Paul Auster: o mundo na sua cabeça e seu corpo no mundo

Por Ivonne Saed

Paul Auster no set de Lulu on the Bridge, 1997. Foto: Moviestore Collection


Um jovem Paul Auster, de apenas dezenove anos, escreve em seu caderno de anotações: “O mundo está na minha cabeça. Meu corpo está no mundo.” Quase trinta anos depois, reencontra estas palavras e se dá conta de que, apesar de não recordar ao certo quando as escreveu ou em qual contexto, elas continuam a definir o conjunto da sua obra: uma urdidura que entrelaça a ficção que emana da sua imaginação com o traço de uma escrita autobiográfica que se alimenta daquilo que observa às margens de sua própria existência. Se o mundo participa das suas ideias e o seu corpo participa do mundo, então toda a sua pessoa e o mundo fluem sem distinção. As possibilidades de escrita abrem-se ao infinito.
 
Paul Auster, falecido em 30 de abril, deixa uma obra ficcional que rompe coma as próprias fronteiras e as do ensaio, da autobiografia e da invenção, e seduz seus leitores por meio dessa estratégia. As suas preocupações recorrentes — o acaso, a memória, a solidão, o processo criativo, a cidade como quadro orgânico inescapável do qual as suas personagens são parte integrante — funcionam como um espelho da nossa condição. A sua escrita entretém-nos e cativa-nos, ao mesmo tempo que apela às preocupações mais íntimas da nossa existência. Suas leituras alimentam sua narrativa e enriquecem uma intertextualidade que estará presente em tudo que escreveu.
 
Numa entrevista para o jornal El País há alguns anos, Auster afirmou que na literatura não existem gênios precoces porque é preciso muito tempo para dominar a língua. Porém, desde seus primeiros trabalhos, na década de oitenta, já era possível vislumbrar parte da sua genialidade. Leitor atento das Mil e uma noites e Dom Quixote, de Shakespeare, Franz Kafka e Montaigne, amigo de Lou Reed, Wim Wenders e Salman Rushdie, Paul Auster configurou um mundo metatextual que pode ser habitado a partir de cada um de seus romances, mas que se entende em profundidade quando se navega para frente e para trás por toda a sua ensaística e ficção.
 
Na verdade, suas obsessões e personagens transitam de um texto para outro. Em Fantasmas (1986) o personagem Blue descobre com seu binóculo o livro de Thoreau que Black está lendo enquanto reflete que ver alguém ler ou escrever não é fazer nada, mas é também a maneira de saber o que pensa quem está sendo observado; seu personagem Sidney Orr, em A noite do oráculo (2003), toma como pretexto uma anedota insignificante de O falcão maltês, de Dashiell Hammett, para transformá-la no fio condutor do romance que escreverá; em A invenção da solidão (1982) aparece um universo de leituras — Pinóquio, a história bíblica de Jonas e a baleia, Pascal, As mil e uma noites, entre outras — que afetam diretamente a forma como o autor investiga e comunica sobre o que o que acontece no seu interior após a morte de seu pai e o fim de seu casamento.
 
Em Cidade de vidro (1985), o eu do autor se desdobra de sua realidade tangível para se apresentar como objeto de ficção, desequilibrando os conceitos de identidade e autoria. Em Viagens ao Scriptorium (2006) Auster faz uma espécie de acerto de contas com personagens de romances anteriores através do Sr. Blank, escritor cuja realidade ficcional coincide em grande parte com a do autor, e de quem aproveita para estabelecer uma intimidade profunda e comovente com Anna Blume, a protagonista de No país das últimas coisas (1987). Em 4 3 2 1 (2017) ele recorre mais uma vez a uma memória de sua infância, incluída em um ensaio autobiográfico publicado em sua juventude, e a traz de volta como o trivial que definirá o destino de uma das instâncias de seu personagem Ferguson.
 
Essa metatextualidade vai além da ficção para permear também sua obra ensaística: no prefácio que escreveu para o romance Fome, de Knut Hamsun (editado pela casa novaiorquina Farrar, Straus and Giroux), também publicado no livro A arte da fome (1992), resume em um parágrafo o enredo do romance do escritor norueguês em um estilo que nos remete imediatamente à sua própria ficção e à sua angústia pessoal da juventude:
 
“Um jovem chega a uma cidade. Não tem nome, nem casa, nem emprego: veio à cidade para escrever. Escreve. Ou, mais precisamente, ele não escreve. Ele está prestes a morrer de fome. A cidade é Christiania (Oslo); o ano é 1890. O jovem vagueia pelas ruas: a cidade é um labirinto de fome e todos os seus dias são iguais. Escreve artigos não solicitados para um jornal local. Ele se preocupa com sua renda, com suas roupas se desintegrando, com a dificuldade de conseguir a próxima refeição. Sofre. Quase enlouquece. Nunca está a um passo de entrar em colapso. No entanto, escreve. De vez em quando ele consegue vender algum artigo, encontrar uma trégua para seu sofrimento. […] O processo é inevitável: é preciso comer para escrever. Mas se não escreve, não comerá. E se não pode comer, não pode escrever. Não consegue escrever.”1
 
O tom da passagem anterior é muito próximo do primeiro parágrafo da autobiografia A invenção da solidão ou do início de Cidade de vidro; isto é, uma antecipação da trama que convida o leitor a saber mais e se aprofundar nos círculos concêntricos da narrativa. No primeiro volume de A trilogia da Nova York, Auster leva sua estratégia metatextual ao mito bíblico da criação a partir da palavra. A partir de sua posição de escritor-demiurgo, reescreve a Nova York dos anos oitenta como uma Babel na qual deposita todas as obsessões que reencontraremos em suas obras posteriores. O acaso, a solidão, a observação do outro como espelho e o questionamento da autoria contribuem para a construção de uma alegoria do Gênesis que é ao mesmo tempo fundacional e profundamente moderna.
 
Três décadas depois, em 4 3 2 1 Auster brinca com um novo modo de metatexto: desdobra o seu protagonista em quatro instâncias de ser e o lança em direção a um destino diferente dependendo de algum acontecimento de sua primeira infância que marcará o resto de sua vida. Mais uma vez, com sua escrita de demiurgo, o autor povoa com seus personagens e suas circunstâncias quatro caminhos que se bifurcam, colocando o leitor diante do paradoxo de um destino já escrito e que pode ser modificado.
 
Estas preocupações, enraizadas no confronto entre a noção de liberdade e um destino pré-determinado, aparecerão ao longo da sua obra como uma constante. Em No país das últimas coisas, por exemplo, esse determinismo entra em conflito com as noções de livre arbítrio e responsabilidade, enraizadas no pensamento judaico que também permeia toda a sua obra: o destino de Anna Blume e Samuel Farr parece estar selado e, no entanto, o seu encontro com os rabinos que discutem a Torá na biblioteca parece abrir-lhes um caminho que se desvia daquele já traçado pelo espaço e tempo apocalípticos que habitam. Estes estudiosos, impassíveis face às circunstâncias de fim do mundo em que vivem, continuam o seu trabalho de questionamento e reinterpretação do texto sagrado, abrindo assim um lugar para a esperança.
 
A figura física de Paul Auster já não está entre nós e o círculo da sua obra está fechado. Agora é hora de continuar com o processo hermenêutico de investigar seus múltiplos significados. Com a sua capacidade de mostrar o mundo que observava com atenção, Auster tornou-nos cúmplices de seus personagens: criaturas que se isolam, se observam e se escondem dos outros para se colocarem numa nova perspectiva, a partir da qual veja, eles também o mundo fora de sua cabeça e o seu próprio corpo fora do mundo. 


* Este texto é a tradução livre de “Paul Auster: el mundo en su cabeza y su cuerpo en el mundo”, publicado aqui, em Letras Libres.
 

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