Chuck e as multidões
Por Ernesto Diezmartínez

“(Sou vasto.../ contenho multidões)”, diz Walt Whitman desafiadoramente, interrompendo-se, na seção final de seu poema imensamente íntimo, épico, cósmico “Canção de mim mesmo” (1855). Essas duas frases, que resumem quase de passagem o argumento central do grande poema americano por excelência, desempenham um papel central em A vida de Chuck (Estados Unidos, 2024), o décimo primeiro longa-metragem do cineasta de fantasia e terror Mike Flanagan, especializado em adaptar a obra de Stephen King para o cinema e a televisão.
De certa forma, essa mesma autodefinição whitmaniana se aplica ao autor de Carrie (1974), pois, embora sua merecida fama se deva aos seus famosos romances de terror — além do já citado Carrie, A hora do vampiro (1977), O iluminado (1980), O cemitério (1983), It: a coisa (1986) —, a realidade é que King escreveu diversas histórias de ficção científica (A longa marcha [1979], O concorrente [1982]), alguns ensaios literários (Dança macabra [1981], Sobre a escrita [2000]), romances policiais — a saga de Bill Hodges —, contos de fantasia (À espera de um milagre [1996]) e algumas outras histórias que escapam a todos esses rótulos.
Refiro-me, especificamente, a romances dramáticos sobre amadurecimento, como O corpo (1982) — adaptado para o cinema como Conta comigo (Reiner, 1986) — e, mais recentemente, a contos reflexivos e existenciais como “A vida de Chuck”, publicado no livro Com sangue (2020), que é, obviamente, a fonte original do filme recém-lançado de Mike Flanagan.
Adaptada pelo próprio Flanagan com uma fidelidade por vezes chocante, esta é a história da vida, contada em três atos que progridem em ordem decrescente, de Charles Krantz, o Chuck do título, bem interpretado por Tom Hiddleston e que conhecemos no início do filme através de uma série de outdoors, anúncios de rádio e televisão, e até mesmo alguns escritos no ar por um pequeno avião (“Obrigado, Chuck!”), nos quais alguém lhe agradece, urbi et orbi, pelos seus 39 anos maravilhosos! Mas de quê? 39 anos de trabalho?
As onipresentes mensagens de agradecimento tornam-se ainda mais estranhas devido ao contexto em que aparecem: há 14 meses, o mundo está se autodestruindo. Há fome na Ásia, a Califórnia se separou do continente, um vulcão entrou em erupção na Alemanha, a comida está se tornando escassa em todos os lugares, as abelhas desapareceram, a internet caiu e, tragédia entre tragédias, ele não abre mais sua página no PornHub!, como um pai desesperado conta, meio brincando, ao problemático professor divorciado Marty Anderson (Chiwetel Ejiofor), que não consegue fazer seus alunos do ensino médio prestarem atenção em Walt Whitman, pois se o mundo está indo para o inferno, o que importa (ou para quê) a poesia?
Após esse primeiro ato sério e apocalíptico, os dois segmentos seguintes revelam quem é Chuck: um contador público de terno azul, sapatos baratos, mas confiáveis, e óculos de armação grossa. Vemo-lo seguir um certo impulso irracional após ouvir um baterista de rua (a percussionista The Pocket Queen) e começar a dançar no meio da rua com outra passante, uma jovem chamada Janice (Annalise Basso), com quem seu namorado acabou de terminar via WhatsApp. Este segundo ato, o mais curto dos três, surge inicialmente como um interlúdio narrativo desconcertante que revelará seu verdadeiro valor quando chegarmos ao primeiro, mas último ato, no qual vemos o órfão Chuck transitar da infância para a adolescência ao lado de seus amorosos avós (a luminosa Mia Sara e o ressurgimento de Mark Hamill); ao mesmo tempo, descobrimos por que o mundo estava desmoronando no início do filme e a razão para sermos tão gratos, de tantas maneiras diferentes, ao mocinho Chuck.
Fica claro que Flanagan não apenas admira Stephen King, mas também o reverencia. Se há uma crítica a este melodrama comovente, reflexivo e existencial, é sua excessiva fidelidade à história original do escritor. A narração em off de Nick Offerman repete frequentemente vários fragmentos da história, linha por linha, fazendo com que, às vezes, em vez de assistir a um filme, pareça que estamos ouvindo um audiolivro. Além disso, as descrições em off são desnecessárias, pois a própria estrutura da história — nesse sentido, bem adaptada por Flanagan em seu papel de editor de seu próprio filme — deixa claro para qualquer espectador o que está vendo e as conexões entre os três atos da vida de Chuck. A maneira como a história do nosso protagonista progride não visa responder às perguntas-chave do poema de Whitman (E o que é a razão? O que é o amor? O que é a vida?), mas sim deixar essas perguntas flutuarem para que saiamos do cinema pensando não em Chuck, mas em nós mesmos, em nossa existência, em nosso universo e em nossas multidões.
De qualquer forma, além dessa devoção excessiva — e às vezes contraproducente — às palavras de Stephen King, a verdade é que A vida de Chuck não é apenas a melhor adaptação de Flanagan da obra do escritor — ele dirigiu anteriormente O jogo de Gerald (2017) e Doutor Sono (2019), bem como a minissérie Missa da meia-noite (2021), que não foi escrita por King, mas é um pastiche de seus temas e personagens —, mas também é o melhor filme que ele fez em sua bem-sucedida, embora bastante irregular, carreira no cinema e na televisão.
Dito isso, esperemos que suas próximas e já anunciadas adaptações do universo de King — uma nova versão de Carrie, em forma de minissérie, e outra na saga A Torre Negra (1982-2012) — estejam em um nível semelhante. Espero também que ele seja corajoso o suficiente, mesmo que ocasionalmente, para trair seu herói. Embora King, previsivelmente, não o agradeça por isso.
* Este texto é a tradução livre de “Chuck y las multitudes”, publicado aqui, em Letras Libres.
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