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A falência, de Júlia Lopes de Almeida

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Por Pedro Fernandes Júlia Lopes de Almeida, 1912.   No longo debate sobre a falibilidade do cânone literário sobram exemplos de obras significativas colocadas à margem. Mas, sempre podemos contar com as necessárias aberturas, afinal, a ideia do canônico como uma redoma intransponível resulta, para sorte do próprio cânone, ultrapassada. Na literatura brasileira, fundada na também aos poucos vencida noção de filiada como se uma ramagem da literatura portuguesa, as fronteiras dessa biblioteca de obras fundamentais seguiram à risca certo modelo que privilegiou os elementos fundamentais da base social regente, entre eles, o desinteresse pelo reparo para com as escritoras. Assim, Júlia Lopes de Almeida ficou sempre lembrada como a mulher que esteve nos bastidores do projeto da Academia Brasileira de Letras e abdicou de sua presença no clã para que o marido, de obra, sabe-se, muitíssimo inferior, ocupasse o que era seu de direito.   É preciso outra vez tocar essa história porque cont...

As dores do luto são também uma forma de seguir

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Por Tiago D. Oliveira   Desde O boxeador polaco (Rocco, 2014), primeiro livro publicado no Brasil de Eduardo Halfon, o leitor já encontra a memória e a ficção se misturando em contos em que um avô revela histórias sobre Auschwitz. O que volta a acontecer em Luto (Mundaréu, 2018), com tradução de Lui Fagundes, quando o autor guatemalteco constrói uma investigação sobre a morte de Solomón, um irmão de seu pai que faleceu ainda criança, afogado em um lago. No decorrer do romance o autor vai construindo um quebra-cabeça com as peças de suas memórias de uma infância que é também constantemente transpassada pela imaginação em recriação dos acontecimentos. Um dos temas que a narrativa carrega é a fuga da família para os Estados Unidos na década de 1970 e assim, fugindo da guerra civil, o autor apresenta a diáspora que tem o exílio como ferramenta de reflexão individual e consequentemente nacional, já que esse ponto é fio condutor para busca da identidade. Ao passo que o protagonista pro...

A superfície de Hemingway (III) – Adeus, Hemingway

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Por João Arthur Macieira Ernest Hemingway e Fidel Castro, Cuba, 1960. Foto: Salas As formas pelas quais uma cultura lê sua literatura por vezes depende mais do contexto histórico do que das qualidades do próprio objeto literário. Além disso, esse mesmo contexto é composto por diversas perspectivas críticas, muitas vezes conflitantes e, para a crítica e a historiografia literária, pode ser mais interessante investigar essa diversidade do que se limitar à análise intrínseca da obra, ainda que essa seja indispensável.  Nesse ensaio, vamos comentar duas imagens distintas do mesmo Ernest Hemingway, ainda que nenhuma delas tenha se debruçado sobre sua produção literária para justificar-se. Trata-se aqui do filme de Tomás Gutierrez Aléa, Memórias do subdesenvolvimento (1968) e a autobiografia romanceada de Guillermo Cabrera Infante, Corpos divinos (2016). Essas obras apresentam perspectivas diferentes, e os sentidos que empregam à recepção (ou, no caso, a despedida) de Hemingway sejam p...

“A mobilidade infinita”: um comentário sobre o gênero trágico no Fausto, de Goethe

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Por Felipe de Moraes Fausto e Mephisto no calabouço (litogravura colorida). Joseph Fay, 1846. I PRÓLOGO NO TEATRO   “So schreitet in dem engen Bretterhaus Den ganzen Kreis der Schöpfung aus, Und wandelt mit bedächtger Schnelle Vom Himmel durch die Welt zur Hölle!”   Faust — J. W. von Goethe     Em carta datada de cinco de maio de 1797, Schiller escreve a Goethe dizendo da revisitação que fez da Poética de Aristóteles e das considerações acerca do gênero trágico realizadas pelo filósofo grego, que a seu ver eram demasiadas normativas no que concerne à forma exterior que se deveria adotar para a transmissão do discurso trágico (GOETHE; SCHILLER, 2014, s.p.). Aristóteles surgia, então, para ambos, como o “juiz infernal” daqueles que cultivavam uma poética como estrutura dada pronta e acabavam por não refletir filosoficamente sobre as formas poéticas.   Um mês depois, em vinte e dois de junho, a obra embrionária de Goethe, o Fausto , apareceria como tema de discus...

Boletim Letras 360º #422

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    DO EDITOR   1. Saudações, caro leitor! O assunto terrível que tornamos público nesta sexta-feira, 19 de março de 2021, foi outro ataque disparado contra este blog. Desde há algum tempo os leitores sabem das reiteradas mensagens de ódio enviadas contra obras e autores. Desta vez, a ideia saiu da escrita para a ação de invadir, adulterar e deletar publicações.   2. O problema foi verificado. E desde há dois dias que o trabalho tem sido o de comparar textos com as versões salvas nos backups e restituir o que foi deturpado ou apagado. É um trabalho lento para duas mãos com um tempo muito exíguo. Mas, saiba, será contornada a situação.   3. Desde já, aproveito este espaço para, em nome do Letras , agradecer a todos que escreveram seu apoio e seus votos de força pelo trabalho aqui desenvolvido, em meio a um país integralmente dilacerado pela dor da morte, pelo imperativo do ódio gratuito e pela agonia da ignorância. Muito obrigado!   4. Abaixo, as notícias ap...

É o poder: BBB, indústria cultural e o sequestro da imaginação

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Por Leonardo Matos   “A literatura é o sonho acordado das civilizações. Portanto, assim como não é possível haver equilíbrio psíquico sem o sonho durante o sono, talvez não haja equilíbrio social sem a literatura.” — Antonio Candido, “O direito à literatura” La Baker .   Loïs Mailou Jones Cada gesto de leitura parece vir acompanhado da possibilidade de ingressar em outro regime de cognoscibilidade. Abre-se diante de nossos olhos um mundo ao mesmo tempo diverso e semelhante ao mundo já conhecido. Alteram-se as combinações, embora os signos sejam parcialmente preservados — dado que no sonho todo igual se abre à diferença. De repente, finda a leitura. Lançamos sobre a realidade um olhar de surpresa ao reconhecermos a distância entre a vida desenhada pelo sonho e o cotidiano fixado na realidade. Acordar pressupõe então o reconhecimento do que a vida podia ser, mas não é. Assim, ao longo da leitura seríamos convidados a esboçar a partir de dentro que mundo pretendemos juntos d...