As solas dos pés de meu avô, de Tiago D. Oliveira


Por Pedro Fernandes



a memória é um tamarindal
em movimento e harmonia
na imagem que não cessa

A literatura é, por vezes, feita de memória. As primeiras formas poéticas mais elaboradas que chegaram até nós dão contas de um trabalho de recriação das figuras inscritas no tempo pela potência de seus feitos permitindo, assim, mantê-las vivas entre as gerações futuras. Esse tratamento não se filia em exclusivo à experiência do vivido. É verdade que o poeta é o principal sujeito da enunciação, mas esta é constituída de uma cooperação entre o ente da palavra e as Musas ― elas, sim, presenciam, sabem tudo e o poeta é um ouvinte dos rumores do que rememoram. Esse fenômeno que explica as bases da tradição clássica constitui toda a atividade criativa com a palavra e suas implicações se verificam em culturas das mais variadas; também os cantos populares no interior do sertão nordestino, por exemplo, remontam o tratamento da poética clássica. Desconsidera-se aqui a ideia do resquício ou do resíduo, que reduziria o popular a uma cultura de sobrevivência e de menor valor, para se considerar duas matrizes culturais cujas origens se determinam por princípios semelhantes.

A poesia de As solas dos pés de meu avô se filia a este princípio fundamental da poética: ora reitera o princípio clássico, feito aqui pela vigência do que Musas sopram ao ouvido do poeta ― mesmo que ele não as invoque, o que poderia atestar sua negação, elas são testemunha do acontecimento fundador deste livro ―, ora é a voz rudimentar dos cantos populares do tempo e do contexto da voz poética. A escrita deste livro é feita, portanto, de memória, que se manifesta em uma dupla urdidura: do que sopram as Musas e do que escolhe o poeta entre as expressões naturalmente cultivadas da terra. Estas feitas dos sentidos captados em múltiplas dimensões de constituição da memória: as cores e as peças de um museu de afetos que constituem a vida e a casa sertaneja; os curtos dizeres da gente simples do sertão, suas crenças e virtudes centradas na palavra tomada quase como um ente divinatório pelo poder sagrado que lhe cinge; nos silêncios; nos cheiros do tempo e das estações; nos saberes aprendidos da observação da lenta passagem das coisas; na terra, que é para o sertanejo, continuidade de seu próprio corpo, a origem, o trabalho e o destino.

As singularidades dos diversos lugares sobre os quais repousa o tato da memória do poeta estarão ao alcance imediato daqueles que habitaram o lar redivivo pela matéria da sua poesia. O mais, dependerá da sensibilidade imaginativa, sempre capazes, muitas vezes, de tocar melhor o mundo do que aqueles o experienciaram. Mas, para uns e outros, há um elemento universal ― o mesmo que comparece na poética clássica e que aqui relemos como o preenchimento com e pela palavra do vazio físico. O tema é o do silenciamento da vida. E o vazio deixado pela ausência da matéria. Mas não é a melancolia, nem o luto o tom da poética. Confrontado com a morte como o desfazimento das fronteiras entre presença e ausência, um sentido que se integra não a uma filosofia sobre morrer e sim ao antigo sentimento vigente entre os sertanejos que sabem a vida enquanto passagem, o poeta trata de reconduzir seu avô pela memória ao círculo de uma perenidade só alcançável pela palavra.

Dividido em oito partes e cada uma reunindo uma variedade muito diversa de poemas construídos de formas na mesma proporção, o que permite a leitura individual de cada uma das passagens, As solas dos pés de meu avô é, mesmo assim, um só poema. Nesse itinerário, o poeta perfaz um movimento que inicia com a notícia sobre a morte do avô, transita pelas paisagens das vivências comuns, meditando sobre situações até o limite de uma ascese do vivido e retornando ao ponto de origem, lugar onde agora repousam poeta e avô, isto é, a própria ordem do poema. A passagem entre um instante e outro principia, sabiamente, por uma imagem muito bem construída: pela réstia de luz suposta por através dos pés descobertos do avô entregues agora a outros campos o poeta estabelece as dimensões de seu périplo: “é pelos pés de meu avô que entendo a vida”; “é pelos pés do morto, numa cama de pau, / que vejo a luz do dia chegar. / o choro, a reza, a morrinha de paz que fica.”

O poeta, notemos, não é Caronte, nem Hércules ou Orfeu. Ao tecer um diálogo em cada uma das oito estações do grande poema com poemas de T. S. Eliot como “A terra desolada”, “Quarta-feira de cinzas” ou “O sermão do fogo”, o poeta se mostra integrado à compreensão sobre a inexorabilidade do tempo, a agente a que todos estão submetidos. Preso à solidão do mundo ― essa que acompanha sua geração, feita de apartados daquela unidade familiar que determinou a vida dos do seu avô ― o poeta trata de tecer com palavras, seu único recurso, o mundo onde todos repousam qual o fotograma que finda o livro: “estamos sentados numa cadeira / colonial de três lugares. o furtivo / tamanho das coisas do mundo, / pele com pele, acaba por nos unir.” Apenas pela palavra é possível se ensaiar salvo da força do tempo, do que nele se esvai, do peso vazio do mundo.

As solas dos pés de meu avô é um poema que revisita a tradição como um elo de irmanação dos homens e de manutenção da memória. Isso se demonstra pela reiteração dos costumes, da cultura, dos afazeres de rotina com a terra e mesmo dos episódios individuais que estabelecem os laços de afeto entre o poeta, o pai e o avô. A ideia de tradição, portanto, não é a viciada pelo herdado ou a transmissão pura e simples de uma para outra geração; nesse sentido, Tiago D. Oliveira parece pactuar com a compreensão do poeta com o qual dialoga, para quem a tradição se constitui pela relação que mantemos com o passado sem predomínio deste ou do presente, mas uma dialética que permite um contínuo movimento de transformação das forças do mundo. É bem verdade que o avô, e por conseguinte o pai, constituem prolongamentos no neto e filho; mas todos são transformados pela maneira que cada um se percebe no outro.

Uma maneira de compreender isso pode ser pela matriz histórica e política. Voltemos à relação entre o homem e a terra. A geração dos avós sertanejos tinha os pés feito raízes; a terra era, com dores e dissabores, seu centro no mundo. Os filhos, nem tanto, são gente severina, para retomar o tema da migração que forneceu matéria para tantas obras da nossa literatura e um dos poemas mais vivos sobre o Brasil profundo. Os netos tampouco. Para cada uma das gerações, são contextos diferentes, embora se mantenha a negação, que é a ausência do Estado numa repetição sempiterna que remonta aos idos de nossa colonização: o princípio universal da subsistência. O neto se ausenta dos funerais do avô, que se realiza com a mesma simples circunstância desses eventos no sertão antigo; o neto imigrante recebe a notícia da morte pelas mesmas linhas que invisíveis atravessam o mesmo mar percorrido pelos aventureiros que na expansão dos mundos deram com essas terras desconhecidas. Tudo parece se repetir e se repete, mas nunca é o mesmo apenas. Tanto que, a este neto é dada a faculdade de realizar com palavras o que se perderia no tempo se fosse ainda sua formação a mesma do avô: voltada e agarrada para terra.

Este parece ser um ofício singular da literatura: fazer perdurar no tempo um instante a mais que nossa pequena condição de existir nós e os que não alcançam o pleno domínio da palavra. Há no gesto do poeta de As solas dos pés do meu avô outra compreensão sobre sua maneira de estar no mundo, porque a consciência do que designamos como pleno domínio da palavra não significa o versado na leitura e escrita, significa ser dotado da ética segundo a qual essas competências são capazes de reabitar o mundo. Esse é um papel político, afinal o mundo-outro que se faz pela palavra modifica silenciosamente o mundo vigente das violências de uns poucos sobre muitos.

a memória é um archote
a insistir enquanto a noite
cresce nas pálpebras sobre
cavalos em disparada selvagem

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