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Pedro Berruguete. São Domingos de Guzman e os albigenses (detalhe) |
Numa série de livros que
transformaram o mundo, não poderíamos deixar de fora o antilivro, a obra que,
ao longo de suas inúmeras edições, decretou quais escritos não deveriam ser
lidos. Refiro-me ao
Index Librorum Prohibitorum (Índice dos Livros
Proibidos), que era uma espécie de calabouço para livros inventado pela Santa
Inquisição. Retomar os nomes de autores cujas obras foram “indexadas” é como
ler um “quem é quem” da filosofia, da ciência e, claro, de outras religiões.
Tudo começou em 1542, quando o
Papa Paulo III fundou a Sagrada Congregação da Inquisição Romana e Universal
para combater a heresia e também os inimigos do Papa e da Igreja. Não foi uma
invenção nova: já existiam inquisições nacionais ou regionais, como, por
exemplo, a Inquisição do Santo Ofício, fundada em 1478 pelos Reis Católicos da
Espanha como um tribunal eclesiástico. O tristemente célebre Tomás de
Torquemada (que chegou a figurar no livro “Os piores males do mundo”)
presidiu-a durante anos, durante os quais condenou centenas de supostos hereges
à morte na fogueira. Sua especialidade era a perseguição de judeus convertidos.
Era um momento de emergência para a Igreja Católica: a Bíblia de Lutero havia
sido publicada poucos anos antes da fundação da Inquisição Romana e, além
disso, a Igreja Anglicana havia se separado de Roma enquanto o protestantismo
se espalhava pela Europa.
Na Europa renascentista, a Igreja
subitamente se deparou com um inimigo formidável: a imprensa de Gutenberg, que
multiplicava livros muito mais rápido do que os copistas nos mosteiros. Já era
ilusório exigir que todos os novos livros fossem aprovados pelos bispos. Era
como hoje: a mídia emergente democratizou a informação e a tornou acessível a
novos atores sociais. Assim, o
Index foi criado em 1559 para conter,
entre outras coisas, a divulgação impressa das ideias protestantes. Assim como
a Inquisição, que tinha suas franquias regionais, listas de livros proibidos já
existiam antes, tanto em nível nacional quanto por bispado. O
Index
sustentou e consolidou esses esforços e se tornou o ponto de referência
central. Foi atualizado durante séculos, até 1962, quando já contava com seis
mil livros em seu catálogo. São seis mil obras que os católicos não devem ler,
incluindo todos os livros de David Hume,
Madame Bovary de Flaubert, a
Enciclopédia
de Diderot, os escritos de Descartes, livros de Locke, Malebranche, Voltaire,
George Sand e até mesmo as obras de Sartre e os escritos feministas de Simone
de Beauvoir. O
Index poderia até mesmo proibir futuras obras de qualquer
autor.
A modernidade sempre chegou um
pouco atrasada para a Igreja Católica. Ainda em 1965 a Santa Sé anunciou que o “
Index
continua moralmente obrigatório”, muito embora reconhecesse que não possuía
mais a “força de um Direito Canônico com a correspondente censura”. Em outras
palavras: a lista continua a existir, mas ninguém será excomungado por ler Hume
ou Sartre. O que ninguém entende até hoje é como as obras de Karl Marx foram
salvas de entrar no
Index, enquanto os escritos inofensivos de Proudhon
e Dumas foram incluídos. Uma investigação relativamente recente dos arquivos da
Inquisição revelou que até mesmo um manual de boas maneiras em alemão, o famoso
Knigge, esteve prestes a ser incluído entre as proibições.
Sempre houve diferentes tipos de
censura. Uma das mais drásticas consiste em queimar livros em público para
exorcizar seu conteúdo. Foi o que o bispo Diego de Landa fez em 1562 em Yucatán
com os códices maias. O bispo ficou surpreso com o quanto os maias lamentavam a
perda e destruiu seu patrimônio histórico com um golpe de pena. Queimar livros
também é uma forma de humilhar o inimigo, como fizeram os soldados britânicos
em 1814, quando incineraram livros da Biblioteca do Congresso em Washington,
durante a chamada Guerra de 1812. Mas são as ditaduras, acima de tudo, que não
toleram a dissidência, seja em ação ou por escrito. Na Praça da Ópera, em
frente à Universidade de Berlim, uma pequena instalação recorda até hoje a
queima de livros promovida pelas hordas nazistas em 1933.
Mas voltemos ao
Index. Um
livro podia ser incluído no catálogo diretamente: bastava que o Papa o
adicionasse durante a revisão final das atualizações periódicas. Normalmente,
porém, as denúncias eram coletadas primeiro, e uma comissão da Inquisição
avaliava cada um dos livros “candidatos” ao
Index. Em outras palavras,
era como um concurso literário, mas com o propósito oposto. Muitas vezes, um
resumo da obra era o suficiente para que os avaliadores decidissem pela sua
proibição. Às vezes, era escrito em uma língua europeia que os membros do júri
não falavam. Se surgisse uma discussão verdadeira do sentido do texto, a
principal questão e critério era a vantagem ou desvantagem que sua disseminação
representava para a Igreja.
Em última análise, o
Index
buscava punir não apenas o autor de um livro proibido, mas também seus
leitores. A ameaça de passar o resto da vida no inferno por ler livros
contrários aos ensinamentos da Igreja não era suficiente; era preciso torná-la
bastante explícita com uma lista. Em relação aos livros científicos, o que a
Igreja não tolerava era a possibilidade de que pudessem esboçar uma visão de
mundo alternativa, uma cosmogonia sem Deus ou sem religião. Por isso,
combateram Copérnico e Kepler, cujas obras foram incluídas, mas eventualmente
removidas, do
Index. No entanto, o caso mais notório foi certamente o de
Galileu Galilei, que foi processado pela Inquisição e passou seus últimos anos
confinado em casa. Galileu foi excomungado, obrigado a renunciar às suas visões
heliocêntricas, e, ainda assim, seu
Diálogo sobre os dois máximos sistemas
do mundo ptolomaico e copernicano, de 1632, foi adicionado ao
Index.
Se ler aqueles livros significava a excomunhão, escrevê-los significava ser
levado ao cadafalso. Foi somente em 1992 que João Paulo II reabilitou Galileu.
A Inquisição podia proibir não
apenas a publicação de um livro, mas também sua posse. Mas, em muitos casos,
apenas parte do livro era repreensível, então os responsáveis pelo
Index
tiveram uma nova ideia: adicionar uma compilação de textos que pudessem ser
alterados por meio de cortes, especificando quais passagens deveriam ser
eliminadas. Essa foi a extensão chamada
Index Expurgatorius, que não
ganhou muita importância, visto que a Inquisição nunca considerou que a
publicação de livros pudesse crescer exponencialmente enquanto o número de
censores aumentaria apenas moderadamente.
Em 1965, a Inquisição foi
transformada na Sagrada Congregação para a Doutrina da Fé. Não está claro quem
foi a última pessoa que eles condenaram à fogueira, mas mudaram a linha dos negócios.
Com o desaparecimento da Inquisição, o
Index foi extinto. Ou talvez não:
a obscura congregação católica conhecida como Opus Dei continuou a enriquecer o
Index com novas entradas. Conseguiram aumentar o catálogo para 60.000
livros, disponíveis em CD-ROM. Ainda em 1985, o Cardeal Joseph Ratzinger
(posteriormente Papa Bento XVI) lembrava a todos que, embora o
Index
tivesse sido dissolvido, ele ainda “mantém sua força moral”.
Em
O nome da rosa, o grande
escritor italiano Umberto Eco também abordou a censura de livros, realizada
pelo bibliotecário da abadia visitada por Guilherme de Baskerville e seu assistente
Adso. William é uma espécie de Sherlock Holmes medieval e é encarregado de
investigar algumas mortes suspeitas. O mosteiro é um bom exemplo de como os
livros eram produzidos na Idade Média, ou seja, transcritos de outras
bibliotecas em uma gráfica administrada pelos próprios monges. Todo o processo
era muito oneroso e, portanto, os livros só podiam ser consultados em
bibliotecas, como a da abadia, construída em forma de labirinto. Guilherme de
Baskerville e Adso discutem no romance o quanto a escrita possibilitou a
disseminação de ideias e o valor das bibliotecas, que representam o
conhecimento acumulado: “Percebia agora que não raro os livros falam de livros,
ou seja, é como se falassem entre si. À luz dessa reflexão, a biblioteca pareceu-me
ainda mais inquietante. Era então o lugar de longo e secular sussurro, de um diálogo
imperceptível entre pergaminho e pergaminho, uma coisa viva, um receptáculo de
forças não domáveis por uma mente humana...”¹
Mas os guardiões da biblioteca
possuem grande poder porque podem esconder os textos. Jorge de Burgos, o
zelador da biblioteca em questão e responsável pelas mortes, esconde em seu
labirinto o segundo volume da
Poética de Aristóteles, dedicado à
comédia. Para Burgos, a religião é um assunto sério e, portanto, esse livro
deve ser suprimido. Adso então pergunta: “‘E então é uma biblioteca não é um
instrumento para divulgar a verdade, mas para retardar sua aparição?’”, e seu
mestre responde: ‘Neste caso é’ […] ‘No decorrer dos séculos não serve para
nada. No arco dos anos e dos dias serve para alguma coisa.’”
No romance de Eco, o censor de
Burgos é um reacionário cego que o medievalista italiano possivelmente modelou
como um
alter ego de Jorge Luis Borges, o célebre escritor argentino que
apoiou o golpe de Estado de 1976 na Argentina e chegou a elogiar o ditador
Augusto Pinochet. Foi o próprio Borges quem teve a ideia de algo como um
labirinto infernal para esconder livros. Em seu conto “A Biblioteca de Babel” (das
Ficções), Borges descreve uma biblioteca impressionante que contém não
apenas todos os livros do passado, mas também todos os livros que é possível
escrever. No entanto, a biblioteca não possui um catálogo, de modo que o leitor
em potencial se perde na biblioteca, incapaz de encontrar qualquer obra que
possa interessá-lo em meio à montanha infinita de livros disponíveis. Ou seja,
pode-se muito bem esconder um livro colocando-o à vista, junto com milhões de
volumes irrelevantes. É curioso que o mesmo acontece em nossos dias na rede
mundial de dados, onde a mentira é mais “interessante” que a realidade e são difundidas
com tal amplitude que enterram a verdade sob um sem-fim de trivialidades e
tergiversações.
Em
O nome da rosa o fogo destrói
a biblioteca, como em uma imolação da própria Inquisição. Na realidade, o arco
dos séculos levou à desaparição do
Index Librorum Prohibitorum, uma
relíquia pueril da Idade Média. E embora a grande verdade sempre abra caminho,
é preciso recordar que não é um processo automático. A censura ainda existe. Nos
tempos modernos se adotaram formas grotescas e também em nossa era da
desinformação.
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