De Thomas Bernhard

Por Daniel Rodríguez Barron


Thomas Bernhard. Foto: Erika Schmied.

 
Ler Thomas Bernhard é um esforço que só podemos empreender uma vez a cada dois ou três anos. A maioria dos leitores — incluindo os críticos — conjectura que sua maior dificuldade reside em seus traços estilísticos: suas obras se desdobram em longos parágrafos de orações subordinadas que se transformam em páginas inteiras, que por sua vez atingem o tamanho de capítulos e, frequentemente, em livros inteiros. A essa exigência, que nos obriga a mergulhar em um fluxo em que ora nadamos contra a corrente, ora estamos francamente à beira do afogamento, deve-se acrescentar a repetição incessante e estridente de palavras e até frases inteiras, quase sempre ofensivas, sediciosas ou mórbidas.
 
Proponho que aí reside a verdadeira dificuldade com Bernhard: ele nos aniquila, implacável e sem descanso; não podemos segui-lo sem nos envergonharmos de nossa existência. E praticamente nenhuma outra literatura faz isso por nós. A maioria dos textos literários sugere que, no fundo, com todos os nossos erros e infortúnios, somos heróis, pelo menos, de nossas próprias vidas; merecemos estar vivos; merecemos, se não o amor ou o carinho, pelo menos o respeito dos outros. No entanto, Bernhard nos diz que ninguém tem direito a nada, porque não se pode sobreviver sem fazer o mal, porque a vida não nos deve nada e, afinal, ninguém nos pediu para ficar aqui. A porta de saída está sempre aberta — o suicídio é um de seus temas recorrentes — e se não seguimos esse caminho, é por covardia, egoísmo ou desejo de continuar mergulhando no infortúnio, na loucura ou na baixeza.
 
Derrubar árvores, escrito em 1984, narra um jantar com velhos amigos ao qual o narrador — um reflexo do próprio Bernhard — foi forçado a comparecer devido ao suicídio de um amigo em comum. É tudo o que acontece no romance. O restante são seus temas recorrentes: ódio a Viena, ao mundo da arte (essa “corja artística”), especialmente a atores e músicos, mas também aos “eleitos” (o bordão é de Bernhard) grandes mestres; e aqui, ele também volta seu fogo contra a amizade e até mesmo contra o amor — não é certo que esse afeto exista em sua obra — ou, mais simplesmente, contra as relações que estabelecemos com os outros para sobreviver.¹
 
Estilisticamente, Bernhard escreve uma fuga, uma horrenda fuga de Bach; isto é, ele insiste em um punhado de temas e palavras que desenvolvem, enfatizam, dividem ou complementam seus significados por meio de diversas variações. A diferença em relação à fuga musical é que as palavras têm um significado específico, e isso as endurece; em Bach, os sons parecem fluir naturalmente, mesmo sendo uma forma artística, um desenvolvimento artificial de sons; em Bernhard, no entanto, somos constantemente interrompidos pelo que as palavras implicam.
 
A fuga, essa “penumbra em que minha fantasia e meus pensamentos sempre lograram se concentrar melhor nos assuntos em questão e se desenvolver”, essa narração entre o monótono e o abusivo que Bernhard tenta, quebra-se quando se lê: “Pessoas como Joana se enforcam, eu disse no telefone, não se jogam num rio nem de um quarto andar: vão buscar uma corda, dão o nó com toda a destreza e deixam-se cair no laço. Bailarinas, atrizes, elas se enforcam…” Isto é tão aterrador, porque se diz da amiga que acaba de cometer suicídio, que nos desperta do feitiço; saber que há pessoas que “Se não tivesse voltado as costas para os Auersberger no momento decisivo, você teria sido aniquilado por eles”; ou momentos que quase nos obrigam a desviar o olhar, como:
 
“Cultivamos a mais estreita amizade com as pessoas, chegamos mesmo a acreditar que para sempre e, um dia, essas pessoas que estimamos, admiramos e por fim até amamos acima de todas as outras nos decepcionam, e nós as detestamos, as odiamos, não queremos ter mais nada a ver com elas, pensei ali na poltrona de orelhas; e como não queremos persegui-las a vida toda com nosso ódio, como antes fizemos com nossa afeição e nosso amor, muito simplesmente as riscamos da lembrança.”



Strindberg chamou essa diatribe contra um personagem que o leva à aniquilação, seja por suicídio, loucura ou ostracismo social, de “assassinato moral”. Nesse sentido, Bernhard é muito semelhante a Strindberg; porém, no teatro, ocorre um confronto ao vivo com outros personagens; com Bernhard, tudo acontece em sua cabeça e entre suas poltronas de orelhas. O problema com a encenação é que são os personagens que se insultam, e o público pode facilmente fechar os olhos e dizer: o problema não é comigo, é entre eles. Bernhard, por outro lado, sabe que está falando no ouvido, que o leitor está lendo em silêncio e, portanto, parece que está dizendo isso para si mesmo em sua própria consciência, de onde não pode escapar. Só a prosa pode nos dizer essas coisas, chegar tão perto de nós a ponto de sussurrar essas verdades terríveis, esses absurdos dolorosos, e sair ilesa.
 
Talvez pudéssemos comparar Bernhard com Fernando Vallejo; no entanto, as invectivas de Vallejo são claramente dirigidas aos pobres, aos políticos, às mulheres e ao seu círculo familiar íntimo. Por sua vez, Bernhard faz observações como: “A maioria das pessoas não nos interessa [...] quase todo mundo que encontramos não nos interessa, são pessoas que não têm nada a oferecer a não ser a pobreza da massa, a burrice da massa, pessoas que nos entediam sempre e por toda parte, e naturalmente não temos nenhuma simpatia por elas”; ou ainda: 

“Corremos atrás delas por anos a fio, mendigamos seu afeto [...] e quando de repente conquistamos esse afeto, já nem o queremos mais. Fugimos delas, elas nos alcançam, nos arrebatam para si, e nós nos submetemos a elas, a cada um de seus ditames [...] nos entregamos a elas até a extinção ou a ruptura. Nós fugimos, e elas nos alcançam e oprimem. Corremos atrás delas, suplicamos que nos acolham, e elas nos acolhem e matam. Ou as evitamos desde o início e conseguimos seguir evitando-as a vida toda [...] ou caímos em sua armadilha e sufocamos. Ou escapamos delas e as rebaixamos, as caluniamos, espalhamos mentiras a seu respeito [...] a fim de nos salvar, as caluniamos sempre que possível para nos libertar, fugimos delas para salvar nossas vidas e as acusamos por toda parte de nos ter em sua consciência, ou são elas que escapam de nós e nos caluniam e acusam, espalham toda sorte de mentiras a nosso respeito para se salvar”.
 
Bom, não me lembro de Vallejo dizer coisas insuportáveis sobre si mesmo; na realidade, ele é um misantropo tradicional: odeia os outros. Bernhard, pode-se dizer, odeia a espécie e, portanto, a si mesmo também, e ele nos esgota, nos espreme, nos aniquila em um fluxo de consciência mais próximo da realidade do que o de Joyce ou Virginia Woolf, por seu uníssono irritante, neurótico e obsessivo e seu apelo ecumênico. 


______
Derrubar árvores: uma irritação
Thomas Bernhard
Sergio Tellaroli (Trad.)
Todavia, 2022
192 p.


Notas da tradução:
1 Todas as passagens de Derrubar árvores referidas neste texto são da tradução de Sergio Tellaroli (Todavia, 2022).


* Este texto é tradução livre de “Sobre Thomas Bernhard”, publicado aqui, em El Cultural.

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