Por Leonardo Thomaz
Assim a poesia circula
como um facho
levado por mãos que a prezam, e alguma coisa,
no abismo, se salvará.
— Carlos Drummond de
Andrade.
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Vitrine da Livraria José Olympio, Rua do Ouvidor, anos 1940. |
Uma página de um livro
das memórias de Pedro Nava pode equivaler a crônicas inteiras de Carlos
Drummond de Andrade. Ambos leitores de Proust — Drummond, inclusive, chegou a
traduzi-lo —, estabelecem relações distintas com sua obra. Enquanto Pedro Nava
extrai parágrafos caudalosos de pequenos episódios perdidos no passado,
Drummond se praza na síntese poderosa desses momentos, confinando-os a uma
dolorosa fotografia na parede. São maneiras de elaborar o passado, matéria de
alta envergadura e longa tradição nas letras mineiras.
A mineirice desses
escritores — inclusive, muito amigos — se cruza e se potencializa na recordação
de diferentes casas de livros. No segundo volume de suas memórias, Balão
cativo, publicado em 1973, Pedro Nava conta suas andanças pelas ruas do Rio
antigo com seu tio Antonio Salles — ele mesmo escritor importante do início do
século passado. Com sua prosa lenta e de alta voltagem poética, Nava relembra
de sua visita à hoje extinta Livraria Garnier, casa editorial dos principais
nomes da literatura brasileira do século XIX. O episódio ocorreu entre 1916 e
1917 e o narrador nos conta como quem não olha o relógio:
“Podia-se dividir a
livraria em três partes. Duas sequências de estantes — as mostras laterais e a
banqueta do centro. Lembro até do lugar dos livros. Durante anos a arrumação
conservou-se a mesma, para o conforto dos fregueses que sabiam onde achar o que
queriam. Nas estantes, à esquerda de quem entrava, aquele sorvete de creme das
encadernações da Coleção Nelson, a cor clara das capas avivada por motivos
verdes e pelas letras douradas do dorso (Peau de Chagrin, Anna
Kariénine, Mon Oncle et mon Curé, Les Misérables); mais para
adiante, os portugueses onde destacava-se Eça de Queirós, alguns volumes ainda
encadernados em carneira e os mais modernos em percalina verde, parda ou
vermelha. Já desapareceram essas edições bem cuidadas, boas de ler e manejar,
com o retrato do autor e o seu monóculo e o seu riso sarcástico e atarraxado de
homem bom fingindo de homem mau. Lelo & Irmãos, editores, Livraria Chardon,
Porto. À direita de quem entrava e fazendo face às outras, as prateleiras com o
mar das encadernações cor de vinho da Lutetia, que era uma variante, um ramo da
Nelson. Literatura francesa e traduções internacionais (Ronsard, Alfred de
Vigny, Carlyle). No centro, numa espécie de banca alta, as edições da casa ora
em brochura amarela ora na encadernação de percalina verde-clara que temos
desmerecidas no nosso Carlos Ribeiro e que se ofereciam novas em folha,
lustrosas, cheirando a cola e verniz lá no Garnier. Era a produção nacional. O
velho Machado, Graça, Alencar, Veríssimo, João do Rio, tio Salles, dona Júlia…
A luz do alto, vinha de clarabóias distantes e distribuía-se num dourado
atenuado e nítido sobre os livros e pessoas. Essas, tão interessantes quanto os
livros. Quando penso nas que conheci na Garnier (conheci, porque meu tio fazia
questão que eu apertasse suas mãos) fico aterrado com minha idade, com a
passagem do tempo. Figuras remotas como os fantasmas da História e sobre os
quais eu pus meus olhos mortais! Com quem falei e de quem segurei a destra!
Para mostrá-los, tenho de superpor minhas reminiscências de 1916 e 1917, os
anos em que convivi com Antônio Salles e em que várias vezes fui com ele à
cidade, a seus passeios habituais, às compras, à Avenida, ao Alves, ao panteon
da Garnier.” (p. 204)
Peço, agora, desculpas
ao leitor pelo exagero na citação — ele fora preparado no título. Lemos um
parágrafo de Pedro Nava e com ele acessamos a forma com que suas memórias são
narradas: ao puxar qualquer fio do novelo do passado, dá-se forma a uma intrincada
malha de nomes, cores, cheiros, lugares e caminhos visitados pelos “olhos
mortais” e pelo nariz também “mortal” do garoto Pedro.
O velho Pedro conta
seu passado com máxima saturação: toda a galeria das coisas percebidas pelo
narrador parece ter espaço no ato da narração. Para isso, os recursos da ficção
são indispensáveis. Ora, é de fazer suspeitar que após passarmos os olhos pelo
cânone da literatura Ocidental, com nomes da envergadura de Tolstói e Victor
Hugo, a claraboia, que provê luz superior, é nomeada somente após “a produção
nacional”, o que lhe atribui certo destaque, ao menos quando vemos pelo prisma
memorialista do autor.
A leitura do parágrafo
nos insere no espaço de uma livraria que jamais fomos. O narrador organiza em
perspectiva sua arquitetura: à esquerda, literatura estrangeira com títulos em
francês; à direita, espaço reservado à literatura francesa e traduções de outros
lugares, como Carlyle. Situada no limite dessas duas águas, a literatura
brasileira. Todos esses ramos da memória ganham textura no estilo de Pedro
Nava, dado que as edições guardadas na lembrança emergem da confusão com suas
cores — capas douradas e verdes à esquerda, e vinho à direita. Numa “banca
alta”, as edições nacionais ainda cheiram a cola e verniz. A malha simbólica da
narração forma pouco a pouco e diante dos nossos olhos a novidade da literatura
brasileira, nascida, naquela jovem República dos anos 1910, à imagem e
semelhança dos franceses.
Para a minha leitura
destas memórias, busco as edições dos anos 1970, hoje amareladas, impressas
pela Livraria José Olympio. Há algo em minha bibliofilia que se compraz na
leitura deste parágrafo. Ler um livro de memórias numa edição com mais de meio
século de idade ganha, ao menos para mim, ares de metalinguagem, adequando a
forma ao seu aporte em páginas.
Sobre esta importante
casa editorial, em 1957, Carlos Drummond de Andrade escreveu a crônica “A
casa”, que saiu em livro pela José Olympio, no volume Fala, amendoeira.
É digna de comparação a coincidência destes amigos mineiros, muito afeitos ao
memorialismo. É certo que Drummond não se permite os mesmos derramamentos de
Nava, de sorte que o estilo drummondiano jamais escorregaria para a primeira
pessoa no mesmo deslumbre que Nava escreve ao lembrar dos que apertou a mão:
“Passei uma última vez
pela livraria José Olympio, na rua do Ouvidor, para conferir minhas recordações
com os objetos que a elas estão ligados. Daqui a um mês, esses objetos quedarão
guardados em nós, numa caixa invisível, que abrange prateleiras, balcão, vozes,
pensamentos, pessoas. Bem sei que a vida é ‘duração’ e mobilidade, como ensina
o filósofo, e não há razão de melancolia: a loja será desmanchada para se
recompor em edifício novo, nós mesmos, com o tempo, seremos recompostos sob
novas espécies, e o fato de não termos consciência física da permanência na transformação
não impede o seu alegre desenvolvimento. Olhei para o velho Castilho e o
Altamir, proveu o rapazinho Athos, que hoje é homem-feito, perguntei pelo
Daniel, que defende outro setor, por todos da velha guarda, e verifiquei de
súbito que própria saudade é dinâmica; eu estava ali há vinte anos passados,
desembarcando de Minas, como o próprio José Olympio, de São Paulo. Se alguns ‘viciados’
da casa, como Graciliano Ramos, aparentemente tinham morrido, a glória do nome
provava a mentira do desaparecimento. J. O. criara uma coisa que não acaba
mais.” (p. 35)
É latente a
continuidade entre o trecho de Nava e este começo da curta crônica de Drummond.
Como acessar o livro de Nava senão como um elaborado e extenso nexo entre
“‘duração’ e mobilidade”, no qual tampouco há espaço para a melancolia? Ora, o
estilo baixo e por vezes jocoso das rememorações é o que salta aos olhos —
claro que por vezes entrecortados por lamentos diante do efeito inexorável do
tempo.
O registro
drummondiano é, como se vê, de outra cepa. A crônica inicia com uma
correspondência entre a ida à livraria na rua do Ouvidor e a procura por
objetos biográficos, nos quais estariam sedimentadas, fora do corpo, as
memórias. Após um curto período — um mês —, o que objetivamente encontramos na
livraria já habita nosso espaço íntimo, “numa caixa invisível” — Pedro Nava
chama sua caixa de Baú de ossos. Ora, estamos num registro muito mais
filosófico do que memorialista. O que é belo nessas duas primeiras frases é a
necessidade, estabelecida pelo narrador, da convivência, da visita ao lugar
para ocorrer essa mediação simbólica. Noutros termos, é como se Drummond
estivesse escrevendo a crônica exatamente desse ponto médio entre o fato e a
lembrança, buscando narrar com precisão a importância da livraria José Olympio.
Logo após o
estabelecimento da lembrança, somos interpolados por uma pedra no caminho: o
esquecimento, isto é, a loja se desmancha, dá lugar a outro empreendimento.
Esse apagamento canaliza a potência da memória, reconstruindo a loja num espaço
metafísico, brumoso e luminoso, cujas densas névoas só podem ser devassadas
pela narração. A impermanência é regra inegociável da vida, porém, lida pelos
nossos olhos do século XXI, a crônica sobre a José Olympio e o parágrafo sobre
a Garnier nos causam certa angústia: há coisas que somem e, no seu retorno,
realçam somente as saudades.
“A livraria, a
princípio, não tinha aquele lugarzinho nos fundos, com o banco para escritores
se sentarem e baterem papo (uma ou duas vezes, trocarem sopapo), esse banco
preto que viera da biblioteca Alfredo Pujol, e está agora recolhido à sala de
trabalho do editor, como ‘o banco do Graciliano’. Lá era o escritório de José
Olympio, que depois passou ao andar superior. Os literatos foram chegando, José
Lins do Rego, Hermes Lima, Jorge Amado, Murilo Mendes, que acabara de
converter-se ao catolicismo ortodoxo, Marques Rebelo, a formosura de Adalgisa
Nery, o pessimismo de Graciliano, os derrames de um, as mentiras do outro, e o
local foi-se convertendo no que se chama de foco. Rapazes que desembarcassem de
um ‘ita’ do Norte, ou do trenzinho fumacento de Minas tinham de ir, correndo,
respirar aqueles ares ilustres.” (Drummond, op. cit., p. 36)
O procedimento
narrativo segue exatamente o que fora enunciado no excerto anterior — e também
o lemos em Nava: nomeiam-se os escritores que povoavam a vida literária da
editora e, assim, das letras nacionais, que, neste recorte de Drummond, dos
anos 1930, dava um salto qualitativo análogo ao do empreendido pela livraria
Garnier, no estabelecimento de um cânone brasileiro. Nota-se que o narrador
inicia a enumeração com os nomes e escorrega para adjetivos — o catolicismo de
Murilo Mendes, a beleza de Adalgisa Nery e o pessimismo do velho Graça —, o que
pode indicar, salvo engano, que a aproximação do passado, no ato da narração,
põe na boca do velho um sorriso lateral, seja pela lembrança, seja pela
ausência que ela evoca.
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José Condé, Murilo Mendes, Adalgisa Nery, Amando Fontes e Jayme Adour da Câmara na Livraria José Olympio, início da década de 1940. |
A envergadura dos
escritores publicados pela José Olympio é de dar inveja a qualquer casa de
livros do nosso século. Por um lado, é porque não se encontram dois Murilos
Mendes ou dois Drummonds ou dois Pedros Navas num curto intervalo de tempo;
mas, por outro, o faro editorial de José Olympio está inscrito no século XX,
sobretudo na consciência da importância seminal de uma editora na construção e
solidificação de uma vida literária e, portanto, de um sistema cultural no
país. Dito de outro modo, boa parte dos escritores nacionais que lemos ainda
hoje — como todos esses nomeados por Drummond — foram publicados por sua
editora. O tom provinciano — Murilo Mendes trocando sopapos com Jorge Amado! —
adotado pelo narrador contribui para darmos forma à vida cultural do Brasil do
século passado.
Uma livraria aberta em
meados do século XIX, fechada em 1934, outra transferida para a então capital
do país no mesmo ano de 1934, inclusive na mesma rua do Ouvidor. Entre a
Garnier e a José Olympio, é possível reconstituir os principais passos dados
pela literatura nacional, basilares para as leituras que até hoje fazemos. A
livraria Garnier — cheirando a cola e verniz — abre um espaço para os primeiros
passos da literatura brasileira, sempre interessada na investigação da vida
nacional, seja nos romances urbanos de José de Alencar, ou nas detalhadas
paisagens distantes de Visconde de Taunay. De certo modo, podemos perceber
essas coincidências — uma fecha em 1934,
a outra abre no mesmo ano, compartilhando a mesma rua — não como mera
coincidência, mas como sinal de uma vida cultural efervescendo, momento
decisivo da inteligência brasileira. De algum modo, pensando simbolicamente, a
Garnier das memórias de Pedro Nava se mistura, no painel do passado, com a de
Drummond, constituindo uma pedra angular da difusão da literatura brasileira.
“Por outro lado, não
se tratava apenas de uma loja simpática. Era também uma editora revolucionária,
que lançava com ímpeto nomes conhecidos de pouca gente ou de ninguém.
Apresentava um livro diferente e elegante, formato padronizado, capa desenhada
por Santa Rosa (o que nem sempre era fácil de conseguir, por o Santa, como a
felicidade, não estava onde procurassem, ou nunca o procuravam onde poderia
estar), e o aspecto gráfico e o prestígio da casa acendiam nos escritores o
desejo de figurar em seu catálogo. José Olympio editou com o mesmo espírito
autores da direita, do centro, da esquerda e do planeta Sírio, e se aos de
determinado matiz tocou um papel mais saliente durante certo tempo, isto se
deve à tendência da época, aos rumos da sensibilidade, tangida pelos
acontecimentos mundiais.” (DRUMMOND, idem)
Na continuação da
memória drummondiana, o aspecto provinciano da editora, nítido no excerto
anterior, é alçado ao espírito da época, ganhando proporções maiores, como se o
ímpeto de José Olympio estivesse sintonizado ao de seu tempo. O modo de narrar
de Drummond dá a ver que seu editor não só participou de sua época, mas, acima
de tudo, foi responsável pela formatação do espírito de sua época,
concretizando-o em livros “diferentes e elegantes”. A vontade de editar era
“tangida pelos acontecimentos mundiais”. Talvez a casa não cheirasse a cola e
verniz, pois corresponde a outro momento de nossa vida cultural, que só pôde
existir porque antes, na mesma rua, houve a livraria Garnier, visitada por Nava
ainda criança.
O ato de narrar suas
memórias de modo tão labiríntico e encantador, esclarece-nos o narrador — o
velho Pedro —, não é um exercício de exclusiva autocontemplação. Comentando
suas andanças com tio Salles, Nava nos adverte: “a viagem da memória não tem
possibilidades de ser feita numa só direção: a do passado para o presente. Não
é a sós que velejamos para os anos atrás em busca dos nossos eus” (p. 221).
Ora, se não está sozinho, quem o acompanha? A evocação dos tempos antigos
acarreta, de modo inexorável, a rememoração daqueles que povoam o passado, dos
lugares que visitamos e com quem estivemos nessas visitas. Desse modo, a
leitura do parágrafo sobre a Garnier opera “numa espécie de esponja”, isto é,
carrega consigo incontáveis camadas de diferentes tempos históricos — seja o
passado, o presente ou o futuro. O ato da narração das memórias enfeixa e
confunde todos esses tempos, de maneira que o ano de 1916 ou 1917, o ano de
1934, ou o ano de 2025 ou 2026 estão todos combinados e subjacentes às letras
impressas na página.
Quero dizer que penso
nas livrarias do meu tempo enquanto percorro a crônica de Drummond e o
parágrafo de Nava. Sobretudo, penso em como vou narrar as livrarias que
frequentei e em como calcar na memória a importância cultural diante dessas
narrações tão vivas e cientes da centralidade daquelas casas de livros. Numa
palavra, me pergunto se haveria, no nosso século, casas editoriais que
continuariam esse legado. Quem me inculcou essa pergunta, mesmo que
indiretamente, foram as últimas linhas de Drummond:
“O modernismo, então
ainda ridicularizado por jornais e salões, começou a funcionar como produto
editorial, que o público julgaria diretamente. Os ‘Documentos Brasileiros’ se
converteram num laboratório de crítica, pesquisa social e interpretação
histórica do Brasil. De modo que aquilo era uma loja de livros, à primeira
vista; mas tinha alma.
A Casa continua.” (DRUMMOND,
op. cit., p. 36-7)
A senda aberta pela
editora e livraria José Olympio, com seu modernismo e faro para escritores e
pesquisadores destacados, continua, de fato, hoje, mas talvez não com o mesmo
vigor. Ou, melhor dizendo, talvez não com a potência que poderia vigorar. O seu
legado está aquém do trabalho realizado nos tempos áureos de suas impressões.
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José Lins do Rego à entrada da Livraria José Olympio. |
Ora, pudéssemos nós
sentir o cheiro de cola e verniz — cheiro de coisa nova! — como o jovem Pedro
sentira ao entrar naquela já velha casa de livros na rua do Ouvidor. E também
onde estaria uma casa de livros tão revolucionária quanto a José Olympio? Tomada
por lobbies, camaradagens e cartas marcadas, a situação atual da
literatura brasileira diverge muito da que lemos nos nossos autores mineiros.
Essa questão é muito contraditória, dado que a quantidade de editoras que
publicam hoje é incomparavelmente maior do que há cem anos. Falta-nos, talvez,
a cola, o verniz e também a alma.
Uma editora é parte
substancial da vida literária de um país. Seria ingênuo imaginar que Machado de
Assis teria se desenvolvido sozinho sem a mão direita da Garnier, e o mesmo se
pode pensar de Drummond e Pedro Nava em relação à José Olympio. Afinal, como a
crônica muito bem nos narrou, a alma de uma editora prescinde a alma de
negócio: muitas vezes é preciso apostar num escritor que pouco vende, mas que
pode vir a ser uma contribuição substancial à vida literária. Em outros termos,
a alma de uma editora é uma via de mão dupla, de modo que o espaço de
publicação da obra é talvez tão importante quanto a obra em si e, no frigir dos
ovos, uma coisa faz a outra.
Uma editora que capta
determinado espírito de sua época dará reverberação especial a ele. A Garnier é
indispensável na formação de nossa literatura; a José Olympio é
responsável pelo avanço e modernização dela. Cada uma em seu tempo, respondendo
às exigências nacionais da época, elas contribuíram para o que conhecemos hoje
por “Literatura Brasileira”. Quando a alma do negócio sobrepuja a alma livresca
de uma editora, temos uma gama inumerável de publicações que em pouco ou nada
contribuem para seu tempo.
Se fôssemos repetir a
mineirice de recontar o passado pela via da literatura, como descreveríamos as
livrarias que visitamos? Uma luz branca, como de um centro cirúrgico, ilumina
as altas prateleiras, em que perdemos de vista as seções de “literatura estrangeira”,
preenchida de livros agressivamente coloridos, com cheiro de cola velha, que
racham na primeira abertura. No meio do caminho, um sem-número de livros
empilhados, cujas capas todas se tornam uma só coisa amorfa, colorida, que ora
nos diz, num tom solene e superior, meios de enriquecer e melhorar sua vida
emocional, e ora nos faz ler textos “literários” de inteligência artificial,
frequentemente saturados de pornografia — daquelas que te impedem de imaginar
qualquer safadeza. No meio dessa selva escura, encontramos perdidos alguns
escritores brasileiros; destes, o mais ilustre e destacado é, por talvez
coincidência, o apadrinhado de editoras riquíssimas, e que publica um livro por
ano. Com sorte, tropeçaremos nalgum livro de importância, e caso não estivéssemos
ofuscados por todo aquele aparato de cores e comandos, notaríamos que a
brochura sisuda, simples, elegante, datada de 1950, 1930, 1880, ainda tem o cheiro
forte de cola fresca e de verniz recém aplicado.
Referências
DRUMMOND, Carlos
Drummond de. “A casa”. In Fala, amendoeira. São Paulo: Companhia
das Letras, 2012.
NAVA, Pedro. Balão
cativo: memórias. Rio de Janeiro: José Olympio/Sabiá, 1973.
*Leonardo Thomaz
é doutorando em Teoria Literária e Literatura Comparada pela Universidade de São
Paulo. Sua pesquisa dedica-se à obra tardia de Thomas Mann e às inflexões teóricas
da existência de um “estilo de velhice” em grandes escritores. Além disso, também
é professor de literatura para o Ensino Básico no ABC Paulista.
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