Por Pedro Fernandes
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Cena de A invenção de Hugo Cabret. Hugo (Asa Butterfield) e seu pai (Jude Law, em ponta para o filme) |
Quando assisti ao trailer para
A invenção de Hugo Cabret não capturei de imediato o fato de ser este um dos filmes mais cotados ao Oscar de 2012. Mas um nome na direção me intrigou: Martin Scorsese. Raros foram os filmes do cineasta que me decepcionaram; para falar verdade, até agora, nenhum. Alguns do início da carreira são um tanto monótonos, mas o enredo, por exemplo, é sempre muito bem arquitetado.
Bom, quando um criador se faz grande, mesmo sua menor obra ganha potência em relação ao conjunto das suas criações. Essa afirmativa para Scorsese poderia ser estendida como tema central do filme aqui em questão. E, logo, entenderemos o porquê. Por ora, voltemos ao trailer. Parece ser efeito do gênero: antes de guiar o espectador na escolha do filme, não dizer muito (na grande maioria dos casos) sobre o que será exibido. Tenho visto trailers muito bons e o filme é uma decepção só. Nesse caso, o efeito foi justamente o contrário.
A invenção de Hugo Cabret entra para o rol daqueles grandes filmes que se aproveitam de dois materiais: a história e a própria linguagem. Compõe-se, portanto, como um longa que quer ser histórico, no sentido de um filme de época, e é, mas também é puro trabalho com a própria matéria do cinema, metacinema.
O filme é uma adaptação do livro homônimo, de 2007, do autor e ilustrador americano Brian Selznick. Hugo Cabret é filho de um relojoeiro. A morte do pai em um incêndio destina o menino aos cuidados de um tio beberrão que vive por entre as paredes da estação de trens parisiense Gare du Nord com o ofício de acertar os relógios do edifício. Tão logo, também o tio desaparece e Hugo já de posse do ofício do pai passa a cuidar secretamente das atividades do tio.
Vive na estação às custas de pequenos furtos. Nessa atividade paralela, que é não por opção, mas, claro está, por necessidade, também subtrai pequenas peças da loja de brinquedos de um ranzinza senhor que, a certa altura, o pega em ação. O que o espectador verá a partir daqui é o retrato de uma persistência. Primeiro, de um menino que luta pela vida dia a dia; segundo, a persistência pela liberdade, afinal, todos os órfãos pedintes na estação são capturados para o orfanato como numa espécie de limpeza geral do lugar; terceiro, a persistência por dar “vida” a um autômato, figura metálica que tem estrutura interna complexa movimentada por um conjunto de engrenagens e que põe ao ápice o ilusionismo pela capacidade de desempenhar determinadas atividades humanas para as quais são programadas (espécie, portanto, de pré-robô). O autômato aqui é herança do pai e foi adquirido de um museu parisiense.
O concerto dessa máquina terá duas funções extremas para o desenvolvimento do filme: uma, é a descoberta da real identidade do vendedor da loja de brinquedos da qual Hugo furta-lhe objetos para a aquisição de peças na reconstrução do autômato; outra, é a possibilidade de nova vida para o menino. A função do autômato aí é capacidade de escrita e de desenho. Uma vez concertado, o aparelho desenha uma clássica cena de Viagem à lua, do cineasta Georges Méliès. O desenho levará Hugo, agora já amigo da sobrinha do vendedor de brinquedos na busca pela mensagem nele contida.
Parêntese seja feito aqui para destacar o poder do livro e da leitura — que parece ser a história outra costurada por baixo dessa, afinal o próprio filme (disso já sabemos) tem num livro sua origem. Há a sobrinha do vendedor de brinquedos, que sob o regime rígido do tio, consegue transpor o mundo no qual vive pela capacidade de fantasia construída a partir dos livros que lê. Depois, é a visita à majestosa Biblioteca de Paris à cata de saber mais sobre o cinema que levam os dois meninos a descobrirem, primeiro, Georges Méliès e então a mensagem desenhada pelo autômato e, segundo, um contato com um pesquisador apaixonado pela obra do cineasta.
Sabendo que Georges Méliès é o vendedor de brinquedos, o que a partir daqui se desenvolve é a inserção (como por homenagem de Scorsese ao cinema) do reconhecimento do cineasta, como aquele que, de fato, depois da invenção dos irmãos Lumière, foi capaz de potencializar o cinema como um espaço da fantasia e da possibilidade do sonho. O filme de Scorsese logo se assume nos dois principais movimentos que gestou a sétima arte: além de reconhecer a fantasia (Méliès) recupera ainda capacidade do cinema em captar a realidade e transmutá-la, real propósito dos irmãos Lumière.
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Ilustração de Brian Selznick para o seu livro, a partir do qual se apoia o filme de Scorsese |
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