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Enrique Irazoqui e Pier Paolo Pasolini, bastidores de filmagem de O Evangelho Segundo São Mateus. Foto: Domenico Notarangelo. |
“Sou um descrente com uma fé que
me atormenta.” Esta frase, proferida pelo cineasta e escritor italiano Pier
Paolo Pasolini, resume, como nenhuma outra, sua motivação artística e seu
impulso vital. Ele a proferiu após ser condenado a quatro meses de prisão,
acusado de “vilificar a religião do Estado” por seu curta-metragem
La
ricotta. Nele, um homem pobre, contratado como figurante em um filme sobre
a Paixão de Cristo, procura desesperadamente algo para comer. Faminto, devora
impulsivamente a ricota que dá nome ao filme e morre, por excesso ou destino,
no momento da crucificação. No tribunal, Pasolini se defendeu: não se tratava
de uma zombaria da religião, mas de uma denúncia da hipocrisia de uma sociedade
que se proclama cristã enquanto ignora os marginalizados. “Não me interessa
provocar. Interessa-me mostrar a verdade”, declarou. Absolvido do crime, um ano
depois, em 1964, filmou
O Evangelho Segundo São Mateus, considerado por
muitos, inclusive pelo Vaticano, a melhor representação cinematográfica da vida
de Jesus.
A fé era um tormento para
Pasolini? Ele era realmente ateu? Ou essa crença, repleta de contradições, era
uma tentativa de transformar sua dor em redenção? Talvez essa luta o tenha
transformado em artista, o tenha levado a sonhar com uma revolução comunista e
a levar a história bíblica de Mateus ao cinema, que o
L'Osservatore Romano,
o jornal do Vaticano, chamou de o melhor filme sobre a vida de Jesus. Que
paradoxo que um homem como ele, marginalizado e rebelde, usasse sua arte para
narrar o credo de Jesus e ser celebrado pela Igreja.
Sua vida poderia ser vista como um
mosaico de contradições, mas surge uma questão maior: a própria fé não é a
maior contradição? Acreditar em algo que escapa à razão pode ser o ato mais
revolucionário e contraditório. Para explorar essa ideia, é necessário entender
quem foi Pasolini, seu caráter e a filosofia que o definiu.
Nascido em um lar religioso e
conservador, Pasolini cresceu em meio às tensões de um pai autoritário, Carlo
Alberto, um tenente fascista, e de uma mãe devota, Susanna Colussi, uma
professora com raízes rurais. A morte de seu irmão mais novo, Guido, durante a
Segunda Guerra Mundial, e a descoberta de sua homossexualidade marcaram sua
vida. Essas três forças — seu conflito paterno, o martírio de Guido e sua
identidade sexual — o levaram a buscar significado no sofrimento humano, uma
crença que o protegeria do desespero. Em Pasolini, convergem as grandes
respostas da história à crueldade e à desigualdade do mundo: a arte, a política
e a religião.
Seu primeiro refúgio foi a poesia.
Fugindo da violência de um pai alcoólatra, mudou-se com a mãe para Friuli, sua
terra natal. Na aldeia de Casarsa della Delizia, escreveu
Poesie a Casarsa,
uma coletânea de poemas em friulano, o dialeto que Susanna ensinou aos filhos.
Esse ato foi mais do que literário: ao escolher uma língua considerada “atrasada”
pelos ideais nacionalistas do pai, Pasolini recuperou a voz dos marginalizados
e desafiou o centralismo italiano. Em seus primeiros versos, sente-se a
necessidade de transcender a dor de sua homossexualidade e a sombra de um pai
opressor.
Entre esses poemas, um, o único em
italiano, dedicado ao pai, contém uma profecia trágica: “Pai, se tu também
tivesses ido para a guerra, se tivesses morrido jovem entre os jovens, se eu
não conhecesse teu rosto frio de poder... talvez agora eu pudesse me lembrar de
ti com amor.”
Três anos depois, quando parecia
ter superado sua primeira crise espiritual, Pasolini encontrou uma nova fé no
comunismo, uma suposta promessa de justiça para os oprimidos. Mas o mistério da
tragédia e seus significados ressurgiram: seu irmão Guido, alistado na Brigada
Osoppo, que abraçava ideais católicos e socialistas, foi executado em 1945 por
guerrilheiros comunistas da Brigada Garibaldi, em um ato de fratricídio nascido
de tensões ideológicas. Esse episódio devastou Pasolini, deixando uma ferida
que marcou sua desconfiança em relação ao dogma político e o impulsionou a
buscar outra verdade.
Mesmo assim, ele não abandonou o
comunismo imediatamente. Filiou-se ao Partido Comunista Italiano (PCI), talvez
para honrar o sacrifício de Guido. Mas sua fé política ruiu quando o partido o
expulsou ao descobrir sua homossexualidade. Acusado de “corrupção de menores”
após uma acusação infundada, foi preso, interrogado e libertado, mas o
escândalo o condenou ao ostracismo. O PCI, que se autoproclamava defensor dos
marginalizados, sacrificou-o para preservar sua imagem “moral”. “O PCI falhou
em amar seus filhos desviantes. Tornou-se uma igreja, assim como aquela contra
a qual lutou”, declarou Pasolini. Rejeitado por progressistas e conservadores,
ele deixou o Friuli e, como um exilado em busca de redenção, chegou a Roma.
Na capital, marcada pela derrota,
Pasolini refletiu sobre sua condição: “É necessário educar as novas gerações no
valor da derrota; na humanidade que dela emerge; em construir uma identidade
que permita falhar e recomeçar sem perder a dignidade. Num mundo de vencedores
vulgares, prefiro quem perde. Sou um homem que prefere perder a ganhar por
meios injustos. Minha grave falha, eu sei. Mas tenho a insolência de defender
essa falha como uma virtude.” Estas palavras, escritas num momento de profunda
introspecção, revelam a sua reconciliação com a marginalidade através da arte.
Em 1955, publicou
Ragazzi di
vita, um romance austero sobre a juventude dos subúrbios de Roma, que
canalizava a sua experiência de exílio. Na década de 1960, os seus filmes
tornaram-se uma arma contra a sociedade de consumo, que acusou de encarnar um
novo fascismo burguês, mais insidioso do que o fascismo político. Surpreendeu o
público ao criticar o movimento estudantil de Maio de 1968 em França: “Quando
vocês lutaram com a polícia, eu estava com a polícia. Eles são filhos dos
pobres. Os estudantes são os filhinhos do papai.” Para Pasolini, a verdadeira
revolução não estava nas ruas da elite, mas nas periferias esquecidas.
Sua busca por uma revolução
autêntica o levou a um lugar inesperado: Assis, a cidade de São Francisco, o
santo dos pobres. Convidado para um congresso de intelectuais católicos
progressistas em homenagem ao Papa João XXIII, Pasolini, o comunista homossexual
que se autodenominava ateu, hospedou-se em uma cela monástica. Na escuridão
fria, entre paredes de pedra, encontrou um Evangelho de Mateus na mesa de
cabeceira. “Li-o como quem descobre um texto violento, comovente e de beleza excepcional”,
confessou. Naquela noite, sonhou com um filme completo, com imagens e rostos
nítidos, como se o texto o tivesse possuído.
Assim nasceu
O Evangelho
Segundo São Mateus, uma obra que fundiu as três crenças de Pasolini: a arte,
a política e a religião. Sem alterar uma vírgula do texto bíblico, reproduziu
um Cristo fiel às Escrituras, interpretado por Enrique Irazoqui, um jovem
ativista espanhol. Sua mãe, Susanna personificava a Virgem Maria, revivendo a
dor da morte de Guido como se fosse a de Maria diante da cruz. Os outros
atores, camponeses inexperientes, e as paisagens áridas do sul da Itália,
filmadas em sóbrio preto e branco, evocavam uma autenticidade oposta às
produções hollywoodianas. “Eu não conseguia acrescentar uma palavra àquele
texto. Mas a imagem conseguia interpretá-lo”, explicou. Inspirado pela arte
sacra e pelo cinema russo de Eisenstein, Pasolini criou uma obra de
profundidade catártica, onde a emoção brota da austeridade, não do
sentimentalismo.
Era um filme político? Um filme
devocional? Pasolini nunca esclareceu. “Cristo não era um ideólogo, era um
poeta. Ele apenas falava. E essa palavra mudou o mundo”, afirmou. Para ele,
Cristo era “o único verdadeiro revolucionário, mais que Marx, mais que Lênin,
porque sua revolução é moral e existencial”. Com um respeito quase místico,
Pasolini alcançou o impossível: reconciliar os comunistas que o rejeitaram e a
Igreja que o condenou. Não é por acaso que ele dedicou o filme ao Papa João
XXIII, o primeiro a construir pontes com a URSS por meio de sua encíclica Pacem
in Terris (1963), dirigida “a todos os homens de boa vontade”, sejam eles
crentes, ateus ou comunistas.
Com
O Evangelho Segundo São
Mateus, Pasolini legou uma profunda meditação sobre a fé, não como dogma,
mas como ato revolucionário que abraça as contradições da existência.
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