Clarice Lispector, entrevistas
Por Pedro Fernandes
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Clarice Lispector, 1972. Correio da Manhã/ Arquivo Nacional. |
É possível que a popularidade não esteja
entre os desejos mais visíveis de um escritor. Mas, quando alcançada, talvez tenha
um significado tão ou mais importante que o reconhecimento. Se a popularidade
pode significar em algum grau sobrevida, o paraíso para quem a alcança não é um
todo perfeito como talvez se imagina. Há nele algumas porções de inferno. Nesses casos
proliferam os especialistas, os fãs — a pior claque para quem apenas necessita
de bons leitores —, e os que se dedicam ao jogo das atribuições. Na Era do
Viral, quando se juntam esses três tipos, qualquer escritor se perguntaria se
ser conhecido não seria integralmente uma condena.
Certamente o leitor conhece muitos
desses casos de escritores populares no universo da literatura brasileira. A Era
do Viral significou ainda, dizem alguns, a manutenção dos informantes de
ocasião, atravessadores da notícia. Esses são acusados de comprarem facilmente como
verdade a novidade recebida, sem se importar com as fontes, com a maneira como
a notícia é dada e mesmo adulterando o conteúdo a favor dos cliques e do
alcance da matéria. Isso tem seu grau de verdade, mas não é absoluto, se é que
existe tal tipo de verdade. O fato é que a categoria especialista-fã-atravessador
geralmente atua livremente porque encontra nos meios oficiais a reputação da
verdade absoluta e ainda outra legião de uma das três classes; mais que leitores,
sabemos que o metaverso está povoado pela presença desses.
Fiquemos com um caso de
popularidade: o de Clarice Lispector. Ela é já uma reconhecida autora fantasma
da maior parte das citações que circulam pela web com o seu nome, mas
não só: jornais, revistas, livros ajudam, muitas vezes, a piorar tudo. E as falsas
atribuições de autoria são apenas uma parte pequena no lento desenvolvimento desse
frankenstein pós-moderno. A outra Clarice possui rosto próprio — a face caracterizada de Rita Elmôr — o corpo curvilíneo da Miss Julho 1956 na
revista Playboy Alice Denham ou mesmo assina-se como Clarisse Lispector uma pauta que talvez sirva noutra melhor ocasião.
Porque agora é a recente circulação nas redes de alguns materiais considerados inéditos,
perdidos, revelados pela primeira vez etc.
Um desses materiais desfez
definitivamente uma das verdades que permaneceu absoluta durante muito tempo: a
de que Clarice Lispector só fora entrevistada para a televisão uma única vez.
Mesmo a recente grande exposição no Instituto Moreira Salles (IMS) exibida
entre 2021 e 2022, por exemplo, repetiu — é o que consta no catálogo Constelação
Clarice — que a entrevista de 1977 concedida a Júlio Lerner é “o único registro
audiovisual” da escritora. No mesmo do ano evento e da publicação, já era pública a
descrição de um material encontrado por Teresa Montero que abre a edição
revista e ampliada de À procura da própria coisa (Rocco, 2021). A primeira
biógrafa da autora de Laços de família seguiu uma pista encontrada cinco
anos antes no Jornal dos Sports que apresentava a sinopse do programa Os
Mágicos, veiculado na TVE (atual TV Brasil), sob o comando de Araken Távora:
“os participantes eram o diretor teatral Gianni Ratto, o cenógrafo e
carnavalesco Fernando Pamplona e a escritora Clarice Lispector”.
Um périplo entre cinquenta mil
latas de filme do Acervo Audiovisual do Arquivo Nacional (instituição nascida com
acervo da Agência Nacional, onde a própria Clarice iniciou seu ofício como jornalista
nos anos 1940) levou a pesquisadora a um conjunto de fotogramas que resultariam
no vídeo agora conhecido desde quando apresentado no documentário A
descoberta do mundo, de Taciana Oliveira, quem custeou a digitalização
desse material ou o que dele restou. São alguns takes que juntos formam pouco
mais de seis minutos. A entrevista é conduzida em dois cenários na última casa
da escritora, no Edifício Macedo, à Rua Gustavo Sampaio, 88, Apartamento 701,
Leme, Rio de Janeiro.
É certamente o registro mais
intimista de Clarice Lispector que agora conhecemos: a câmera acompanha detidamente
o mobiliário; as artes espalhadas pelas paredes de casa — geralmente artes com referência
ao singular rosto da escritora, como o quadro feito por De Chirico, o retrato feito
por Carlos Scliar, ou um quadro de Djanira; a atividade da escritora tal como
gostava de exercer — com a máquina de escrever ao colo cercada de anotações
diversas em papéis de todos os tamanhos e formas; as obras de Clarice publicadas dentro e fora do Brasil; e mesmo um
sonolento Ulisses, o vira-lata que chegou a ocupar certa feita um espaço no
jornal O Pasquim. O programa de Araken Távora foi pioneiro no trabalho
de aproximação entre escritores e público; e, em parte por isso, várias
vezes premiado. A julgar por outras entrevistas que sobreviveram completas — a
com Nélida Piñon, por exemplo, resulta em treze minutos — Teresa Montero
imagina que o encontro com a autora de A hora da estrela poderia
ter uma duração semelhante.
Apresentada meses antes da célebre
entrevista veiculada no programa Panorama, da Tv Cultura, esses registros
são até agora os primeiros de Clarice Lispector para a televisão. E estes não
são os únicos. Em À procura da própria coisa, Teresa Montero lista
outras três referências capazes de resultar na descoberta de 2021: uma entrevista
para o programa Jornal do Almoço (na atualmente RBS TV, Porto
Alegre) — numa ocasião em que “Clarice ainda se recuperava do acidente
doméstico ocorrido e 1966, quando sofrera queimaduras graves ao adormecer com
um cigarro aceso”; uma entrevista ao programa Olho por Olho (Rio de Janeiro,
1970); e uma entrevista ao jornalista Hélio Polito para o Canal 2
(1968).
Agora, se estas, outras e aquela
entrevista estão/ estavam perdidas, o estado não é o de outro desses diálogos assim
apresentado na revista The New Yorker em 13 de fevereiro de 2023 por
Benjamin Moser. Na tarde de 20 de outubro de 1976, Clarice foi recebida pelos
amigos Affonso Romano de Sant’Anna e Marina Colasanti no Museu da Imagem e do
Som (MIS) para a gravação de um depoimento que contava ainda com a presença do
diretor da instituição João Salgueiro.
A conversa que dura quase duas horas — é
a mais longa e abrangente das muitas concedidas pela escritora — não é a
lost interview. Sempre esteve guardada no MIS e
vários pesquisadores mantiveram contato com as fitas. Do áudio, o público conhecia
apenas alguns fragmentos: um deles apresentado no site do IMS dedicado à
Clarice Lispector. Mas, várias publicações incluíram, se não ipsis literis, a íntegra da versão transcrita.
Em Outros escritos (Rocco, 2005), Teresa Montero, que também transcreve
a referida entrevista, registra que os diálogos gravados no MIS saíram em 1978 em na revista Escritas, depois na
edição canadense Clarice Lispector: Rencontres Brésiliennes (Trois,
1987); a edição dos Cadernos de Literatura Brasileira dedicada à Clarice
e editada pelo IMS, instituição também guardiã de parte dos arquivos da
escritora, registra que a entrevista foi publicada pelo próprio MIS em 1991 no
âmbito da coleção Depoimentos para a Posteridade; e, mais recente, Affonso
Romano de Sant’Anna e Marina Colasanti transcreveram os diálogos em Com
Clarice (Editora Unesp, 2013).
Teresa Montero repara no
desconforto sentido por Clarice Lispector para entrevistas — talvez preferisse
o lado do entrevistador, como se nota nos vários diálogos que manteve para a
revista Manchete (a coluna “Diálogos possíveis com Clarice Lispector”) e
Fatos & Fotos — situação que é reparada no depoimento de outros
mediadores. Antes da conversa no MIS, temia, como conta Affonso Romano de Sant’Anna
que a circunstância se fizesse pomposa, oficial… Com Júlio Lerner meio que
justifica sua objetividade ou reticência como um efeito de seu temperamento de ocasião.
Mas, em todo caso, a ideia de reclusa ou avessa à entrevista é um
mito que se forma em parte pelas atitudes da própria Clarice mas principalmente
pelo que se foi atribuindo a ela. Numa entrevista a Pedro Bloch para a Manchete (veja o fim desta post),
ela chega a especificar uma tendência designada por fatalidade fisionômica:
“Tenho essa cara esquisita que você está vendo. As pessoas adivinham coisas que
não sinto nem sou”.
Teresa Montero em Outros
escritos refere-se a um manuscrito entregue por Clarice ao repórter da
revista Crisis depois de uma entrevista em julho de 1976. No papel se
lê: “Eu gosto de entrevistar pessoas, mas não gosto de dar entrevistas. Em geral,
me fazem muitas perguntas. E eu não sei me explicar. E também não gosto de ser
conhecida”. Explica-se bem a objetividade e a reticência da escritora. E toca
um medo que se desdobra em caminhos fundadores de outras duas questões pertinentes
para o retrato que se concebe de Clarice, especificamente, a popularidade e a questionável
faceta da mulher misteriosa, um traço que vem à conversa registrada no MIS.
O que é curioso na suposta reservada Clarice ou na avessa à entrevistas foi certa ânsia que pareceu dominá-la nos últimos anos de sua vida por esse tipo de exposição. Os três registros centrais referidos neste texto circunscrevem o curto arco temporal do fim de 1976 e inícios do ano seguinte. Embora não soubesse da sua situação terminal — depois, nem os amigos e nem a família disseram-lhe sobre —, a mudança repentina pela exposição possui qualquer coisa de observação antecipada do desfecho trágico que se consuma às vésperas do seu aniversário de 57 anos: submetida a uma cirurgia, detectou-se o avançado e irreversível câncer de ovário que levaria a escritora à morte dias depois.
Entrevistas são um espaço de rica experimentação do eu, ninguém o usa como confissão. Admitir isso, será dizer que a própria autora de Perto do coração selvagem se satisfaria com seus múltiplos no metaverso ou que engenhosamente articulou sua persona como motivo para os pósteros que agora encontram o melhor jeito de se fazerem perto da escritora inventando-se achadores do not lost ou fabricando fatos biográficos a partir de matérias da ficção ou silenciando fontes ou simplesmente executando cambalhotas para disfarçar o confessado gesto de especialista-fã-atravessador? O bom ponto final talvez seja ainda os versos de Carlos Drummond de Andrade que abrem o poema “Visão de Clarice Lispector”: “Clarice, / veio de um mistério, partiu para outro.”
***
Embora a Era do Viral seja a da
imagem e da oralidade, deixamos em anexo duas das muitas entrevistas de Clarice Lispector, talvez pouco conhecidas: a referida no final do texto, a Pedro Bloch (Manchete, 4 de
julho de 1964); e uma conversa desenvolvida entre ela, a repórter Tânia Carvalho e o
jovem escritor Luís Carlos Franco Marinho (Manchete, 24 de agosto de
1974).
Algumas fontes
CADERNOS DE LITERATURA BRASILEIRA. Clarice Lispector, Rio de Janeiro, n. 17 e 18, dezembro 2004, disponível aqui.
FERRAZ, Eucanaã; STIGGER, Veronica (org.). Constelação Clarice. São Paulo: IMS, 2021.
GOTLIB, Nádia Battella Gotlib. Clarice: uma vida que se conta. 7 ed. São Paulo: Edusp, 2013.
MONTERO, Teresa; MANZO, Lícia (org.). Clarice Lispector. Outros escritos. Rio de Janeiro: Rocco, 2005.
MONTERO, Teresa. À procura da própria coisa. Uma biografia de Clarice Lispector. Rio de Janeiro: Rocco, 2021.
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