Trivialidade e dispersão em Mrs. Dalloway, de Virginia Woolf

Por Gabriella Kelmer


Virginia Woolf. Foto: Fine Art Images/Heritage Images



“Mrs. Dalloway disse que ela mesma iria comprar as flores”, diz o primeiro e ilustre período do mais conhecido romance de Virginia Woolf. A singeleza da sentença, de aparência externa pouco dada à abstração, é constituída pela absoluta trivialidade que nela se inscreve; são os dados aí registrados, entretanto, um sumário consistente de algumas das questões centrais do romance e da personagem que o intitula. Há o casamento, evidenciado pelo pronome de tratamento das senhoras; a iniciativa em assumir a tarefa que se presume de outrem (sendo por isso necessário afirmar que irá “ela mesma”); a expectativa da beleza a que se recorre na ação de comprar flores; a absoluta cotidianidade do tema e, portanto, da mulher a ele associada. 

Tudo isso retorna sistematicamente ao longo da narrativa, expandindo-se a abertura inicial para lados muitas vezes imprevisíveis. Está esse início inteiramente afinado, no entanto, a algumas das grandes preocupações da obra: o grau de aderência às convenções sociais (são as flores para uma festa, como logo se descobre); o lugar da mulher na sociedade inglesa do começo do século XX; a busca pela beleza, pela civilidade, pelo sentido, dentro do contexto de uma existência em que todos esses dados se dispersaram. 

Além disso, lança a sentença inicial as bases para o contato com a vida, sendo o abandono do confinamento do ambiente doméstico — a abertura ao mundo — o ponto de inflexão do romance no dia de junho em que a obra se realiza. São horas o período no qual flagramos Mrs. Dalloway e alguns de seus contemporâneos, caminhantes que se esbarram durante um dia do verão londrino, sob o ritmo esfuziante — mas também esmagador, premonitório, insuportável — da cidade grande. 

“Que tolos somos, ocorreu-lhe ao atravessar a Victoria Street. Só Deus sabe por que a gente gosta tanto disso, por que vê isso dessa maneira, cria tudo isso, constrói isso ao nosso redor, desfazendo e refazendo tudo a cada instante; porém, mesmo as mulheres mais enxovalhadas, as indigentes mais miseráveis, sentadas nos degraus de entrada (arruinadas pela bebida), também faziam o mesmo; não era algo que se podia resolver, disso tinha certeza, com leis do Parlamento, e exatamente por este motivo: elas amam a vida. Nos olhos das pessoas, em seus passos gingados, cadenciados, arrastados; no alarido e no tumulto; nas carruagens, nos automóveis, nos ônibus, nos furgões, nos homens-sanduíche que avançavam oscilantes; nas bandas de música; nos realejos; no triunfo e no repique, e no estranho zumbido de um aeroplano no alto, era bem isso o que ela amava; a vida; Londres; esse momento de junho” (Woolf, 2017, p. 23-24).

A partir de um procedimento que faz uso corriqueiro do discurso indireto livre, constitui-se uma narração sensível à vida externa como estação de onde parte o desvelamento de subjetividades circunscritas, alternadas à medida que experienciam a presença de outrem. Estarem duas personagens no mesmo parque, ou na mesma calçada, é suficiente para que o foco narrativo transite de uma para outra, em técnica que promove um perscrutar constante do que seria de outro modo o indiferente movimento citadino. Constitui-se, assim, um quadro diverso de perspectivas pessoais que funciona em dois níveis: como janela através da qual se pode perscrutar a alteridade contida no ambiente urbano e como revelação das particularidades de cada indivíduo.

Inseridas em uma definitiva confusão histórica, as personagens alçam-se a um encantamento perante o ambiente que é tão intenso quanto fugaz, jazendo logo qualquer volátil otimismo, qualquer enternecimento tocante, sob as pancadas insistentes do desespero, da angústia existencial e da presentificação da memória (e de sua acompanhante, a melancolia). É essa amplitude emocional — a capacidade das personagens de sentirem, ao mesmo tempo em que tentam analisar o mundo com criticidades diversas em compreensão, em interesses, em autoengano, em loucura — o que torna a experiência de leitura da obra de Woolf tão particular.

É por essa razão, a partir de idiossincrasias a elevarem e sufocarem o espírito sucessivamente, que os eventos cotidianos da narrativa assumem a solenidade das grandes descobertas, ou o caráter abismal do último desamparo. Um carro da nobreza parado na rua torna-se mais do que sua aparência exterior; é um símbolo, desdobrando-se ora em uma intensa sensação de dignidade vinculada à presença possível da realeza inglesa, ora em aguda empatia ao se pensar indistintamente na pobreza circundante, espectadora da vida luxuosa dos nobres. Quando um avião cruza os céus de Londres, diferentes consciências reagem a ele — pela beleza proporcionada, pelo desejo de deslocamento e de mudança que evidencia sua passagem, ou ainda por ser o registro da alma e da dedicação humanas, testemunho de um trabalho incansável na conquista das distâncias. 

É dessa maneira que as personagens se alternam como foco da narração e assumem, cada uma a seu modo, uma forma singular de visualizar os mesmos fatos. Sua postura autorreflexiva e indagadora é simultaneamente estranha ao leitor contemporâneo, em tempos que convivemos de modo tão incisivo com as distrações que nos afastam justamente desse movimento de autoconsciência, e vívida, pois são os dilemas — o estranhamento e a insegurança perante um encontro inesperado, a sensação de desajuste, o ressentimento com o presente, a súbita, luminosa compreensão do outro em seus falseamentos e em seus disfarces — intimamente humanos. É também humana a dinâmica de traçar sentido, de empregar a razão, de amar a vida, nos momentos solares em que ela se permite ser amada.

“Suas palavras se dissiparam. Como fogo de artifício. As fagulhas, depois de abrirem caminho pela noite, capitulam diante dela, a escuridão cai, despejando-se sobre a silhueta das casas e das torres; encostas desoladas se esbatem e desaparecem. Porém, ainda que tenham sumido, a noite continua repleta delas; despojadas de cor, sem janelas, persistem de modo mais intenso, indicando o que a débil luz do dia deixa de transmitir — a aflição e a expectativa das coisas aglomeradas na obscuridade; desprovidas do alívio que traz o amanhecer quando, lavando de branco e cinza os muros, destacando as janelas, levantando a névoa dos campos, revelando as plácidas vacas castanho-avermelhadas pastando, tudo volta a se mostrar ao olho; volta a existir. Estou só, estou só!, exclamou ela, junto ao chafariz no Regent’s Park (mirando a estátua do indiano com a cruz), como talvez à meia-noite, quando se confundem todas as fronteiras, o país recobra sua forma antiga, tal como a viram os romanos ao desembarcar ali, sob o céu nublado, quando os montes ainda não tinham nomes e os rios serpenteavam por regiões que ninguém conhecia — tal era a escuridão que ela sentia; então de repente, como se estivesse sobre uma plataforma, exclamou que era a mulher de Septimus, com quem se casara anos antes em Milão, a esposa dele, e jamais, jamais diria que ele estava louco!” (Woolf, 2016, p. 46-47).

Dentre as personagens que conhecemos ao longo da narrativa, algumas tão breves quanto o tempo que levam para articular um único pensamento, três permitem mapear mais integralmente a dinâmica romanesca: Mrs. Clarissa Dalloway, que brevemente conhecemos; Peter Walsh, que, ao retornar da Índia, visita a casa dos Dalloway e a mulher que o rejeitou na juventude; e Septimus Warren Smith, combatente da Primeira Guerra. Estão esses seres ficcionais em lugares diversos frente às convenções sociais.

A Clarissa Dalloway, como diz ela mesma, não faltam nem beleza nem inteligência. Sua falta é de outra ordem: “algo central que se irradiava; algo caloroso que rompia as superfícies e agitava o frio contato entre homem e mulher, ou entre duas mulheres” (Woolf, 2017, p. 55). Para Peter Walsh, é também a frieza e o falseamento de si mesma com que Mrs. Dalloway se comporta desde a juventude as características que se opõem à incontornabilidade de sua presença e à atração por ela exercida. Correspondendo a cada turno às expectativas, alinhando-se perfeitamente às demandas sociais e ao casamento, preocupada em parecer bondosa, agradável e empática, Mrs. Dalloway opta sempre pela conformação. 

É nesse ponto que devo discordar que simboliza a personagem a liberdade feminina, exceto se considerarmos sua liberdade como a medida possível de autonomia dentro da vida encastelada que resta à mulher respeitável dentro de uma sociedade altamente reprimida como a inglesa. É verdade que decide comprar suas flores, desafogando as obrigações das criadas com gesto tão altruísta quanto autoindulgente, mas não há muito mais que possa fazer; não quando negou taxativamente — por opção e por falta dela — todos os caminhos que a levariam para a incerteza, para a aventura, para o desconhecido, incluindo-se aí não apenas o casamento com Peter Walsh, mas também a própria atração por outras mulheres. A frieza de Clarissa reside nesse ponto, no fato de conseguir repetidamente pôr a termo o próprio desejo, submetendo sua inteligência — muito mais brilhante do que a de Richard Dalloway, seu marido, segundo a opinião de Peter — ao sequestro dos salões de festa. Mas seria injusto julgá-la negativamente por isso, culpabilizá-la por ser o que podem ser as mulheres, quando o mundo em que vive não permite outra alternativa ao ócio (ocasionalmente suspenso pela compra de flores) senão a ruína. 

O alijamento da própria compreensão, o hábito da costura, a trivialidade das festas que organiza e o desinteresse pela política e pelos mortos de guerras longínquas são elementos que coexistem com uma urgência premente pela beleza, com um senso estético aguçado e aberto ao mundo, com a necessidade vertical e intensa de contemplação. É com um olhar crítico que se questiona, de modo compreensível a qualquer ser humano, sobre a natureza das próprias ações, interpelando a medida que devem elas ao olhar alheio. Embevece-se, decepciona-se, embaraça-se Mrs. Dalloway, atormentada pela visita de Peter, excessivamente tocada pela presença da filha, indignada pela aparição de uma Miss Kilney, jovem que introduz em sua casa a religião e a materialização da pobreza. Na personagem vivem pulsões opostas, momentos contraditórios, sendo ainda um amor pela vida — que torna suas festas oferendas metafóricas — o traço a fixar algo em sua descrição apenas aproximativa. Escorregadia e complexa, Mrs. Dalloway se emociona, ainda que o arroubo emocional permaneça aprisionado sob a aparência exterior, e aspira aos encontros, às reuniões, o que justifica seu esforço e sua ocupação mais frequente.

“Assim era ela — aguçada; como uma seta; definida. Assim era quando um esforço, uma convocação para ser ela mesma, juntava suas partes, só ela sabia o quão diversas, o quão incompatíveis, e as arranjava para o mundo em torno de um único centro, um diamante, uma mulher que se sentava em sua sala e fazia desta um local de encontro, certamente uma radiância para algumas existências opacas, um refúgio onde podiam se abrigar os solitários, talvez; ela havia incentivado jovens, e eles se mostraram agradecidos; havia procurado ser sempre a mesma, nunca revelando nada de tantos outros aspectos de si mesma — falhas, ciúmes, vaidades, desconfianças, como nesse caso em que Lady Bruton deixou de convidá-la para o almoço; o que, pensou (afinal penteando o cabelo), é de uma baixeza sem tamanho! Bem, onde estava o vestido?” (Woolf, 2017, p. 62-63).



Peter Walsh se opõe ao convencionalismo de Clarissa Dalloway com tal intensidade que é possível entrever a todo momento seu ressentimento com o passado que compartilham. Teve seu pedido de casamento negado por ela quando ainda eram jovens; não formou família nem teve filhos, retornando à Inglaterra no presente da narrativa em razão de uma paixão ilícita pela esposa de um oficial. Sem ter construído qualquer monumento de respeitabilidade ao longo da vida, precisa, aos cinquenta e três anos, de uma nova ocupação, que pretende buscar, humilhado, junto a velhos conhecidos (muitos dos quais, aliás, negam a mera possibilidade apenas por ouvirem seu nome mencionado). 

Sua voz crítica e arguta é ouvida por Mrs. Dalloway desde o passado como marca de uma insubordinação que talvez só a incomode tanto porque a despe de seus disfarces; é Peter capaz de compreender o exagero e a farsa de cada gesto de Clarissa, bem como cada uma das suas ocultações. Em seus julgamentos, é ele inclemente com todos à sua volta, sendo nessa medida — em que considera uns e outros imbecis, modestos, desinteressantes — que seu pedido de casamento não pôde ser aceito, pois com ele, conforme observa Mrs. Dalloway, “tudo tinha de ser partilhado; tinha de ser esmiuçado” (Woolf, 2017, p. 27), acreditando ela que isso os destruiria mutuamente. 

Peter é mobilizado por preocupações de outra ordem: “a situação mundial; Wagner, a poesia de Pope e, sempre, o caráter dos outros e, nela, os defeitos da alma” (Woolf, 2017, p. 26). Sua personalidade é considerada por conhecidos como repreensível, pela inconstância que a constitui e pelo fato de nunca se ter conciliado com o mundo, desgostando igualmente “da Índia, do Império, do Exército” (Woolf, 2017, p. 83). É também ele, por controverso que se apresente, profundamente emocional, sendo tocado pela presença da beleza feminina (em episódio de implicações bastante problemáticas se analisado sob luz atual) e pelo amor obscurecido, mas ainda vivente, a amargar e abrilhantar seu retorno. 

Tendo escolhido o caminho contrário aos convencionalismos, negando-se à associação com o que há de mais trivial no mundo, comparece, tanto quanto Mrs. Dalloway, à festa. Lá, ainda que a julgue e não se adapte à frivolidade dos presentes, é arrebatado pela dimensão intangível da presença dessa mesma mulher, a mesma desde a juventude.

“Ele havia retornado, derrotado, fracassado, a suas plagas seguras. Mas quanto a ajudá-lo, refletiram, isso era impossível; havia uma falha em seu caráter. Hugh Whitbread disse que seria possível, claro, mencionar o nome dele a fulano ou sicrano. Com o cenho carregado, lúgubre, com ar empolado, pensou nas cartas que teria de escrever aos chefes de repartições a respeito do “meu velho amigo, Peter Walsh” e coisas assim. Todavia, aquilo não levaria a parte nenhuma — a nada permanente, devido ao caráter dele” (Woolf, 2017, p. 143).

Se está Clarissa Dalloway aliada às convenções, enquanto Peter Walsh delas se tem afastado ao longo da vida, Septimus Warren Smith constitui a suspensão absoluta de quaisquer regras sociais, que se não registram na sua consciência estilhaçada pela experiência do campo de batalha. Durante a Primeira Guerra, perde o jovem o companheiro mais próximo, Evans, e se descobre a isso indiferente; logo, o que inicialmente entende como maturidade e disciplina se revela como distorção e trauma. A linguagem que registra sua consciência é mais expressiva, constituindo-se em níveis de abstração e absurdo que apontam para uma vida desarranjada pelo horror: vê homens tornarem-se cães, mortos emergirem das árvores, mensagens secretas serem inscritas na natureza circundante. Ora descobre o amor universal, ora conclui, com a súbita indiferença com que retorna da guerra, que a perversidade humana é inescapável, sendo apenas nesses termos que o mundo pode fazer sentido. 

O enlouquecimento nega, de dentro da narrativa, a compreensão da existência. A Septimus, não há coerência a ser resgatada, havendo porém uma tentativa de encontrar explicações científicas — “pois, acima de tudo, devemos ser científicos” (Woolf, 2017, p. 98) – para suas alucinações visuais e auditivas. É bastante significativo que esse ainda seja o método a agir na loucura, explicando o que já não pode ser explicado, como demonstra a conclusão da personagem de que “Em termos científicos, a carne havia se derretido e se desprendido do mundo” (Woolf, 2017, p. 98). Ao ex-combatente, fica a distinta impressão da racionalidade que envolvera a vida e a própria guerra; assim, mesmo sem qualquer um dos referentes da vivência perdida, restam estruturas explicativas e vocabulários científicos, remanescentes já inaplicáveis (embora retomados) das ruínas que se tornou o presente. Sem lesões cerebrais ou problemas físicos, conclui a personagem e o narrador, em discurso indireto livre, que “seu cérebro estava perfeito; a falha, portanto, devia estar no mundo — por ele não conseguir mais sentir nada” (Woolf, 2017, p. 122).

Não raro na literatura é o louco — figura que excede a normalidade e a norma — quem transmite mensagens intocadas pelos outros. Parece-me ser esse o caso em Mrs. Dalloway, pois é apenas na figura sem possibilidade de retorno ou reintegração à sociedade de Septimus Warren Smith que se manifesta o insólito, o impossível, relacionados à retomada da vida após a cisão que implodiu — embora nem todos se deem conta dos seus efeitos — a noção europeia de humanidade. Estar à beira da morte, assisti-la e impô-la repetidamente ao outro são experiências que não deixam incólume o homem, nem podem ser reabituadas a chás da tarde e a passeios no parque. 

“No entanto, ao voltarem para casa, ele se mostrou perfeitamente calmo — perfeitamente sensato. E argumentava por que deveriam se matar; dizendo o quão perversas eram as pessoas; como podia vê-las inventando mentiras à medida que cruzavam por eles na rua. Ele sabia tudo o que elas pensavam, disse; sabia de tudo. Ele conhecia o significado do mundo, disse” (Woolf, 2017, p. 96).

A sobreposição entre perspectivas — cada uma delas distintamente individual, mas de alcance coletivo, por articularem experiências humanas como o amor perdido, a necessidade das máscaras sociais, a perda de controle perante um mundo de sofrimento — é fundamental ao romance, servindo à exposição das contradições vertiginosas da sociedade inglesa das primeiras décadas do século XX. Pelo seu alcance temático, é uma obra que tem muito a nos dizer, a nós que vivemos as urgências de uma contemporaneidade cada vez mais performativa, erigida sobre nossas próprias ruínas civilizacionais e humanas, nas quais o genocídio circunda a normalidade que nos é possível. 

Em termos estéticos, é a escrita de Virginia Woolf intensa e tocante, constituindo uma preferência notável por construções que aproximam sua prosa da poesia: sem conseguir esquecer Clarissa, reflete Peter, também em discurso indireto livre, que “ela continuava a tombar repetidamente sobre ele, como alguém adormecido a seu lado num vagão de trem” (Woolf, 2017, p. 108); em dado momento, as ruas são descritas “Como a pulsação de um coração perfeito” em que “a vida latejava cadenciada” (Woolf, 2017, p. 102); ao ir ao encontro da esposa, Richard Dalloway simbolicamente carrega “as flores como uma arma” (Woolf, 2017, p. 156). Já a estrutura dos períodos traduz, muitas vezes, os volteios da linguagem oral e do pensamento, utilizando-se de anáforas que retomam o sujeito no caso de intromissões que o afastam do predicado: “Porém, quando Evans (Rezia, que o vira uma única vez, e o achou “um homem calado”, um ruivo robusto, contido na presença de mulheres), quando Evans foi morto na Itália, pouco antes do armistício (...)” (Woolf, 2017, p. 120). 

Essas estratégias permitem que, ao longo de toda a obra, crie a autora, a cada turno, em meio à cacofonia da cidade, à dispersão existencial, à incompletude da experiência e da identidade, momentos de absoluto enlevamento estético e de irresistível envolvimento emocional. Dentro desse mesmo contexto, seja pela via da sanidade, seja pela irrupção da loucura, atuam suas personagens em favor da urgência pela unidade, pelo encontro: Clarissa o faz a partir das reuniões promovidas durante as festas, quando se sente parte de algo maior do que ela mesma; Peter expõe essa necessidade com seu ressentimento, que se explica pelo desejo não realizado de se integrar à vida matrimonial; Septimus alude a ela diretamente com as insólitas explicações que visam revelar o segredo e o sentido do mundo. Em um dia trivial de junho, eles diagnosticam sem perceber a sociedade em que se inserem, buscando construir, cada um a seu modo, pontes que diminuam a angústia do isolamento e a dispersão subjetiva do sujeito moderno. 

Que eles vivam momentos de infelicidade e de absoluto horror não é o ponto, ou ao menos não o é inteiramente. Ficam também os momentos de enternecimento, quando por um átimo de segundo — em que toca o sino, em que tropeça a criança, em que surge a mulher amada — o mundo faz sentido, em instante que, sem demover a queda consecutiva e o desajuste circundante, ainda constitui a mais nobre experiência humana. 

A quem se abre a ela, amplamente, recomendo sempre e todas as vezes esse romance. 


______
Mrs. Dalloway
Virginia Woolf
Cláudio Alves Marcondes (Trad.)
Penguin/ Companhia, 2017
240p.


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