Amores brutos e Os esquecidos
Por Daniel Krauze

Tantos anos depois, é fácil esquecer o impacto que Amores brutos (2000) após vencer o Prêmio da Crítica em Cannes. O filme de estreia de Alejandro González Iñárritu parecia descompassado com o seu entorno, como se uma obra da sua magnitude — em ambição e realização — não pudesse sair de um país que ainda saboreava o mel do modesto Cinema Novo Mexicano. Desde a primeira cena, o longa-metragem sacudia o público como alarme de um despertador. Ao longo de suas mais de duas horas e meia de duração, o filme exibia um ritmo narrativo só fora visto antes no extraordinário O beco dos milagres (1995), de Jorge Fons.
Era um filme que se atrevia a mostrar uma visão única da vida chilanga,¹ tentando abranger todas as classes sociais em um tríptico moderno. Guiada pelo simbolismo eficaz dos cães como reflexos de seus donos, a história de Guillermo Arriaga brincava com o tempo e o espaço, visitando as vidas de Octavio (Gael García), um rapaz de classe média baixa determinado a roubar a namorada do irmão; Valeria (Goya Toledo), uma modelo espanhola que se recuperava de um espetacular acidente de carro no confinamento de seu luxuoso apartamento; e El Chivo (Emilio Echevarria), um matador de aluguel.
Amores brutos vinha tanto de dentro quanto de fora das idiossincrasias mexicanas. Era um filme, por assim dizer, completamente mexicano, mas elaborado com as ferramentas de um escritor e cineasta que olhava além de suas fronteiras. As reviravoltas narrativas derivadas do cinema de Tarantino, a crueza e a câmera portátil do movimento Dogma, a intenção de reinterpretar uma cidade através do celuloide como Wong Kar Wai fez: tudo se conjugava no filme de González Iñárritu. No entanto, nem todas as inspirações eram estrangeiras. Quarenta anos antes, outro cineasta havia decidido retratar a Cidade do México com a mesma ousadia. Também se inspirando em correntes estrangeiras — como o neorrealismo e o surrealismo italianos — Luis Buñuel dirigiu Os esquecidos (1950): provavelmente o melhor e mais comovente filme mexicano.
Os paralelos entre esses dois filmes não são, à primeira vista, tão óbvios. Para começar, o cinema de González Iñárritu, em colaboração com Guillermo Arriaga, carece de um toque de surrealismo. Foi somente em Biutiful que o diretor mexicano começou a usar imagens do gênero, como as figuras que perseguem Uxbal (Javier Bardem) pelo teto. Nenhum dos três filmes de sua trilogia (Amores brutos, 21 gramas e Babel) se utiliza de elementos oníricos, enquanto Os esquecidos apresenta, acima de tudo, uma sequência magnificamente sombria que se passa na mente de Pedro (Alfonso Mejía), o protagonista da história. Por outro lado, o filme de Buñuel mal retrata a classe alta, usando-a apenas como contraponto para ilustrar a miséria das condições vividas pelas crianças de sua história. Em contraste, Amores brutos dedica boa parte de sua trama ao segmento de Valeria e seu namorado, Daniel (Álvaro Guerrero), um empresário que deixa a esposa para viver com a modelo, que sofre um acidente no dia da mudança. Os esquecidos, por sua vez, foca exclusivamente nas periferias, mas isso não o torna menos ambicioso do que o filme de estreia de González Iñárritu. Ambos trabalham em uma tela ampla, permitindo que mais de uma dúzia de personagens chilangos pintem seus próprios retratos.
Tal como foi fotografada por Rodrigo Prieto, a Cidade do México é uma teia emaranhada de avenidas, becos e semáforos. Qualquer pessoa que more nesta cidade notará que González Iñárritu inverte os locais, brincando com a própria geografia como se fosse um quebra-cabeça maleável. Longe de parecer arbitrária, a decisão se mostra eficaz. O acidente ocorre em um bairro que poderia ser La Condesa, mas fica a quarteirões de um distrito comercial que não poderia estar pertencer àquele lugar. Luis (Jorge Salinas) dorme com sua amante em um motel e Bosques, mas depois para em uma loja de ferragens que não tem lugar em Las Lomas. Além disso, exceto por um breve vislumbre de uma rua, o diretor esconde os nomes das avenidas por onde seus personagens andam e resiste ao impulso, comum entre cineastas que optam por usar a Cidade do México como pano de fundo, de incluir cenas de locais facilmente identificáveis (como El Ángel de la Independencia, por exemplo).
Além disso, exceto por algo que Ramiro (Marco Pérez) diz antes de assaltar a farmácia, nenhum diálogo ambienta a ação na capital. González Iñárritu embarca na filmagem de um épico chilango sem nunca nos deixar saber que o faz: acredita na universalidade do conflito entre seus personagens — razão pela qual não precisa enfatizar o lugar onde a ação se passa —, mas sabe que a Cidade do México é um ambiente propício à história que conta (como Paul Julian Smith também aponta na análise que fez do filme). Somente em uma cidade como esta, com suas artérias de asfalto indistinguíveis umas das outras, onde a segregação de classes é virtualmente impossível, seria possível o enredo de Amores brutos. Só nesta cidade é possível aceitar como crível o choque entre um carro dirigido por uma modelo e um Grand Marquis dirigido por um menino pobre, no qual um morador de rua decide sequestrar um cachorro deixado para morrer na calçada.
Rodrigo Prieto vê a luz como alguém que acorda às sete da manhã após uma terrível bebedeira. As cores são claramente distinguíveis, mas todas parecem opacas e terrosas, e a luz — cinza, poluída — é sofrível. Na Cidade do México de González Iñárritu, não há espaço entardeceres brilhantes ou céus calmos. Estamos na cidade da poluição e da chuva, onde, à noite, as ruas só não são mais escuras graças aos faróis vermelhos dos carros parados. O filme nos convida a cair em sua armadilha, a pensar que a fotografia de Prieto não está reinterpretando esteticamente a capital, que apenas a retrata. Mas os filmes subsequentes de González Iñárritu traíram seus recursos estilísticos: aos seus olhos, até o centro de Paris pareceria decadente. No entanto, aqui, o cenário combina com a tonalidade. Em outras palavras: a Cidade do México se encaixa no disfarce utilizado por González Iñárritu. Mas não há dúvidas de que estamos lidando com uma versão estilizada da Cidade do México.

O mesmo pode ser dito do tom e da visão de Buñuel. Além da miséria palpável em que vivem seus personagens, a cidade retratada em Os esquecidos é baseada em uma visão tendenciosa, mas nem por isso menos poderosa. Exceto por aquele prólogo desnecessário, o filme retrata uma cidade de poeira e sujeira: um cruzamento entre uma fazenda gigantesca e um mercado barulhento, onde cinco pessoas dormem em cada quarto, compartilhando espaço com os animais e seus berços de palha. A chegada da modernidade aparece nos vários edifícios em construção. Uma delas está na cena de abertura do crime de El Jaibo (Roberto Cobo), cujo esqueleto de cimento lembra ao espectador o quão distante a cidade está da modernidade.
Quem já viu Amores brutos sabe que a história de Octavio e Susana (Vanessa Bauche) é a melhor das três. A segunda sofre de elementos inverossímeis (por que não chamam um bombeiro para tirar o cachorro das entranhas do apartamento?), e a terceira sofre de uma história de fundo complexa (um guerrilheiro que se torna um vagabundo assassino?). No entanto, a trama de abertura do filme é rápida e compacta: não há uma única cena ou diálogo gratuito, e o conflito entre os personagens principais tem proporções gregas.
E é esta primeira história que guarda semelhanças com Os esquecidos. Em ambas, o protagonista é incapaz de conquistar o afeto materno. Pedro faz de tudo para ser aceito pela mãe (Estela Inda), enquanto em Amores brutos fica claro que o personagem de Adriana Barraza prefere Ramiro (Marco Pérez) a Octavio (curioso também que nenhum dos filmes nomeie seus personagens maternos). A história de Arriaga não diz isso, mas é óbvio que essa ferida primária é a razão pela qual Octavio é obcecado em derrotar o irmão, em ser o homem da casa, em roubar a esposa e, no processo, os dois filhos. Suas mães também são semelhantes: abnegadas, frias, as representações mais fiéis do que Octavio Paz chamou, em O labirinto da solidão, de “la chingada” (a mãe de Pedro é literalmente chingada por El Jaibo).²
E ambas são, claro, mães solteiras. A ausência de figuras paternas é um tema recorrente no filme de estreia de González Iñárritu: Octavio e Ramiro não têm pai; sentimos que Valeria não vê o seu há anos; El Chivo abandonou Maru quando ela tinha dois anos; e, quando morre, Ramiro abandona Pelón e o filho que Susana espera. Da mesma forma, o filme de Buñuel enfatiza o abandono paterno. El Ojitos (Mario Ramírez) espera inutilmente pelo pai numa esquina, onde ele lhe pediu que esperasse.
A violência é claramente personificada em ambas as histórias. Os esquecidos apresenta El Jaibo, um dos maiores vilões da história do cinema, enquanto Amores brutos divide esse papel em dois: um, Ramiro, um ladrão de farmácias, iracundo e irreprimível, um valentão puro-sangue; e o outro, El Jarocho: sempre com um cão raivoso na mão, um homem com tiques muito estranhos e, finalmente, um péssimo perdedor. Os três são um obstáculo constante para Pedro e Octavio, respectivamente. E embora só possamos adivinhar o destino de El Jarocho, é mais provável que todos morrem. El Jaibo e Ramiro têm um final semelhante: são baleados pela polícia. Em seu leito de morte, o personagem interpretado por Roberto Cobo, sem querer, imagina Amores brutos sem saber disso.
O longa de estreia de González Iñárritu é, em última análise, um filme mais otimista do que Os esquecidos. Ambos terminam com vista para um terreno baldio, um lugar que não é nem bucólico nem civilizado. Mas enquanto o filme de Buñuel coloca o ponto final em uma imagem de partir o coração (uma criança morta, esquecida entre os escombros), Amores brutos sugere redenção: El Chivo e seu cachorro, os dois assassinos, desaparecem sobre uma planície cinzenta, como duas fênix errantes. Ao longe, a cidade continua, e eles se dirigem para lá, em busca de uma nova vida, para recuperar o que perderam no passado. O fim de El Chivo é, como o de Octavio e Valéria, uma espécie de começo doloroso. Buñuel não se permite terminar seu filme com elipses. O seu desfecho é desolação, ignomínia, escuridão total. Vale a pena nos perguntarmos qual visão melhor se adequa à cidade que evocam.
Notas da tradução:
1 Chilanga é um termo informal que designa alguém que vive na Cidade do México; apesar da conotação pejorativa que se imprimiu na origem dessa palavra, mais tarde se tornou signo de orgulho para descrever a resiliência dos habitantes desta cidade.
2 Chingada é uma palavra vulgar que, a depender do contexto, pode ser usado para indicar frustração, adjetivar algo como desastroso, ser um insulto como filho da puta etc. É a noção de puta que se enquadra aqui.
* Este texto é a tradução livre de “Amores Perros y Los Olvidados”, publicado aqui, em Letras Libres.
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