Paixão, resistência e exílio na novela camiliana

Por Lilian Jacoto
 
 
Se quisermos defender a liberdade, precisamos negar o mundo exterior.
Johann Gottlieb Fichte


Ilda David. Ilustração para Amor de perdição.


A novela, desde sua origem mais remota até os dias de hoje, sempre teve a função e o poder do rapto. Com todas as transformações que sofreu ao migrar do folhetim para o livro, e deste para a televisão, a novela sempre nos arranca da vida, por uma hora do dia que seja, suspende o nosso mundo para viver ou brincar de viver a vida dos outros. Promove, portanto, uma saída forçada para outra realidade, paralela, ao mesmo tempo muito perto e muito longe do real cotidiano.
 
Seu poder de rapto pressupõe alguma violência ou coação: somos enredados nesse mundo paralelo, muitas vezes sem saber por quê. Essa força se explica pelo fato de a ficção ter armas próprias — os recursos de sedução que uma história bem contada esconde na manga.

A matéria essencial do gênero é, naturalmente, as paixões, isto é, sentimentos que incendeiam o sujeito, para o bem e para o mal: o amor, o ódio, a ambição, a fé, o ciúme, o sonho de liberdade. Quando se trata da novela passional romântica — gênero em que Camilo Castelo Branco foi mestre no século XIX —, é o amor que está em causa. E com ou sem happy end, é bom que se saiba que o amor, em Camilo, é sempre de perdição.
 
É difícil raptar, com essas armas, o leitor de hoje, esse que parece estar aprendendo a amar sem se perder. O fato é que o jovem contemporâneo, para ler Amor de perdição, tem de suspender temporariamente seus valores, suas práticas, enfim: sua forma de amar. Isso porque as práticas do amor hoje implicam escolha, experiência, o não comprometimento imediato com o outro. Para quem mal saiu da adolescência, as questões de interes ses pessoais que envolvem um futuro ainda distante e um caminho árduo para o sucesso constituem um chamamento para a realidade que muito pouco espaço reserva à paixão. Relegado à superfície, domado pelas circunstâncias, o sentimento amoroso raramente conhece, como experiência, o incêndio passional.
 
É justamente o avesso dessa cultura o que se mostra na novela camiliana, fruto de uma burguesia ainda muito apegada a dogmas, preconceitos de classe, sangue e tradição. Ali o amor é vivido na sua irracionalidade, como possessão que aliena o sujeito do mundo: incendiado pela paixão, o herói se afasta da família e da classe a que pertence em atitudes que o marginalizam, ao mesmo tempo em que o elevam acima da compreensão humana. Octavio Paz parece explicar bem essa vivência do amor como experiência de isolamento e elevação dos amantes em relação ao resto do mundo: “O amor só se estabelece pelo reconhecimento das diferenças que separam e, de certa forma, marginalizam os amantes na comunidade amorfa. O amor é o encontro de duas solidões, dois seres que subvertem a normalidade social. A poesia é o testemunho do amor marginal”¹. Segundo esse raciocínio, o amor, a poesia e o crime pertencem a um mesmo código de conduta: o amor de Simão, se por um lado o torna maldito, também o sensibiliza para a poesia. De uma forma ou de outra, o herói mantém uma altivez que o singulariza, não se rebaixando nunca à superfície mesquinha do mundo, jamais se deixando, por ele, corromper.

Camilo fala de um sentimento que sempre (ou desde há muito tempo) desafia a ordem das coisas. Suas personagens carregam um sentido de negação e resistência radicais, avessos aos valores de negociação e troca de uma burguesia nascente. Esse sentimento inapelável — pasmem os nossos jovens — nasceu de um simples olhar.
 
Tudo o que daí decorre é o processo de perdição que, quanto mais se agrava, mais eleva espiritualmente os protagonistas. Não há, entre Simão e Teresa, nenhuma experiência de amar, como também nenhuma hesitação. Não há sequer escolha. De famílias inimigas, os enamorados serão, pouco a pouco, banidos da vida.
 
A trama da perdição alimentará, assim, dois incêndios simultâneos: o amor e o ódio, como lados anversos dessa paixão. No plano inferior (o mundano) colocam-se as convenções, as aparências, o nome de família, a conveniência, a riqueza, o casamento arranjado, a identidade familiar e social, a razão. No plano superior (a sublimidade do espírito) reside a negação de tudo o que aprisiona o sujeito apaixonado num sobrenome, nas roupas, no tempo e no espaço limitados da casa familiar e da cidade onde vive. Como gênio romântico, o herói da novela camiliana descreve uma ética da irracionalidade.
 
Incompreendidos pelos que odeiam, Simão e Teresa abandonarão a vida para que esse amor se realize, fora desse mundo pequeno, mas também irredutível.
 
Longe da casa paterna, envolvido num crime passional, ferido e foragido, o herói encontrará abrigo numa outra família, a casa do ferreiro João da Cruz, onde se praticam outros valores, outra linguagem. Aparece então o espaço urbano periférico, lugar em que Camilo já antecipa o realismo que, mais tarde, será tendência dominante na arte. Ali, em estratos mais baixos da sociedade, a falta de dinheiro é compensada com a lição da espontaneidade, da lealdade e solidariedade entre os humildes. Mas ali também Simão desperta um outro amor incendiário: Mariana, a filha do ferreiro, que o acolhe e dele cuida até o último momento, excede o martírio da paixão, uma vez que a vive em silêncio e abnegação. Esse amor também poderia renunciar a tudo — e renuncia. Mariana sabe, entretanto, que não pode vencer uma força de mesma natureza, o amor de Simão por Teresa. Sabe que o amor não pode vencer o amor. Ela é, certamente, a maior heroína dessa história.
 
Ambas as mulheres não compõem, na novela, vértices de um triângulo amoroso. Elas não competem pelo amor de Simão: antes, retiram-se da vida, cada uma a seu modo. Elevados demais para sobreviver aos limites humanos, esses heróis levam ao paroxismo a aventura do exílio, palavra que resume, simbolicamente, a gesta romântica. Para o triste caso de Simão, Teresa e Mariana, esse exílio será, também, vivido em sua radicalidade.
 
Resta também, ao leitor da novela, o sabor do exílio como rapto: deixar-se levar para o incendiário século XIX, como experiência lúdica de perdição.
 
Notas:
1 Octavio Paz, “A dialética da solidão”, in: O labirinto da solidão.


Lilian Jacoto é professora e pesquisadora de Literatura Portuguesa da Universidade de São Paulo (USP).
 
* Este texto aparece como prefácio de uma edição de Amor de perdição publicada pela editora Ática (São Paulo, 2012). 

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