Anseios e cobranças em A contagem dos sonhos

Por Vinícius de Silva e Souza


Chimamanda Ngozi Adichie. Foto: Jared Soares



Dez anos depois, Chimamanda Ngozi Adichie cumpre, enfim, um retorno à ficção, e não apenas, mas à forma com a qual se fez reconhecida: seus volumosos romances. Sim, pois desde Hibisco roxo, nenhuma obra da autora possui menos de 300 páginas, o que a coloca na posição de romancista de mão cheia, sempre disposta a entregar trabalhos complexos e extremamente articulados, em temática, personagem e enredo-narrativa. 

Depois de Americanah e seu longo passeio pelos anos da vida de Ifemelu (e também de Obinze), A contagem dos sonhos se debruça sobre quatro protagonistas, todas conectadas entre si: Chimaka, uma mulher “bem de vida”, que vive a escrever livros de viagem e tem sua rotina totalmente revirada com a pandemia da covid-19; Zikora, amiga advogada que passa por uma gravidez indesejada e um parto solitário; Omelogor, prima de Chimaka, uma mulher autônoma e também bem sucedida; e por fim, Kadiatou, a empregada de Chimaka, e dona do núcleo mais interessante e robusto da narrativa. 

Digo isso pois as três primeiras mulheres, em certa medida, vivem dilemas similares: todas, na faixa dos 40 anos, lidam com a complicada relação com os homens e com as desilusões e bagagens do amor romântico. A solidão da quarentena é o que desperta as reflexões de Chimaka, com as quais se abre o romance. Zikora, por sua vez, tem em sua gravidez uma reconciliação com a mãe, uma vez que o pai da criança a abandonou; Omelogor vive feliz como a mulher ambiciosa que é, até ouvir de sua tia que ela precisa de marido e/ ou filhos: “não finja que é feliz com a vida que você leva”. 

A questão maternal e matrimonial, então, é o que dita os conflitos dessas mulheres, uma temática senão batida, certamente levemente datada, já que traz à tona certas pressões sociais e externas que mulheres da faixa etária da autora sofrem nos dias de hoje, principalmente as das gerações anteriores; A contagem dos sonhos, no entanto, não coloca essas protagonistas como mulheres que se sobrepõem a essas configurações que designamos como datadas — e por ultrapassadas —, mas sim como reféns, incapazes de se abrirem para novas possibilidades de configurações familiares, de envelhecimento, de sucesso. 

Ora, um exercício que poderia ser polifônico ou multiperspectivo, se considerarmos a quantidade personagens e situações que constituem o romance, se reduz a uma única redoma — diferente do que é feito, por exemplo, no majestoso Garota, mulher, outras, de Bernardine Evaristo, romance em que uma grande variedade de mulheres, também levemente conectadas entre si, expõe dramas mais profundamente contemporâneos e diversos, multifacetados em sua única galáxia. Em A contagem dos sonhos, a face é dividida, mas parece ser uma só.




Exceto quando se trata de Kadiatou.

A saga dessa mulher, fugida da pobreza do Guiné rumo aos Estados Unidos, onde cria, sozinha, sua filha e cuida também de Chimaka, até a surpreendente e hipnotizante sequência de seu estupro e tudo que se desdobra a partir disso, revela um outro lado do livro: uma perspectiva mais palpável à realidade, um retrato muitíssimo bem-feito de uma mulher que, em seu medo aterrorizante de retornar para onde veio (tanto geográfica quanto financeiramente), demonstra uma grande ingenuidade, que reflete a grande precariedade geral dos menos favorecidos. 

E é por enfrentar quem a abusou, mesmo sendo imigrante, mesmo o abusador sendo um homem de muitas posses, que Kadiatou se constrói uma personagem forte e instigante; não por acaso ela a que une todas as personagens do romance e, novamente, não por acaso, é essa a protagonista da imagem com a qual se encerra a narrativa.

A autora, a essa altura, já possui um estilo consagrado e bem delimitado e não foge disso. Sua narração pouquíssima encenada, fortemente pautada em um memorialismo (ou seria rememoração?) ganha força em momentos precisos, onde encontra exatamente a ferida a ser tocada; mas, fora isso, o tom novelesco coloca os temas de Chimamanda sempre muito acima da forma: o que ela narra é sempre muito mais instigante e relevante do que a forma como o faz. 

A escolha pela narração em primeira pessoa para Chimaka e Omelogor enquanto as sessões de Zikora e Kadiatou são narradas na terceira, não parece ter uma razão aparente, para além do fato delas duas serem as mulheres mais “sofridas” e, portanto, não cabe a elas narrarem suas próprias histórias. Ainda mais quando se leva em consideração a história de Kadiatou ter sido baseada em acontecimentos reais.

Em um texto ao final, a própria autora do romance nos confessa que o cerne da história é a relação entre mãe e filha (o que não fica claro ou não é tão bem trabalhado como a autora gostaria), revelando também a influência do luto por sua própria mãe, a quem ela dedica a obra. Muito mais do que sonhos, são os anseios e desejos dessas mulheres que se evidenciam ao longo desta obra que, mesmo inferior a Americanah e Hibisco roxo, (os dois romances que li até então), não deixa de ser um bom retorno desta autora tão ouvida e celebrada.


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A contagem dos sonhos
Chimamanda Ngozi Adichie
Julia Romeu (Trad.)
Companhia das Letras, 2025

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