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Naqueles dias havia sempre amigas em casa

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Por Pilar del Río José Saramago à janela de sua casa em Lanzarote.   Não combinaram, mas iam chegando a Lanzarote amigas que nunca tinham passado pela ilha, ou que havia tempo não apareciam, ou que, sem grandes explicações, encontravam uma desculpa para estar ali e dividir com José Saramago os momentos que o trabalho ou o avanço da doença permitiam.   Chegaram da Argentina ou do México, de Portugal, da Alemanha, da Itália, da Espanha. Eram escritoras como Ángeles Mastretta, uma das últimas a passar pel’ A Casa , ou Nicole Witt, sua agente literária, Annie Morvan, sua editora francesa, ou Pilar Reys, sua última editora em espanhol; ou Patricia Kolesnicov, sempre tão próxima apesar de viver em Buenos Aires, ou Lola Cintado, Mamen Otero ou Marta Carrasco, amigas de toda a vida. Também de Portugal chegaram Carmélia Âmbar, Antonietta Tessaro ou Teresa Beleza, que irromperam em grupo, ruidosas quase todas, imprescindíveis na hora de ouvir um concerto, tomar o café no jardim ou simpl...

José Saramago e a trajetória do romance

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Por Pedro Fernandes José Saramago em seu escritório Desde cedo José Saramago foi um homem feito de palavras. Mas isso, de alguma maneira, todos nós somos. Quando pensamos o mundo como uma matéria derivada da relação que com ele mantemos mediada pela consciência, sabemos que nada existe, nem a própria consciência, sem a palavra. Ainda assim, a afirmativa se reveste de uma dimensão particular quando seu referente é um escritor. É que nesse caso a palavra é também seu ofício e especificamente em Saramago a escrita não é somente seu produto, mas via de interrogação sobre o mundo. Evidentemente que não foi ele inaugurador dessa singularidade — herdada, claro está, do modelo do intelectual engajado do qual Jean-Paul Sartre foi seu conceituador e um típico representante e das motivações de corte social-marxista —, mas é quem a resgata numa ocasião quando constatamos o assoreamento do lugar social do intelectual e ainda quando os valores da escrita literária se tornam ora presos a um fechamen...

José Saramago — português e universal

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Por José Vieira José Saramago. Foto: Fernando Peres Rodrigues.   Era uma vez um homem nascido na Azinhaga e que lá voltou para nascer outra vez. Era uma vez o neto de Josefa Caixinha, a menina de 90 anos que tinha pena de morrer porque o mundo era tão bonito. Era uma vez o neto de Jerónimo Melrinho, o velho que sentindo a morte chegar foi despedir-se de todas as árvores do quintal. Era uma vez José de Sousa, o homem que se fez Saramago e ganhou o Prémio Nobel da Literatura. Era uma vez o centenário desse escritor, feito a pensar nos próximos cem anos. Era uma vez um escritor, um autor, um narrador, um cidadão. Era uma vez.   O homem que não nasceu “para isto” é o mais universal de todos os escritores de língua portuguesa. Se é certo que o Nobel pode ser visto como mais um prémio, havendo interesses políticos e ideológicos à mistura, a verdade é que, no caso do escritor português, este é um prémio mais do que justo e merecido. Um galardão que reconhece o percurso de um homem qu...

Tempo ao tempo. Itinerário poético de José Saramago

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Por José María Muñoz Quirós José Saramago. Foto: Gonçalo Rosa da Silva   Os poemas possíveis   1. Até ao sabugo   A trajetória poética do escritor português José Saramago se inicia tardiamente, numa idade pouco habitual para escrever poesia, para se abrir caminho na linguagem literária exigida pelo poema.   Com quarenta e quatro anos aparece a primeira edição de Os poemas possíveis e este livro se inicia com uma citação que esclarece o sentido do labor poético de Saramago: tempo ao tempo para encher o vaso da palavra, para fazer-se poeta, para exercer a alta missão da escrita.   Neste livro, cuja primeira parte se intitula “Até ao sabugo”, é o ponto de partida que favorecerá diferentes campos e territórios nos quais o escritor se moverá; se desenvolverão ideias e conceitos que já aparecem no primeiro poema cujo título é o mesmo que a primeira do livro.   Para escrever poesia é preciso ter algo a dizer, é preciso sentir a urgência e a razão última dessa pr...

Digna raiva. As crônicas políticas de José Saramago no Extra (1977-1978)*

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Por Miguel Koleff José Saramago em comício, anos 1970. Foto: Arquivo da Fundação José Saramago. Concentro-me no estudo das crônicas políticas escritas por José Saramago para o semanário lisboeta Extra entre 23 de julho de 1977 e 25 de maio de 1978. São 31 (trinta e uma) crônicas incluídas no volume Folhas Políticas publicado em 1999**, que reúne as intervenções do autor no campo do jornalismo entre 1976 e 1998 e que acompanha — em modo de apêndice — um livro anterior, publicado em 1990 e que condensa dois importantes volumes: os artigos jornalísticos publicados no Diário de Lisboa no período pré-revolucionário de 1972 a 1973 e os editoriais do Diário de Notícias , redigidos em 1975, enquanto o autor exercia o cargo de diretor ajunto nesse jornal.   Do ponto de vista formal, tanto as crônicas do Diário de Lisboa , como as do Diário de Notícias e Extra mantêm a mesma estrutura e extensão, precedidas de um título que as distingue. A linguagem é semelhante e o tom é modificado de ...