Boris Pasternak

Por Christopher D Michael



Quem foi, então, Boris Pasternak? Depois da emblemática juventude dourada da Moscou do Futurismo e de dividir aquele mundo (uno com Shelley e outro na qualidade de Byron) com Maiakóvski, só até fins dos anos vinte, este poeta, que noutra época havia sido um perfeito apolítico, mostrou interesse genuíno por respaldar o regime bolchevique. Mas educado por Scriabin (creio que só ouvindo seu mestre musical alguém pode espreitar o mistério poético pasternakiano) e havendo fracassado como poeta revolucionário com O ano 1905 (1927), Pasternak retrocedeu dando um passo adiante e teve a louca ideia de seduzir Stálin, convertendo-se em sua má consciência. Como havia ocorrido frente ao czar com Pushkin num dia remoto, Pasternak quis insuflar em Stálin o sopro da clemência.

Ninguém parecia menos apto para sobreviver ao terror que o futuro criador de Jivago: indiscreto, impulsivo, temperamental, megalomaníaco como todo aquele que se sabe eleito pelas musas, Pasternak sobreviveu. Quando a esposa de Stálin se matou em 1932, o poeta se atreveu a personalizar sua condolência com o tirano escrevendo-lhe um pós-escrito público que se desmarcava dos insípidos pêsames assinados pelos escritores soviéticos e publicado em Literaturnaya Gazeta. Não parece que Stálin tenha mostrado muita tristeza pela deserção de sua companheira mas é provável que a excentricidade sincera de Pasternak o tenha intrigado ou até lhe comovido. (A literatura sobre tiranos é todo um gênero do século XX e nela cansamos de ler sobre suas debilidades: a natureza, os cachorros, os poetas...)

Em 1935, apesar da grave depressão na qual o poeta estava afundado (ou graças a ela), Stálin o fez levantar-se da cama para enviá-lo ao Congresso Antifascista em Defesa da Cultura em Paris, no qual, apadrinhado por seu admirador Malraux, foi a estrela soviética: Mais ainda: em 1937 Pasternak não apenas se negou a assinar um manifesto que festeja a execução pública do popular marechal Tukhachevski como teve o atrevimento de escrever outra carta a Stálin justificando sua negativa na oposição tolstoiniana sobre a pena de morte.

Pasternak sobreviveu à morte, durante o terror, de seus amigos georgianos, os poetas Yashvili e Tabidze, cuja poesia havia traduzido para o russo para satisfazer a Stálin; sobreviveu à chamada telefônica mais famosa e ameaçadora da história da literatura, a em que o ditador marcou encontrá-lo no Kremlin para perguntar-lhe se realmente pensava que Mandelstam era um grande poeta e se não o respeitava o suficiente no intuito de defendê-lo ante os problemas (provocados pela polícia de Stálin) que colocavam em risco sua vida (a do poeta).

Mandelstam desapareceu e ninguém sabe se Pasternak fez algo ou não fez nada quando o poeta mártir o interceptou numa rua de Moscou para lhe recitar o poema satírico contra Stálin que lhe custou a vida. “Tu não disseste isso e não ou ouvi”, dizem que Pasternak disse isso.

Neste jogo de gato e rato, Pasternak parecia haver ganhado, nas contas póstumas, mais que Stálin: conservou seus privilégios como escritor soviético (que não eram pouca coisa naqueles tempos de penúria) e utilizou sua posição para ajudar, no que pode, suas amigas Tsvietáieva e Akhmátova. Salvo dos poemas esquecidos e esquecíveis, não prostituiu sua poesia no antro do realismo socialista e só voltou a publicar, por patriotismo, durante guerra anti-hitleriana.

Pasternak criou-se (e tudo isso pode ler-se em Doutor Jivago) ilusoriamente, e a ilusão foi compartilhada por milhões, e na Grande Guerra Pátria, como chamaram os soviéticos, abrandaria o coração de Stálin e o efeito purificador e sacrificial da contenda traria tempos um pouco melhores. Nada disso: a partir de 1945, os campos voltaram a encher-se com milhões de ex-combatentes. As deportações massivas alcançaram uma dimensão desconhecida. A medida do sacrifício redobrava o rigor do castigo. 



Pasternak passou à ofensiva durante o pós-guerra ao ponto de ser detido por espionagem, uma vez que seus pais haviam se refugiado na Inglaterra. Suportou com inteireza a brutal campanha antiformalista de Zhadanov em 1947 e o desafiou com um recital. Outra vez, Stálin não atuou contra Pasternak. Mas lhe cobrou mais tarde. Insistia com o poeta para que escrevesse um romance em verso sobre as ilusões perdidas da guerra e Konstantín Fedin, o comissário em exercício das letras, o ameaçou. Desobediente, Pasternak foi castigado com a prisão, em 1949, de sua nova amante (e amor de sua vida). Olga foi condenada a cinco anos no gulag. Sabendo da prisão, ocorreu uma coisa insólita na sombria história da Lubianka, a prisão moscovita: Pasternak entrou no edifício a interrogar os espantados inquisidores sobre o destino de sua amada e ao menos averiguou que não estava grávida. Olga cumpriu sua condenação e voltou para o lado de Boris; nesses anos, os da década de cinquenta, estava escrevendo Doutor Jivago.

Pasternak morreu em 30 de maio de 1960 em Peredelkino, a aldeia soviética reservada aos escritores fora de Moscou. Alguns de seus ilustres vizinhos – ninguém menos que Fedin vivia ao seu lado nessa casta – não assistiram ao funeral, celebrado segundo o rito da Igreja Ortodoxa, em que Sviatoslav Richter e Maria Yudina tocaram piano. Dias depois, Akhmátova, cujo filho havia sido enviado ao gulag e quem nada pode publicar durante os anos de Stálin, recapitulava sobre a sorte desse misterioso homem feliz que se sobressaiu no pior dos mundos possíveis:

“Estive discutindo durante dias com um amigo sobre Pasternak. Imagina! Disse que Boris Leonidovitch foi um mártir, um perseguido etc. Que absurdo! Boris Leonidovitch foi um homem de uma felicidade incomum. Em primeiro lugar, foi feliz desde seu nascimento porque amava a natureza. Com quanto gozo fala sobre ela! Em segundo lugar, como foi perseguido? Quando? Que perseguição? Tudo dele foi publicado, se não aqui, fora. E se algo não se publicou aqui ou lá, ele mesmo dava seus poemas a dois ou três admiradores para que os distribuíssem de mão em mão. Onde está a perseguição? Sempre teve dinheiro. Seus filhos, graças a Deus, estão bem. Se comparamos com o destino de outros, Mandelstam, Tsvietáeiva... Da maneira em que se considera, o destino de Pasternak foi feliz.”

Houve audácia e  sorte no destino de Pasternak, mas sobretudo a magia branca do poeta que me remete a uma passagem de Doutor Jivago, aquela em que Kubarika, feiticeira num acampamento remoto de guerrilheiros bolcheviques na Sibéria, exorciza a vaca enferma de Agafia, mulher de um dos soldados. Entrando em confiança, Agafia quer pagar Kubarika por um segundo feitiço que lhe permita livrar-se de outra desgraça, sofrida por seu marido. A feiticeira lhe pergunta se Pamfil, o marido, lhe trai. Não, diz Agafia, não é isso. O que quer é um feitiço que tire da cabeça de Pamfil o temor da tortura e da morte dela e de seus filhos quando caírem, que cairão, em mãos dos brancos. A bruxa Kubarika ri-se e diz a a Agafia: “Ah, és pobre em desgraças, querida! Olha como Deus te quer. Nestes tempos mulheres como tu não se encontram nem à plena luz do dia como um candeeiro. Duas desgraças para uma pobre cabecinha e uma delas é um marido demasiado bom”.

Talvez ao maravilhoso Boris Pasternak lhe coube, como Agafia, ser pobre em desgraças numa época tenebrosa.


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