Memórias de Lázaro, de Adonias Filho

Por Pedro Fernandes

Adonias Filho. Foto: Brigitte Friedrich



Memórias de Lázaro marca a estreia de Adonias Filho no romance. Antes do livro, o autor era conhecido por sua presença na crítica literária, outro ramo da sua obra que se desenvolveu amplamente e nos legou publicações dedicadas à obra de Cornélio Pena, Tasso da Silveira, o romance brasileiro de 30 e outros temas indispensáveis para pensar seu lugar e seu tempo. A vertente crítica e ensaística, aliás, ultrapassa a do romancista — em quantidade de obras, porque em qualidade, o escritor se revela, a julgar por este livro de 1952, primoroso.

Trata-se de um romance que, se os conterrâneos do romancista ou não, nossos contemporâneos, conseguissem o milagre da humildade de reconhecê-lo não cairiam em erros tão grosseiros nas suas produções que só por escuso interesse, excesso de camaradagem e claro desconhecimento de obras como Memórias de Lázaro são designadas excepcionais e aceitas como tal por um público quase sempre alienado aos princípios que governam as determinações vigentes.  

Uma qualidade desse romance se apresenta, no âmbito da narrativa, no desenvolvimento do narrador. Fechado em primeira pessoa, o que muitas vezes é uma posição cômoda porque desobriga o escritor de mobilizar amplos recursos que demonstrem o pleno funcionamento de comportamentos, ações, modos de falar e pensar das outras personagens, e mesmo situações, tal escolha é, no sentido oposto, um problema porque limitadora.

Para contornar essa limitação, Adonias Filho recorre ao uso de vozes alheias às do protagonista. Assim, com Alexandre, o Lázaro dessas memórias, aparecem Jerônimo, Rosália, Roberto e Terto. Ao se beneficiar do chamado romance coral, ergue-se outra dificuldade: a de moldar dicções próprias que não aplainem a variedade discursiva. Ora, quando acessamos a voz de Alexandre não podemos encontrar as vozes dos demais. Não é o que ocorre aqui. Mas, calma: antes disso se agravar como um problema capaz de matar o romance, percebemos que todas essas vozes alheias funcionam como reconto do mesmo narrador.

É Alexandre que organiza as demais vozes, como se um maestro e nesse sentido tem a autonomia de ressaltar alguma distinção mas de ajustá-las a uma unidade vocal que se apresenta harmoniosamente como uma única voz. Quer dizer, o que os demais narradores contam são transcrições, por assim dizer, de Alexandre, responsável por transformar em diálogo indireto a narrativa do outro. Isso gera no romance certo efeito matrioska: um discurso dentro de outro, que é o mesmo nas feições e na forma e não é o mesmo quanto à dimensão. Pode parecer simples, mas essa astúcia narrativa é francamente ignorada por muitos escritores como demonstra a variedade de obras defeituosas em circulação. 

Fora de Alexandre, encontra-se uma dimensão onisciente que se exerce como uma força que, se não administra, contém tudo e todos; ela se apresenta na abertura da narrativa e intercala o seu desenvolvimento. Mas essa dimensão também penetra por entre as sendas das vozes narrativas. Observemos como isso se mostra no início do romance:

“Infinita é a estrada com suas curvas, suas colinas e suas árvores. Não é uma estrada como outra qualquer, com pássaros e ladeada de grama, mas uma linha sinuosa no chão avermelhado e seco. Onde começa, ninguém sabe. Onde termina, ninguém sabe também. Tão íntima quanto os rudes objetos das habitações primitivas, para nós que a conhecemos desde crianças, existe como uma criatura humana. insensível, acolhe-nos com desprezo, sem bondade. Ficássemos cegos e localizaríamos com facilidade todos os cactos que a tornam agressiva, perdêssemos o tato e diríamos sem esforço qual das suas pedras é a mais áspera. Para os outros, os viajantes que por milagre a atravessassem sem conseguir violar os seus segredos, seria apenas uma estrada.”

Essa voz, logo descobrimos, é coletiva, e se assume, no parágrafo seguinte, com a “gente do vale”. E é este que se mostra como o fatalismo que rege todas as vidas, suas condições e seus destinos. Reiteradamente, o vale se recobre da condição personificada, como podemos observar em passagens como: “o vale suava”, “o vale o matara”, “sua fisionomia agora inescrutável como o próprio vale”, ou “o vale ignorava o que se passava”. O estreitamento homem-terra, herança naturalista aperfeiçoada por Euclides da Cunha excepcionalmente com Os sertões, constitui a força responsável por todo brutalismo ou não que rege os gestos em Memórias de Lázaro. A voz coletiva que monologa é a de Alexandre, uma metonímia de todos os desterrados do vale — ou o desterrado que descobre sua consciência de degredado.

Alexandre, aliás, é o desterrado que, no regresso à terra que o repele, se pega à procura não de uma resposta mas de uma descoberta dessa sua condição. É entre os escombros do que esteve mais próximo de uma possibilidade de, se não domar, fixar-se como parte da força indefinida do vale, que ele entra em contato com um passado que parece repetir continuamente um destino ou uma sina da qual ele próprio não consegue escapar. Parte desse passado é revelado por Jerônimo: como Abílio, pai de Alexandre, chegou a vale, procurou se estabelecer e sucumbiu para a loucura que o arrastou para o grande córrego de lodo que atravessa a paisagem desse território inóspito e algures no mapa.

Alexandre, portanto, carrega a triste herança paterna do forasteiro. Por mais que se esforce, o desvinculado com seu lugar estará sempre marcado como o outro e sempre condenado ao papel de bode expiatório. Afetada a ordem (às vezes apenas imaginariamente) é o estrangeiro o responsável. Esse não chega a ser o caso de Abílio no vale, mas o filho, acusado de ser o perigoso lugar porque teria matado o honrado oleiro Canuto para se casar com a filha Rosália e depois o cunhado Roberto, é logo condenado pelos dessa terra sem lei (mas não sem ordem) ao cadafalso, escapando numa errância que perfaz os caminhos do pai, expiatório, talvez, dos habitantes da mata que recebem e salvam Alexandre.



O inóspito Vale do Ouro parece permitir apenas a vida dos seus habitantes e são estes que nem sempre nele se integram, como Alexandre. Os outros dois espaços opostos ao vale, o vilarejo de Coaraci na zona da mata, ou o brejo da zona do cacau, também. O velho Terto, por exemplo, encontrou-se habitante na fronteira da mata e seria o modelo do homem-de-passagem que Alexandre poderia assumir, mas se encontra deveras marcado pelo vale (onipresente em si como Jerônimo), pela cisão trágica e pelas rédeas do fatalismo que o cooptam para o mesmo fim de Abílio. Mais adiante, quando esse forasteiro alcança as terras do velho Natanael se depara com a face oposta e outra de Jerônimo: é o homem integrado à sua terra e regrado por aqueles princípios negados aos do vale: à rudeza, amenidade; à ignorância, o saber; à barbárie, civilização etc. 

Mas, e o Lázaro e essas memórias? O início da narrativa assinala o regresso de Alexandre ao vale. Sem esquecermos da difícil travessia pelo desconhecido até alcançar o brejo e o motivo da errância, razões que deram a Jerônimo a garantia de morte, literal ou simbólica, para os do vale, descobrimos que o seu retorno é uma saída do mundo dos mortos. Essa possibilidade também se justifica na chegada de Alexandre ao brejo: Terto e o restante dos habitantes de Coaraci não confiam nas palavras do forasteiro, admitindo que o vale e suas criaturas inexistem, são fabricações de uma consciência avariada pela travessia pela mata. Bom, isso reafirma a natureza errante do forasteiro: o que não se ajusta ao lugar de pertença e tampouco é ajustado aos possíveis lugares de destino.

As memórias são o meio capaz de compreender esse desajuste, de esclarecer o passado para entender o presente, de se provar que não é um fantasma e viveu o contado mesmo que isso tenha sido apenas elucubração de uma consciência obnubilada como demonstram os de Coaraci; as memórias constituem uma ressurreição de Alexandre, o Lázaro, tantas vezes morto, e são elas, o que lemos, a possibilidade de uma vida outra, com suas brutalidades e algum alento, a via possível de acessar a humanidade, defendendo-a, ainda que, o regresso do nosso protagonista ao vale não demonstre nenhuma garantia disso, nem mesmo a ideia de alguém socorrido de Deus, afinal o mundo habitado por Alexandre, e sua errância em parte é sinônima disso, é o do homem entregue às suas próprias forças, desterrado, submetido ao sofrimento, à sombra irascível do Criador, avivada no romance através da natureza perene que a todo tempo lembra e situa o homem como um proscrito. Com as memórias, esse narrador quer é, no tom intimista com que nos seduz — “Escutem, eu peço”; “Venham mais perto, sempre mais perto, e nada receiem” —, nos confessar isso.

As memórias, por sua vez, não são a resposta definitiva capaz de propor um eixo para o narrador; a memória tampouco o redime. Através dela, Alexandre (e nós, por conseguinte) descobre sua origem e a má herança, os motivos que culminaram no restabelecimento do destino paterno, mas esses são sempre ambíguos devido a interferência de outros pontos de vista acerca dos mesmos acontecimentos. O desfecho trágico do imbróglio amoroso com Rosália, o giro em falso em torno do aventado por Alexandre, fica à mercê do que conta a amada e do que conta o cunhado. As memórias não resolvem e a permanência da dúvida só permite uma saída para o rememorador: a mesma provada por Abílio. Reafirmação dessa força indelével chamada instinto, empurrada pelo vale, que pode ser o Destino e pode também ser Deus. 

Memórias de Lázaro refaz, assim, nossa própria errância desde a perda do paraíso; esse novo mundo, amparado pela força e suor do próprio homem, é feito de danação e por isso a sequência interminável de loucuras, de deformações, de circunstâncias hediondas, de mortes gratuitas. Adonias Filho admite o mundo dos homens como um interregno de luta, errância, dor e desespero, picado aqui e ali por alguma nesga de refrigério, prazer, descanso. Neste vale (ou no brejo), os submetidos às coisas como são e os que dela buscam escapar, mesmo que para isso se deixem arrastar pela correnteza dos fatalismos, no final de tudo, perecem.  Toca, assim, a verdade cruel da qual sempre queremos negar, torcer a cara como se acontecesse ao outro. Que a literatura possa nos recordar disso, pode parecer a alguns desnecessária tortura, mas é, na verdade, das contribuições mais importantes que pode nos oferecer, afinal, somos seres corruptíveis, terríveis, cruéis e facilmente perecíveis. E podemos relutar contra isso, mas, jamais seremos a perfeição que diariamente forjamos e acreditamos viver. 


Comentários

AS MAIS LIDAS DA SEMANA

11 Livros que são quase pornografia

José Saramago, o ano de 1998

Dez poemas e fragmentos de Safo

Seis poemas de Rabindranath Tagore

A criação do mundo segundo os maias

O manuscrito em que Virginia Woolf anuncia o seu suicídio