma mutilação bisonha de seu texto não devia dar cadeia? Que tal propor que o Claro enigma de Drummond seja transposto para trovinhas? E Beethoven, já não está sendo suficientemente divulgado pelos caminhões de gás?” – disse a primeira vez que a matéria veio on-line.

O professor logo completa, “Machado de Assis não é pra ser “gostado” como sorvete de limão ou chocolate. Machado é um problema pra qualquer criatura inteligente (por favor, tente se preocupar). Ele relativiza os valores que servem de colchão pras nossas vidas. Ele aprendeu na prática (era mulato, meu bem) que é duro nascer pobre e sem voz. Ele viu e entendeu logo todas as falcatruas de quem está no poder. Pior que isso: ele não achava que as classes subjugadas tivessem qualquer outra intenção que não a de serem classes dominantes. E se aparelhou para sobreviver, e viver bem. Ele viu e entendeu que talvez não valha a pena tanto esforço por idealismos condenados ao fracasso, conforme a História Política (que Maquiavel estudara tão bem) já provou. Ele imaginou que o esforço de ser sublime não compensa na barganha da próxima esquina. Ele piscou o olho para nós porque sabia muito, e também não sabia o que fazer com suas melhores intenções, e sua secreta poesia, e seu inconfessável sentimento do trágico. E ele nos provou que tudo isso só passa a existir com o aparelhamento certeiro de uma linguagem, de uma fala absolutamente pessoal, com um sujeito já dentro.

E aí vem você é quer “facilitar” tudo isso, minha cara? Você não sabe o quanto custou para aquele mulato lúcido nos mostrar o mapa das nossas minas mais íntimas, da sociedade violenta que cochila dentro de nós? Pois saiba que os jovens leitores para quem apresento, como professor, os textos de Machado, se revitalizam com essas questões e agradecem pelo fato de que existe um artista que lhes dá forma e expansão. Com o texto dele, começam e recomeçam as mais vivas discussões.”

Na mesma posição, comenta José Miguel Wisnik – leitor atento de obras como a de Gregório de Matos – “O caso da adaptação de O alienista é muito diferente do das outras obras clássicas citadas, em que se faz uma redução genérica da estória, claramente distinta do original. Em vez disso, trata-se aqui de uma intervenção linha a linha sobre o estilo, a pontuação, o ritmo, o vocabulário e a sintaxe, e como se nada disso estivesse acontecendo. É escandaloso que a informação 'texto facilitado para incentivo à leitura' apareça apenas no final do volume, sem nenhum destaque, perdida entre outros créditos menos relevantes (produção, concepção, projeto gráfico, imagens e tiragem), e onde a referência (nem digo reverência) à autenticidade do texto original vira pó.”

Mas, há outros nomes favoráveis à questão. Os que se manifestam, entretanto, estão olhando a ideia de Patricia a partir do lugar da adaptação; que há não-sei-quantas coisas do tipo com outros nomes e o próprio Machado transformado até em HQ. Insisto; a questão não está nessa, mas em outra esfera. Não estamos falando sobre a ADAPTAÇÃO DE UMA OBRA. A obra está aí e pode servir a artistas das mais variadas vertentes para trabalhar com ela. O que está em pauta aqui é a REESCRITURA DA OBRA PARA TORNÁ-LA FACILITADA. Mesmo sendo a adaptação uma forma de reescritura, ela é uma forma de expressão independente, inclusive, da obra original. Não desviemos o foco da questão. Que fique claro também o lugar de quem se opõe. Não é uma oposição às adaptações, é uma oposição à mutilação do texto original – tal como já foi pensado em fazer com um Monteiro Lobato amenizado porque parte do vocabulário de sua obra estaria impregnada de expressões que incitam o racismo.

Tomando a atitude reescrita da obra “substituindo palavras aparentemente incompreensíveis para os leitores de hoje por outras mais contemporâneas” (nas palavras do blog Prosa), e o reordenamento de orações da ordem indireta para a direta, ganha, cada vez mais, a certeza do desrumo que vimos palmilhando. Coincidentemente a atitude “civilizada” da “escritora” (assim se refere a Folha de S. Paulo e o blog de O Globo ainda ressalta o currículo da autora que já publicou mais 200 títulos infantis) encontra ressonância num texto para o qual redigi algumas notas a serem publicadas dentro em breve por aqui. Trata-se de um diálogo entre o Selvagem e Mustafá Mond em Admirável mundo novo em que a primeira personagem levada ao conselho geral deste novo modo de mundo se questiona sobre o soterramento de todos os sentidos em nome da permanência entediante do bem-estar. A certa altura, assim se pronuncia John: 

“Sim, é bem o modo de os senhores procederem. Livrar-se de tudo o que é desagradável, em vez de aprender a suportá-lo. É mais nobre para a alma sofrer os açoites do azar e as flechas da fortuna adversa, ou pegar em armas contra um oceano de desgraças e, fazendo-lhes frente, destruí-las... Mas os senhores não fazem nem uma coisa nem outra. Não sofrem e não enfrentam. Suprimem, simplesmente, as pedras e as flechas. É fácil demais.”

Sábio Aldous Huxley! Se tomarmos Machado de Assis como o desagradável e a atitude da professora como a supressão das pedras e das flechas está exposta a questão neste novo mundo. E para que, então, a literatura não é mesmo? Já eu, estou fossilizado naquela pedra em que estão os chamados tradicionalistas, que o aluno cresça junto comigo para estar, depois, além de mim. “Mas eu não quero conforto. Quero Deus, quero a poesia, quero o perigo autêntico, quero a liberdade, quero a bondade. Quero o pecado.” Estou com o Selvagem.

Volto, ainda, aos meus catorze anos, quando já depois de muito ouvir que Machado de Assis era para poucos e, depois de ter iniciado minhas leituras por algumas obras mais conhecidas da literatura brasileira, Philomena BorgesO cortiço, Vidas secas, até cruzar com Memórias póstumas de Brás Cubas. O choque que tive foi não ter encontrado qualquer dificuldade na leitura do romance. Posso não ter alcançado uma leitura detalhada da obra (e qual leitura é essa?), mas não me esperneei em momento algum com seu vocabulário. O que não estava ao meu alcance pelo andamento da própria leitura ia se esclarecendo com uma coisa que hoje parece ser peça de museu (mesmo estando on-line para consulta que não pede nenhuma regra de acesso à palavra senão pela digitação da mesma), o dicionário. 

Depois, quando já professor, sempre usei o discurso contrário do de minha professora de língua portuguesa. Não; Machado de Assis não é difícil. José de Alencar também. Não há literatura difícil. E eu não sou nenhum gênio raro desses catalogados pela ciência. Também iniciei meu contato com a literatura muito tardiamente. E pela via mais simplista possível – as revistas em quadrinhos e os romances policiais da Agatha Christie. 

O mal que tem se instaurado é apenas um: uma preguiça generalizada de se demorar na leitura somada com a necessidade de uma utilidade prática – aquela de que tudo que faço deve ter algum sentido imediato na minha vida (como se a literatura tivesse por obrigação ser rasa como os discursos de autoajuda). Não, a literatura não se presta a isso. E essa questão não foi inspirada pela obscuridade de um texto; isso é falácia para uma estratégia de marketing financeiro que, infelizmente, tem dado certo porque sempre foi interesse da mídia aterrar a literatura e a verdadeira arte do seu devido lugar. 

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