Flannery O’Connor e a consciência do mal

Por José Homero

Flannery O’Connor. Foto: Arquivo Emory University.


 
Embora a literatura possa se assumir como uma forma de salvação, na maioria das vezes é um agente do engano. Em parte reflexo da condição humana, suas respostas são ambíguas e as soluções não são definitivas. O dilema favorito da religião e de uma certa filosofia herdada do Romantismo (“a doutrina da perfectibilidade da natureza humana”, como a chamou Flannery O’Connor) tem sido elucidar se o homem é inerentemente bom ou mau. Enquanto o Iluminismo apresentava o progresso como intrínseco à razão, que gradualmente levaria à felicidade terrena, as vicissitudes da Revolução Francesa, a suposta encarnação — lida com reverberações cristãs — da trindade intelectual da liberdade, igualdade e fraternidade, terminaram em um reinado de terror que confrontou os filósofos com a constatação do mal. Esse desencanto precoce com os valores seculares recém-entronizados na antiga sede da divindade confirmou que a ideologia não está livre de acidentes e contingências cotidianas.
 
A narrativa de Flannery O’Connor propõe uma leitura semelhante. Nascida em 25 de março de 1925, em Savannah, Geórgia, filha única de um casal de ascendência irlandesa, aos quinze anos perdeu o pai para o lúpus eritematoso, doença fatal que herdou e que causou sua morte em 1964. Passada a perda, decidiu permanecer em Milledgeville, pequena cidade para onde a família se mudou em 1935, onde concluiu seus estudos universitários no Georgia State College for Women (GSCW), hoje Georgia College & State University. A orfandade precoce que sofreu pode ser vista em vários de seus personagens, principalmente nos protagonistas dos romances Sangue sábio (1952) e Os violentos o arrebatam (1960), assim como seu apego à terra natal em vez de emigrar para outros territórios.¹
 
Dotada de um aguçado senso de humor, de uma fina ironia e de um olhar implacável contra o preconceito, a mediocridade e a impostura, ela cultivou a sátira desde os tempos de escola, embora, curiosamente, por meio do desenho. Em The Corinthian, a revista literária de sua escola, ela publicou charges e xilogravuras humorísticas que zombavam tanto do ambiente estudantil quanto dela mesma. A este respeito, há uma caricatura em que, enquanto vários casais jovens dançam, a moça sentada numa cadeira reflete: “Bem, eu sempre posso ser doutora.” (“Oh, well, I can Always be a Ph.D”). Essa faceta, pouco conhecida pelo público, foi difundida em 2012, com a publicação de The Cartoons.
 
Depois de obter seu mestrado em ciências sociais em 1945, ele se matriculou na Universidade de Iowa para estudar jornalismo. Graças ao agora famoso Iowa Writers' Workshop, ela consolidou sua vocação literária e completou uma coleção de contos, graças à qual recebeu o título de Mestre em Belas Artes.
 
Iowa não seria apenas decisiva para sua evolução literária, mas também para seu desenvolvimento espiritual; foi durante esse período, entre janeiro de 1946 e setembro de 1947, que ela começou seu Diário de oração (publicado em inglês em 2013 e uma década depois em português) e, durante o Dia de Ação de Graças de 1946, a escrita de seu primeiro romance, Sangue sábio, no qual as hesitações e dúvidas que atormentam sua protagonista, Hazel Motes, a pastora perturbada que parece ter saído de Assim falou Zaratustra — não por acaso um dos livros que a petulante Mary Elizabeth leva ao criminoso em “O Festival da Azaleia de Partridge” —, parecem refletir o agonismo da própria autora, no qual não apenas luta contra o anjo, como Jacó, mas contra o demônio da literatura.
 
Ainda que possa não pareça óbvio à primeira vista, esta escritora católica, cujo teatro narrativo é o drama moral, mergulhou nos caminhos explorados pelos primeiros modernistas, acrescentando à percepção psicológica própria do estilo indireto — sua técnica favorita — o viés sem precedentes das vicissitudes da experiência religiosa. Seria possível propor uma espécie de esquema ou fábula das histórias, que nos apresentaria uma personagem, muitas vezes uma mulher, solitária, pobre, enfrentando uma vida dura, seja na cidade ou no campo, que, obrigada a moderar seus princípios com costumes, não resiste ao escrutínio e sucumbe ao acaso; uma chance, que, desnecessário dizer, é frequentemente causada pelas personagens intencionalmente ou acidentalmente devido à sua tolice.
 
Uma das ferramentas distintivas e essenciais da ficção moderna é o monólogo. De Moll Flanders a Ulisses, há uma evolução da voz narrativa que, além de nos permitir apresentar uma história a partir da subjetividade do narrador, se torna um testemunho de como a mente funciona. Assim, David Lodge, ao refletir sobre como o ser humano poderia demonstrar o funcionamento do pensamento, entendeu que isso deveria ser feito por meio da literatura e que essas manifestações já estavam escritas. Foi assim que nasceram a consciência e o romance. A este respeito, O’Connor observou que o romance “demonstra algo que não pode ser demonstrado de nenhuma outra forma, exceto em um romance”.
 
Fundamental para as estratégias narrativas de Joyce, autor cuja visão de mundo é influenciada pelo catolicismo, o recurso monológico lhe permitirá mostrar não apenas o processo mental, mas também a transformação emocional da personagem: a revelação, que será fundamental para a compreensão do universo de O'Connor. Por meio da representação do drama interior das personagens, podemos vislumbrar como pensa um fanático, um esquizofrênico ou uma pessoa preconceituosa. A narrativa da sulista matiza o escopo do monólogo interior ao evitar a simulação de taquigrafia através do filtro de um narrador, que marina o fluxo cognitivo com a nuance do estilo indireto. Dessa forma, o fluxo de consciência é purificado de seus elementos impuros — restos e ramificações sintáticas que impõe em seu desejo pela ilusão de verossimilhança — ao mesmo tempo em que é canalizado para o confronto, o grande problema ético do universo de O’Connor: a distância entre nossos ideais, esse corpus de convicções que chamamos de moral, e nossas ações; o abismo ou golfo de sombra que separa a ideologia da realidade, registrando assim uma crítica profunda à hipocrisia e à mediocridade.
 
Se esta narradora trouxe à retórica narrativa um novo uso de ferramentas de focalização para expressar as vacilações psicológicas de suas criaturas e a relatividade com que uma narrativa apresenta os fatos (o narrador pouco confiável), na temática ela deve ser considerada igualmente avançada, pois se encarregou de denunciar o kitsch ético, essa visão edulcorada e, portanto, falsa da vida, na qual tudo se resolve por meio de fórmulas e receitas: oração, bons sentimentos, caridade superficial..., que, na realidade, escondem a frivolidade, o farisaísmo e o vazio espiritual de tais indivíduos. Em “O refugiado de guerra”, por exemplo, os eventos são apresentados a nós através dos olhos de Mrs. Shortley, que se considera boa, embora, para ela, a religião seja meramente “um ato social que oferece uma oportunidade de cantar”. Sua verdadeira natureza é antecipada pela descrição que a caracteriza como um abutre que “plana no ar e desce até pousar na carniça”. Em “Os aleijados entrarão primeiro”, Sheppard, outra personagem cujos pensamentos e percepções conhecemos pelo estilo indireto, só no final entenderá que a vileza emana não dos outros, mas de si mesmo: “A vileza flutuava ao seu redor como um perfume, e tão perto que parecia ter origem em sua própria respiração”.
 
Daí a ênfase na violência e no drama, que muitas vezes envolvem conversão e revelação, como escolhas preferenciais em vez da verdade, da bondade e da beleza: “Em bons romances e dramas, é preciso atravessar situações concretas para chegar à experiência do mistério”, observou O’Connor. E a relevância de seus temas reside no fato de serem uma cura para a ilusão e o entusiasmo. A menos que esse entusiasmo kantiano venha da graça e não da história.
 
Longe de adotar uma atitude cética ou niilista, como foi superficialmente acusada, ela propõe, por meio de um movimento fundacional, curar-se das ilusões e empreender uma busca individual pela verdade, questionando, assim como Bashevis Singer, o conceito de livre-arbítrio. O’Connor demonstrou que a moral, além de carecer de respostas efetivas às questões sobre as razões da existência e do aprimoramento da sociedade, com suas soluções estereotipadas e muitas vezes dogmáticas, independentemente de virem da religião ou do credo iluminista, torna-se um instrumento de desigualdade e sofrimento.
 
Em suas histórias, que muitas vezes terminam tragicamente, a jornada narrativa contrasta com as boas intenções de seus protagonistas, cujos valores são mais incutidos do que autênticos. Essa vida, cuja integridade eles se ufanam, é fictícia porque seus valores não foram desafiados, até que um elemento disruptivo os submete a uma crise na qual se revelam seres ocos, muitas vezes estúpidos, incapazes de elucidar o que é a verdadeira bondade ou o pecado, e até maus em sua ofuscação intelectual.
 
A tragicomédia proposta por esta obra revela o farisaísmo daqueles que se consideram bons, inteligentes e moralmente superiores, o que se apresenta a partir da própria perspectiva das personagens, refletindo seus pensamentos no espelho distorcido, mas crível, do discurso monológico. Paralelamente a esse fluxo, brilha a revelação da graça, o caminho da salvação que eles vislumbram, ainda que fugazmente, como a mãe em “Um homem bom é difícil de encontrar”, que, após murmurar elogios enganosos e vagos sobre a redenção, a bondade da oração e a redenção cristã, experimenta compaixão autêntica pelo Desequilibrado e exclama: “Você é um dos meus filhos! Você é um dos meus filhos!” para depois, como Deus para Adão no famoso afresco de Michelangelo, tocar os seus dedos, embora o desenlace decepcione as expectativas de um gosto educado no melodrama.
 
Crítica das superstições de toda espécie, sejam elas oriundas de uma leitura literal e desalmada da Bíblia ou de valores iluministas e seu não menos danoso catecismo, poder-se-ia dizer que O’Connor previu e satirizou o novo moralismo que subjaz aos preceitos do politicamente correto, como demonstram os episódios atrozes narrados em “Tudo o que sobe deve convergir” e nos já referidos “O Festival da Azaleia de Partridge” e “Os aleijados entrarão primeiro”; histórias cujas personagens se assumem puras, se não moralmente superiores — como o homem maneta com pretensões filosóficas em “A vida que você salva pode ser sua”, que proclama sua inteligência moral — que, ao tentar ensinar uma lição aos outros, acabam confrontados com a dureza de uma realidade que decepciona os postulados éticos da doutrina liberal.
 
No século desde o nascimento de Flannery O’Connor, a nação na qual ela percebeu tão claramente os contrastes entre o Sul e o Norte, entre o fanatismo religioso e a não menos teimosa intransigência do progresso secular, tornou-se o território por excelência de mentalidades incapazes de reflexão, nas quais o confronto inerente ao populismo está à beira de anular o diálogo e o pensamento crítico pelos quais ela tanto defendeu e lutou.
 
Seu centenário nos permite recapitular sua visão cética e irônica, mas ao mesmo tempo plena de espiritualidade; um espelho moral para uma era que substituiu suas antigas crenças por novos absurdos, emergindo de um labirinto de superstições para se refugiar em uma casa de espelhos de parque de diversões.
 
Em uma reviravolta irônica — uma de suas estratégias literárias favoritas — ela mesma foi vítima dessa arrogância intelectual: um artigo publicado na The New Yorker no qual Paul Elie a chamou de racista desencadeou uma proposta de cancelamento que, continuando a ironia, foi rapidamente aceita por uma instituição católica, a Universidade de Loyola; a medida típica de um catolicismo que se esforça para manter as aparências enquanto continua a proteger perversamente seu clero pedófilo.²
 
Tão desconfortável agora quanto era em sua época, a crítica de O’Connor é uma agonia no sentido primordial: uma luta, tanto interna quanto contra os preconceitos que impedem o livre-arbítrio. A obtusidade intelectual refletida nss personagens Rayber (“O barbeiro”), Calhoun e Mary Elizabeth (“O Festival da Azaleia de Partridge”) ou Thomas (“Os confortos do lar”) é semelhante à estreiteza de espírito dos fanáticos religiosos representados por Hazel Motes (Sangue Sábio) ou Francis Mason Tarwater (Os violentos o arrebatam).
 
Na verdade, essa luta de vontades cegas determina os conflitos dos romances. Hoje, a nação distópica do governo de Donald Trump transformou o panorama cruel pintado por essa narradora eminentemente sulista, cujo universo era regionalista, em um afresco realista, cumprindo uma das ironias com que ela costumava responder aos seus críticos: o grotesco é, na verdade, uma forma de realismo. Se quisermos entrar na mente da América fanática, a do cinturão bíblico, mas também a do dogmatismo liberal que prospera nos campi universitários, para entender as sementes da intolerância para com os outros, a obra de Flannery O’Connor continua sendo um grande mural e uma fonte de liberdade. 


Notas da tradução:
1 Os dois romances de Flannery  O’Connor foram publicados no Brasil pela Sétimo Selo em 2024; em 2008, saíram os contos completos pela Cosac Naify; algumas coletâneas, como Um homem bom é difícil de encontrar e outras histórias (Nova Fronteira, 2018) e Tudo o que sobe deve convergir (Sétimo Selo, 2023) têm suprido a ausência da reedição do livro de 2008. As anotações, cartas, textos de conferências e outros materiais estão em dois livros, um deles referido adiante neste texto: Diário de oração e Mistérios e costumes, publicado pela É Realizações em 2023. The Cartoons ainda permanece inédito. Você pode ler mais deste último livro aqui.

2 Trata-se do texto “How Racist was Flannery  O’Connor”, publicado aqui.


* Este texto é a tradução livre de “Flannery O’Connor y la mentalidade del mal”, publicado aqui, em Milenio.
 

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