A necessidade da imagem. Entrevista com Susan Sontag

Por Arcadi Espada


Susan Sontag. Foto: John Dolan.

 
 
O fato de um livro sobre fotografia e dor não ter alusão ao gulag é significativo.
 
O que você quer dizer?
 
Bem, isso corrobora com a hipótese de que o gulag não penetrou na consciência contemporânea da mesma forma que teria feito se houvesse fotografias da tragédia.
 
Eu já disse a mesma coisa muitas vezes.
 
Sim, claro. É por isso que eu lembro você.
 
Está no livro. O gulag está no livro.
 
Não me lembro.
 
Está lá mesmo que você não o veja. Quando digo que nos lembramos e nos preocupamos com o que foi fotografado, fica evidente que o primeiro pensamento dessas linhas alude ao gulag. E tenho dito e escrito repetidamente que uma das razões pelas quais demorou tanto tempo para as pessoas virem e compreenderem todo o horror do sistema soviético foi a ausência de documentação fotográfica. É evidente que, quando digo que as fotografias identificam, também quero dizer o contrário: quando não há fotografia, é mais fácil esquecer. E há dois exemplos clássicos: o gulag e a guerra civil sudanesa, uma guerra que ceifou milhões de vidas face à indiferença mais fria do mundo. Então sim. Implicitamente o gulag está lá.
 
Existem muitos exemplos explícitos.
 
E há muitos outros que não consegui incluir. O livro ocuparia o dobro. Você entende isso?
 
Não tome isso como uma correção. Não é.
 
SS: É óbvio...
 
Me pareceu surpreendente que o livro não fizesse alusão a uma tragédia não fotografada. Chamativo e até coerente. Isso é tudo.
 
Vou lhe enviar um resumo com todos os meus textos e declarações sobre o assunto.
 
Ok. “Enquadrar é excluir” – você diz em determinado ponto do livro.
 
Sim, a exclusão pode ser tão significativa e barulhenta quanto a inclusão.
 
Claro, mas gostaria de lhe perguntar se não acha que essa seleção pode atingir um tal grau de objetividade que o que é excluído é irrelevante.
 
Não penso em fotografias de uma forma tão abstrata. Cada projeto fotográfico tem uma intenção particular. E está rodeado por um grande número de contextos particulares. Penso na famosa fotografia da queda da estátua de Saddam no centro de Bagdá. Você se lembra dela?
 
Sim, a estátua caindo…
 
A estátua caindo, derrubada, e ao redor dela um grupo de pessoas parecendo satisfeitas. Não eram mais de vinte pessoas, mas a peculiaridade do enquadramento fazia acreditar que aquelas pessoas eram como uma sinédoque da praça. O espectador acreditou que a praça estava repleta de pessoas que aplaudiam com satisfação o momento simbólico da queda da estátua de Saddam. Foi um momento muito importante porque as tropas americanas acabavam de entrar em Bagdá. Bem, você vai se lembrar de tudo isso. A verdade é que aquelas vinte pessoas eram as únicas na praça. Já vi outras fotos daquele momento, na praça, tiradas em grande ângulo. A praça está praticamente vazia.
 
Bem, nesse caso a foto era falsa. Porque é contraditório com o que exclui.
 
Contraditório? Prefiro falar de ênfase. Essa moldura dá ênfase a um lugar... outra fotografia, outra moldura. A menina foi queimada por um bombardeio de napalm em uma rodovia no Vietnã. A foto faz parte de uma paisagem muito maior. A estrada está lotada de pessoas fugindo aterrorizadas e ela é mais uma na tragédia. Naturalmente, focar uma parte da imagem e excluir o resto é uma forma de direcionar o significado da foto, de sublinhar o que o espectador pretende ver. Então tem outra coisa muito importante: as fotos não chegam nuas nem são mostradas nuas. A legenda, o contexto onde a foto aparece, quem está olhando e por quê, tudo isso é fundamental para configurar o significado definitivo que a foto acaba assumindo.
 
Eu diria que há uma diferença essencial entre a foto de My Lai e a de Saddam. No caso da estátua de Saddam, o que fica de fora da foto contradiz a base do seu discurso. Mas isso não acontece com a garota do massacre de My Lai porque...
 
Me deixe interrompê-lo. No caso de Bagdá, se engana. Isso poderia ser dito. É um fenômeno muito comum, infelizmente. Muitas fotos são enganosas.
 
Em My Lai o enquadramento dramatiza, enfatiza, como você diz. Personaliza uma situação geral, uma retórica muito típica do jornalismo.
 
Sim, concordo. Sempre digo que o enquadramento afirma e que, como qualquer informação, pode ser enganoso. É o que distingue a fotografia da pintura. Não há afirmação pictórica.
 
Resumindo: enquadrar é excluir, mas nem sempre com as mesmas consequências.
 
Claro. Caso contrário, todas as fotos seriam enganosas. E nem todas as fotografias estão erradas ou mentem. Eu não digo isso. Não faria sentido dizer algo assim.
 
Em relação à objetividade…
 
Objetividade não é um termo que tenho em alta conta. Não acho que isso explique muito. Em parte porque é um elemento polarizado, parte de uma dicotomia. No momento em que você diz objetivo, você se força a falar sobre subjetivo. E não é eficaz. É, por assim dizer, uma alternativa grosseira demais E não acho que seja a maneira certa de falar sobre fotografia. O que devemos procurar nas fotografias é que sejam capazes de nos dar a maior quantidade de informação possível sobre qualquer situação que tenha ocorrido, que tenha sido real. Sempre entendendo, claro, que numa situação real as informações estarão sempre incompletas. Acredito que a tensão entre objetividade e subjetividade cria muitos problemas falsos e que a primeira obrigação de qualquer análise é evitar a possibilidade de aparecimento de falsos problemas.
 
Você fala sobre a diferença, em inglês, entre “tirar uma foto (to take)” e “tirar uma foto (to make)”. É uma diferença muito interessante.
 
Nos permite determinar a capacidade de intervenção do fotógrafo, haha.
 
Em inglês, não houve uma mudança lexical entre fazer e criar?
 
Não, não. Por sorte.
 
Em espanhol, pelo menos no espanhol da Espanha, ninguém mais diz “tirar foto”.
 
Bem, sinto muito, sério.
 
A ausência de fotos na catástrofe de 11 de setembro. De fotos de cadáveres…
 
Me pareceu muito ruim. Sou a favor de sempre circular o máximo de informação possível.
 
Mesmo que seja brutal.
 
Fotos brutais exigem uma brutalidade prévia que é preciso conhecer. Com o que é necessário enfrentar. Uma sociedade democrática deve passar por esse tipo de exercício. Senão se torna, em certo sentido, uma sociedade cúmplice da brutalidade.
 
Antes de continuar com a análise, gostaria de perguntar se realmente existem fotos do 11 de setembro que estão proibidas de serem divulgadas ao público.
 
Sim, existem...
 
Há quem diga que a tragédia nem deixou corpos. Apenas cinzas.
 
Ela deixou muitas cinzas e muitos cadáveres.
 
Você viu alguma dessas fotos?
 
Não, eu não as vi. Mas pessoas em quem confio as viram: editores, cinegrafistas, fotógrafos... eles me disseram repetidamente que essas fotos existem.
 
E que foram censuradas.
 
Exatamente.
 
O cadáver de um ato terrorista não deixa de ser um cadáver privado e passa a ser, de certa forma, um cadáver público?
 
Hummm. Pergunta perturbadora. É verdade. Sim, acho que é verdade. Mas é muito difícil ousar dizer isso.
 
Há algum tempo perguntei ao irmão de uma vítima do terrorismo do ETA. Ele concordou com clareza e energia emocionantes.
 
É muito difícil. E essa reação que ele me conta é muito linda e corajosa. Mas nem todas as vítimas reagem da mesma forma, é claro. E como não respeitar os direitos das vítimas nessa situação? É um assunto muito complicado. Mas, de qualquer forma, considero, de qualquer forma, que a decisão de esconder o corpo é muito pior. As consequências são muito piores. Os familiares podem proibir a exibição de fotos ou vídeos, claro... foi o que aconteceu com o vídeo do assassinato do jornalista do Wall Street Journal, Daniel Pearl, por um grupo terrorista.
 
É realmente um caso extremo. Acontece que não se trata apenas de um cadáver, mas de uma matança, da filmagem do seu assassinato.
 
E filmado para exibição, claro. Sua exibição foi proibida por dois motivos. Primeiro, bom gosto, modéstia. Depois porque poderia ofender a sua viúva. Claro, essa não é uma decisão fácil. Mas ainda assim, acho que deveríamos ser capazes de ver isso.
 
Vamos resumir, se quiser: por que deveríamos ver isso?
 
Se partirmos da ideia de que existem fotos que nos ajudam a compreender a realidade, a questão fica mais clara. Embora não de forma contundente e absoluta porque sempre haverá brechas pelas quais os direitos e sentimentos dos outros escaparão. Na verdade, meu livro é dedicado a saber o quanto do que é real pode ser mostrado. Na minha opinião, é uma questão fundamental.
 
Muito pouco pode ser mostrado sobre a guerra, você diz repetidamente.
 
A guerra. As fotos nos transmitem uma certa imagem da guerra ligada ao acontecimento, ao surto, a uma ação específica. Mas o que é crucial na guerra é o que acontece depois. Como você fotografa o que acontece a seguir? Ou pensemos na fome na África. Como é fotografada a fome para além das circunstâncias agonizantes dessas crianças esqueléticas que vemos ciclicamente quando a situação assola uma determinada cidade ou região? Bem, este é um problema muito importante. Muito mais importante do que se, em decorrência de um acontecimento específico, são mostradas ou não certas fotos que podem ofender o gosto, a moral ou a sensibilidade.
 
Fale sobre William Hazlitt e o ensaio que ele dedicou ao Iago de Shakespeare.
 
Sim. Hazlitt, Burke…
 
Me deixe ler a citação de Hazlitt para os leitores sobre a atração do mal: "Por que", pergunta Hazlitt, "sempre lemos nos jornais sobre incêndios terríveis e assassinatos horríveis?" E ele responde: “Porque o ‘amor ao mal’, o amor à crueldade, é tão natural no ser humano quanto a simpatia”.
 
Sim, acho que Hazlitt está certo. E Burke, que disse que os infortúnios dos outros nos davam prazer.
 
Você não acha que essas avaliações estão um tanto carregadas de malditismo literário?
 
Na verdade, não.
 
Talvez seja apenas um efeito parecido com o das histórias de terror: é realmente horrível, mas eu não estou lá.
 
É a sua opinião. Eu prefiro o Hazlitt. Acho que a observação dele sobre os outros é muito precisa. Existem muitas pessoas que têm um potencial sádico muito forte e que não o externalizam, a menos que a autoridade permita.
 
Sade!
 
Eu recomendo que você não fique na frente. Existem pessoas com uma enorme capacidade para a crueldade, que gostam da dor que infligem aos outros. A verdade é que não creio que seja uma questão ligada ao fato de se sentir bem, ao fato de não estar ali no lugar do sofrimento.
 
Por que não? Afinal, nada mais é do que a lógica banal do sobrevivente.
 
Acho que não. Por que as pessoas param na estrada para assistir a um acidente de carro?
 
É novidade. Uma interrupção da vida. Chama a atenção.
 
E isso excita.
 
Eu insisto: você não acha que existe alguma literatura muito carregada de demônios? O próprio Bataille, que você também cita a respeito da foto do prisioneiro submetido à tortura mortal de cem cortes.
 
Eu não me importo. Na verdade, a literatura me é indiferente. Digamos que cito porque parece bom.
 
Muito bom.
 
Eu parto da realidade. Não estou interessado em Hazlitt, ou Burke, ou Bataille, ou Baudelaire, ou malditismo, ou demoníaco, ou qualquer coisa assim. Você sabe o que me interessa?
 
…?
 
Ruanda.
 
O genocídio.
 
O genocídio em Ruanda. A literatura é totalmente secundária. Estou interessada na realidade. Em seis semanas, oitocentas mil pessoas, OITOCENTAS MIL PESSOAS, foram mortas em Ruanda. Por seus vizinhos. POR SEUS VIZINHOS. Cada uma dessas pessoas morreu de forma individual. Veja a história da humanidade. Olhe para ela: ela não dá a mínima para o que os escritores dizem! Ruanda. Você sabe o que é Ruanda?
 
Não, não sei.
 
Ruanda é um país pequeno. Um país muito pequeno. Menor que a Catalunha. E com noventa e cinco por cento dos seus habitantes católicos. Por que tenho que ler Baudelaire?
 
…?
 
Não apelo à autoridade do intelectual. Insisto em que nada ouvi o intelectual. Temos que redescobrir a deformação do ser humano. Cito esses escritores não para me refugiar na sua autoridade, mas sobretudo para dizer como é estranho que continuemos a redescobrir a cada passo a mesma coisa. Como é estranho redescobrirmos o óbvio. Como é estranho que ainda não nos tenhamos tornado adultos morais ou psicológicos. Sinto muito: continuo me surpreendendo com essas crueldades indescritíveis do ser humano.
 
Mostre a dor. Há trinta anos você disse em Sobre fotografia que a exibição repetida da dor anestesiava a percepção.
 
Estou sempre discutindo comigo mesmo. Hoje já estou discutindo coisas sobre esse último livro. Imagine o que penso do que escrevi há trinta anos. Mas, em suma, creio que não é verdade que a exibição de imagens de dor anestesia a consciência do homem.
 
Esse ponto de vista acabou se tornando comum. Há muitos executivos de jornais que se recusam a exibir cadáveres invocando o seu ponto de vista, mesmo que não saibam que é o deles.
 
Sim, parece ter se tornado comum.
 
O que fez você mudar de ideia?
 
A realidade. A imagem de Cristo, por exemplo. Há quantos anos seus fiéis contemplam aquele homem ensanguentado, moribundo, nu e em tamanho natural? Se fosse verdade que nos acostumamos ao sofrimento, os católicos já teriam deixado de se emocionar há muito tempo. Eles não fizeram isso. Essa é a coisa real. Às vezes temos que submeter o que pensamos a esse tipo de verificação decisiva. Se você se sentir comprometido com certas imagens, quer as tenha visto uma ou cem vezes, continuará sofrendo.
 
Sim. Uma imagem contemporânea, por exemplo: o avião que vai bater numa das Torres Gêmeas.
 
Sim, claro, ninguém vai esquecer.
 
Essa imagem foi observada esteticamente. Sim, digamos "esteticamente".
 
Quer dizer que há quem a tenha visto linda?
 
Sim, é isso.
 
E?
 
O que você acha?
 
Todas as fotografias embelezam o real.
 
Eu te pergunto se é possível perceber a beleza ali, mesmo que seja uma beleza sinistra.
 
Sim, é possível.
 
Mas quem olha não se vê automaticamente no avião?
 
Hummm… não, não acho que as pessoas sintam isso por dentro. As pessoas sentem, como na velha frase de Aristóteles, pena e terror. Mas daí não passa. Não creio que olhando as fotos dos atentados de Madrid de 1936 as pessoas se instalem automaticamente na Madrid de 1936. Não, não acredito. Essa atitude é respeitável, mas não creio que seja a das pessoas comuns. As pessoas veem uma imagem e a julgam. Ele julga, aliás, insisto, com base no princípio de que qualquer foto embeleza a realidade. E, sobretudo, embora esteja na moda duvidar, sabendo perfeitamente que a fotografia é uma coisa e a realidade é outra.
 
Na verdade o que eu queria perguntar é se beleza é um termo operativo nesse tipo de imagens.
 
Uma foto pode ser horrível e linda. Outra questão: se pode ser verdadeira e bela. Essa é a principal censura às fotografias de Sebastião Salgado. Porque quando as pessoas veem uma daquelas fotos lindíssimas, ficam desconfiadas. Com Salgado há outros tipos de problemas. Ele nunca dá nomes. A ausência de nomes limita a veracidade do seu trabalho. Ora, independentemente de Salgado e dos seus métodos, não acredito que a beleza e a veracidade sejam incompatíveis. Mas é verdade que as pessoas identificam a beleza com a foto e a foto, inevitavelmente, com a ficção.
 
Há parágrafos violentos em seu livro contra a francesada: Baudrillard, Glucksmann…
 
Haha, francesada. É uma visão muito provinciana da realidade. O real não é um simulacro. Infelizmente, para muitas vítimas, a realidade não é uma simulação. Não creio que esse discurso mereça muito mais comentários.
 
É um discurso predominante nas universidades norte-americanas.
 
Existem muitos outros discursos na América (e muito prevalecentes) que são desprezíveis.
 
Você costuma falar bem de jornalismo. Além das simulações, você acha que o jornalismo nos tornou mais solidários ao espalhar a dor dos outros?
 
Tudo no século XX tem sido uma faca de dois gumes. Também o jornalismo. É verdade que nos permitiu conhecer os outros, as suas tragédias e as suas necessidades. Mas também contribuiu para uma globalização cultural e moral que se baseia em grande parte em premissas falsas. O jornalismo encheu nossas vidas com imagens falsas. É verdade: temos uma ideia do que está acontecendo no mundo como ninguém jamais teve. Mas às vezes essa ideia é muito nominal. E está misturada com propaganda. Você vê que vou de um extremo ao outro. De uma ponta a outra. Embora talvez o pior dessa propaganda divulgada pelo jornalismo seja esta mensagem: “isso é o que existe no mundo; agora você sabe, mas pouco pode fazer para mudar”. Esse desamparo. Esse alerta de que o conhecimento das coisas não se transforma em energia para mudá-las. A possibilidade, inclusive, de que tantos e variados conhecimentos possam nos surpreender e reforçar a impressão de que a mudança é mais complexa do que realmente é. Porque então é verdade que se as coisas forem observadas de perto, uma por uma, não parecem tão complexas.
 
Sim, a saturação, a sobrecarga da mídia.
 
E a possibilidade de que os horrores acabem se tornando um espetáculo. Defendo o jornalismo. Sou uma grande defensora do jornalismo. Morei em Sarajevo ao lado de jornalistas. Eu verifiquei como eles funcionam. Posso dizer que a maioria deles são pessoas honestas. E, sobretudo, não são pessoas endurecidas, como sugere o clichê, mas procuram contribuir com o seu trabalho para a melhoria das condições gerais de vida. Quando as pessoas falam sobre a corrupção do jornalismo, temos que olhar em várias direções. Também na direção dos donos dos jornais. Assim, nesse sentido, Baudrillard e outros poderiam estar parcialmente certos, quando sugerem que devido a essa corrupção os homens comuns teriam cada vez mais dificuldade em distinguir entre imagens e realidade. Mas a visão sugere sempre um desprezo pelo que é real e de quem sofre o real: mesmo hipnotizadas, drogadas, as pessoas não perdem o sentido do que é real.
 
Nós…
 
Me deixe explicar uma anedota significativa para você. Veja, depois do ataque às Torres Gêmeas, vários grupos de pessoas que conseguiram escapar apareceram nas ruas. As câmeras de televisão as entrevistavam. Elas estavam todas cobertas de cinzas, oprimidas, aterrorizadas. Alguns colocaram o microfone na boca e perguntaram como se sentiam, como tinha sido, coisas assim. Algumas delas explicaram: “parecia um filme”. Significa isso que o que é real e o que é fictício não se distinguem mais? De forma alguma. Essa era uma interpretação muito difundida naquela época, mas falsa. A verdade é que quando ocorre um trauma dessa natureza demora um pouco para absorver a realidade. Há cem anos, essas pessoas teriam dito que era como um sonho. Hoje dizem isso como se fosse um filme. Mas nenhum dos que compareceram teria pensado em duvidar de que isso fosse verdade. Eles apenas disseram que ficaram muito surpresos porque o que viram nos filmes de repente se tornou realidade. Foi a sua maneira de significar a magnitude da catástrofe. Para não expressar suas dúvidas. O que importa nas pessoas são suas próprias experiências. Você pode me deixar contar outra anedota?
 
E mil coisas para contar.
 
1969, no sul do Marrocos. Deserto completo. Uma pequena cabana com luz elétrica e um café com televisão. Armstrong acabou de pisar na Lua. Me aproximo do homem que serve o café. Na TV você pode ver os astronautas pulando. Digo ao homem: “é fantástico, as pessoas estão na Lua!”. Ele balança a cabeça e diz não. “Claro que não!” – digo e quase o forço a sair e olhar para o céu, onde a Lua brilha. “Eles estão aí!”, eu digo, apontando alternadamente para a Lua e para a televisão. O homem ri, olha para mim e diz: “o que há de errado: é só televisão!”. De certa forma, é normal confiar em experiências pessoais.
 
No final do livro você diz que a guerra é inefável.
 
Sim, eu me lembro.
 
É desmoralizante.
 
Por quê?
 
É desmoralizante que a arte não sirva em momentos gigantescos.
 
Não é zero nem cem. Não é que não funcione. A questão é que qualquer pessoa que tenha visto a guerra sabe que a sua representação tem pouco a ver com ela. Sim, existe Tolstói, existe Goya. Mas eles não estavam lá. O barulho, por exemplo, o barulho da guerra. Se você ainda não foi, você não pode imaginar. Como um show de rock onde você colou o ouvido no alto-falante e multiplicou o ruído por cinco. Onde está esse barulho? Em que cinema? Em qual sala de concertos? Em que teatro? A arte é apenas um gesto na direção dessas experiências. Um gesto único, embora essencial.


 
* Entrevista publicada em 30 de abril de 2004, aqui na revista Letras Libres.

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