Nada mais do que isto — os aprovisionamentos literários de Hélvio Tamoio

Por Lucas Paolillo
 
Enfim, como outros tantos rincões, em Tamoio, os trabalhadores, os moradores, as criaturas em estátuas e memórias foram cobertas pelo tapete verde na imensidão de canaviais que absorvem o interior paulista. Tudo de uma maneira rápida e nada silenciosa. A usina Tamoio foi engolida pela ventania atroz de um tipo de desenvolvimento da produção da vida que não leva em conta a criatura humana. Quem sabe, como o engenho Fortaleza e outros sítios adquiridos por Morganti para a formação da agroindústria. No entanto, nessa terra de passagem nos dispomos a admitir a promessa de outros renascimentos. A busca de outras terras onde pudéssemos expor todas as nossas potências. Não perdendo, nem nos momentos de maiores arrasamentos, a miragem do porvir.
 
— Hélvio Tamoio, “Algumas considerações afinam” (2008)

Foto: Silvana Simão


 
 
Nos dias que correm, Hélvio Tamoio continua a buscar a produção crítica consciente. Continua também, junto a outros fazimentos e ações culturais, a escrever livros ligeiros para serem saboreados lentamente. Passadas quase duas décadas da data de publicação do primeiro deles, podemos entrever naquele uma possível convergência histórica, repleta de significados. Quando Hélvio Mori de Jesus, nome de batismo, tomou a decisão um tanto intempestiva de revisitar a sua crise de origem, a saber, a formação e decadência da usina Tamoio — um processo que os jornais vieram a agregar ao próprio nome de Hélvio, rebatizando-o com essa cicatriz por causa do seu papel de liderança nas greves canavieiras —, a coincidência de tempos não poderia ser mais adequada.
 
De fato, as suas considerações algumas afinaram com outra crise no ar: a crise do subprime, crise (se é que ainda podemos falar nesses termos) definitiva do nosso tempo e que, como as outras, não leva em conta a criatura humana. Distraidamente ou não, pouco importa, o pequeno O nó da cana também dá garapa (2008) veio ao mundo como quem fez um acerto de contas com o próprio passado. No entanto, ao descrever como uma região inteira pode sumir do mapa do dia para a noite, acertou em cheio no próprio presente: findo o ciclo de gestor da Funarte, Hélvio, um anti-herói que poderia ter saído do cinema marginal — outra identidade atribuída a ele por matéria de jornal, mas que cai bem como identificação ampla do roteiro da vida que ele escreve —, mal poderia imaginar que dali para frente as crises se tornariam, no mundo todo, regra. Sendo tantas, até o Império, vejam só, fez a sua própria versão de uma frase comum às faixas nas greves em Tamoio, nos anos oitenta: “queremos voltar a trabalhar”. Elas por elas, a América do Norte parece ter arrumado um Grupo Silva Gordo — disfarçado de Morganti? —para chamar de seu e pegar no volante das falências nos novos ventos: o jogo baixo dos ajustes, independente dos caminhos, anuncia mais ruínas que virão frente aos novos padrões produtivo-tecnológicos do capitalismo.
 
E as convergências não param por aí. Mas, antes de voltarmos a elas, um parêntesis explicativo: se o anunciar dos novos padrões produtivos marcou o fim da usina, ele também acertou em cheio no próprio Hélvio: cabra marcado para ser cortador de cana, na rabeira das transformações de época, tornou-se um agitador de várias frentes da cultura. Efeitos mistos da flexibilização do capital? Acredito que sim, embora o excepcional no personagem não pudesse surgir sem muita luta e mão estendida. Seja como for, retomando nossa linha do tempo, anos depois de exposta a crise do subprime, o terremoto levaria tanto ao primeiro Trump quanto ao golpe parlamentar de Michel Temer, com o Supremo e com tudo.¹
 
Na rolança desses dados, Hélvio lançou o seu segundo volume impresso: Quem faz arte deus castiga? (2016). No interior dele, nem tanto as ruínas da usina e mais os souvenires de seus aprovisionamentos culturais recentes — muitos deles reunidos no portal de textos online do Paracatuzum, o seu fluido agrupamento-miragem² —, dispostos ali como amuletos-práxis de suas passagens e realizações. Estamos, portanto, nos tempos de colheita de quando aglutinou jovens em torno de seu slogan-tríade “arte.cultura.pensamento”.
 
No mérito da questão, a ação cultural ampla — e um frio na espinha, sempre ele, em muito sintonizado com os capítulos que apareceriam nos anos seguintes, ciente de que dos anos oitenta para depois muita água passou e a cultura, como dito numa pichação, não estava muito bem. “Em que porta iremos bater? Até quando nos abundaremos em balcões, agrados e editais governamentais?”, diz Quem faz arte deus castiga. Pouco tempo depois, ironia do destino, todo o setor de políticas culturais seria levado ao olho do furacão: “queremos nosso ministério de volta!”, a palavra de ordem lançada pelos remanescentes das franjas do show Opinião, dirigentes das novas gerações de não-agronejo. Na linha do “quanto mais eu rezo mais fantasma me aparece”, Temer parecia reverberar sardonicamente as sentenças laboriosas de Dona Nica, a mãe, dirigidas no passado ao jovem Hélvio: “E aí mãe, castiga mesmo? De que arte a senhora estava falando? Que deus castigador é este?”.
 
Como se essas duas convergências não bastassem, haveria uma última, porém de proporções invertidas: passada aquela fase, o processo de fazimento dos novos registros instantâneos de Hélvio fermentava como parte de uma longa caminhada que visava atravessar o país e algumas localidades da América Latina. Tudo certo até que uma pandemia letal se esparramou por todo o planeta. Confrontado com a nova condição, o terceiro projeto escrito, Pra onde for mais longe daqui (s. d.), ficou em compasso de espera. No ápice da itinerância que o livro ecoaria, o mascate de ideias se viu obrigado a dar um cavalo de pau do oitenta ao oito: o tempo era de recolhimento e sobrevivência.
 
Acomodação jamais. Hélvio deixou o projeto de lado e, no lugar, fez mais de trezentas lives para quem quisesse ver, em espírito de cineclube. O roteiro traçado para atravessar o lamaçal investiu esforços no ajuntamento: as rodas de conversa deveriam manter a chama acesa. Com isso, senha experiente, anteviu aglutinações futuras para a manutenção da existência. Finda a travessia, do final da pandemia aos nossos dias, o terceiro volume, porém, ficou pelas gavetas.
 
Mesmo assim, alguns sortudos puderam acessar parte das ideias projetadas a partir de arremedos: modelos-piloto artesanais, feitos sob encomenda, apareceram aqui e acolá sob os nomes de BruacaZine (2021), confeccionado em papelão, e AlmaZine (2022), cartões de correspondência. Embora não definitivos, os dois deram alguma notícia dos anos de andança. Neles, se falou mais alto do que os outros em nome dos fanzines, essa forma miúda e irrequieta íntima aos escritos do nosso autor desde os tempos espontâneo, digamos, de geração mimeógrafo, na usina de cana-de-açúcar.
 
Por falar nisso, é preciso que se diga, as formas miúdas e irrequietas formam de diferentes modos o ingrediente principal por trás da montagem dos três projetos de livro mencionados. Tomadas no interior de cada unidade separadamente, são elas que saltam das sacolas do nosso mascate de ideias como pequenos artigos exóticos — algo entre um bazar de formas e uma versão cigana, reduzida, da obra das Passagens (1982) de Walter Benjamin. Munido deles, e ciente das estaturas, Hélvio os acopla ao que chama de “livrozines” — nem um nem outro, mas livro que te quero zine e zine que te quero livro.
 
Junto a alguma farra tática bem-humorada, a compreensão desses livrozines tem uma chave: o arranjo de montagens. Disposta nas páginas aceleradas, são indícios sucessivos e interpenetrados: alas são abertas por um relato do passado, em seguida aparece um ditado, depois uma citação de livro, surgem então roteiros de viagem, causos captados em convivência, canções populares, pequenos poemas, aparece de tudo. Tudo sem explicação, entremeado por colagens travessas que valorizam o múltiplo no imediato: caricaturas, fotografias, depoimentos de terceiros e, em certos casos, até a colagem de objetos recolhidos por onde passou. Desse conjunto, poucos elementos fogem à estatura das miudezas como fogem os desenhos a lápis — coloridíssimos e de alto contraste, algo entre o Brasil profundo e a desproporção new wave — e, é claro, o tal do “estilo empesteado” do autor com as suas “palavras infestadas”: em certos momentos glauberiano e estrambólico, noutros sutil e desconfiado, sua assinatura investe nas meditações de dentro, sem, com isso, deixar de surpreender, ser serelepe.
 
Por fim, um elemento surge como a cola própria ao arremedo pouco casual: o design gráfico. Maestro dos outros, é ele quem transforma a sacola do mascate de ideias em livrozine, reverberando a visualidade intrínseca ao personagem. Essa é a cama do ziriguidum que zonzeia, o método de amarração dos cacarecos do mascate. Daí certa impressão de estranhamento: em partes, o conjunto da ópera complica e faz subestimar o conteúdo; em partes, ele não poderia se adaptar melhor à vocação agregadora à mostra. Lembrando outra vez que forma é conteúdo social sedimentado, “amarrar” surge ali como palavra precisa.
 
Arrojado, Hélvio não se contenta com o batismo da forma livrozine, esse princípio ordenador das caminhadas. O gênero dos seus volumes também ganhou um nome: roteiros nas passadas do mundo, seriam bordados a partir de exercícios de “amarramentos”, uma modalidade que se quer recusa à imaginação de fundo falso pois ancorada na provisão de vidas: “A amarrativa é uma natureza de prosa que não se põe ensaios, teses ou monografias. São trocas vivas e diretas ampliadas pela volúpia de viabilizar rodas em praças, escolas, sindicatos, cineclubes e outros cantos onde possamos prosear, filmar, dançar, encenar, escrever, cantar e outros mais”, sugere. É por isso que a compreensão dos seus livrozines afirma sentido: de dentro para fora ou de fora para dentro, coloca para dançar as lembranças de um catálogo de práticas através de miudezas igualmente irrequietas.
 
 
Aos que não o conhecem, os poucos parágrafos acima dão um pouco do tom versátil do personagem que assinou os livros. Francisco Alves — não o cantor, porém o professor-engenheiro do interior paulista — arrematou a questão ao dilapidar o óbvio ululante: “É muito difícil falar sobre o Hélvio, ou sobre o Tamoio, como ele é também conhecido. A dificuldade reside na extrema facilidade com que ele transita do campo para a cidade, da agricultura para a indústria e os serviços; da produção material de bens e serviços para a produção artística e cultural, e nesta, das manifestações folclóricas às contemporâneas, da Catira ao Hip Hop”. Ainda que o depoimento fique rente à linguagem dos ofícios, voltado a práticas de um mundo que é pretérito à centralidade negativa do trabalho, ele reforça as linhas gerais do nosso argumento.
 
De um modo como de outro, na oscilação entre o campo e a cidade, Hélvio continua a ser, solamente, cultura e política. Entre as duas palavras, toda uma condição dificílima de explicar que não cabe a um texto como este, voltado apenas aos escritos. Por enquanto, basta dizer, seguindo os trilhos de uma matéria de jornal, que a vida dele não só daria um filme como deu: O nó da cana também dá garapa (2018)³ é um curta-metragem que registra o retorno do anti-herói às ruínas da velha usina. Dirigido por Marco Escrivão, ele mostra, descontraidamente, o trilho dessa versatilidade junto às mudanças de época.
 
Em sobrevoo incompleto para abreviar, podemos dizer que Hélvio vestiu em suas profissões macunaímicamente quase todas as peles: formado em Ciências Sociais com especialização em Engenharia Agrícola, foi varredor de barbearia, carregador de marmita dos canavieiros, virador de saco de açúcar, cobrador de ônibus, balconista, assessor de imprensa, redator de rádio, radialista, colunista, ator, produtor de filmes, professor de filosofia, oficineiro e, por um bom tempo, desempenhou diversas atividades de gestão cultural. Dentre elas, tantas que enxugaremos, temos sua gestão como diretor do Centro de Programas Integrados da Funarte e seu papel como coordenador do Centro de Referência da Dança.
 
Ao que nos interessa, enredado nos contrastes de tanta dualidade (sem dualismo?), o mascate sugere, a partir de si mesmo, passagens contínuas — das quais é um legítimo representante — entre os resquícios ativos da tradição militante e da agitação cultural. Mas sempre, como é de seu feitio, com uma bela de uma pulga atrás da orelha, desconfiado tanto de uma como de outra. Talvez essa vocação para pôr em dúvida — que leva a imaginação a lembrar da astúcia dos matutos — justifique a preferência pelo ensino de filosofia nos anos de professor. Sem ficarmos com a língua de fora, basta dizer que, nos dias que correm, Hélvio segue percorrendo os interiores do país, incentivando a formação de cineclubes através de oficinas e palestras.
 
Entre tanta peripécia, a comprida, ainda que compacta, relação de Hélvio com os livros começou para valer com uma história de amor. Adolescente, foi frequentador da Biblioteca Municipal de Araraquara, fundada por Mário de Andrade. Não ia ali tanto pelos livros, mas sim por um rebuliço despertado no peito quando se aproximava da bibliotecária, décadas mais velha. Apaixonado por aquela figura exótica ao padrão dos canaviais, o mundo pareceu se expandir. Das mãos dela, recebeu um dos livros derradeiros: Cem anos de solidão (1967), de Gabriel García Márquez — muito explicativo, aliás, de traços da personalidade dele.
 
Vencida a indisciplina inicial, encontrou no realismo fantástico do escritor colombiano parte do sentido da própria vida: de repente, as vivências todas na usina, com os pés no chão, passaram a levitar bem lastreadas, ganhando em estatuto de poesia e densidade imaginativa, vida aberta e possibilidade – e quem diria que aquele mesmo rapaz viria a fundar, no futuro, algumas livrarias? Ao entrar no curso de Ciências Sociais na Unesp de Araraquara, a bússola foi Os parceiros do Rio Bonito (1964), de Antonio Candido. Livro que não só deu legitimidade à dura realidade que conhecia bem, mas conferiu um repertório adensado às suas lutas, municiando-o para encarar conscientemente os desafios próprios às relações agrárias de um país pós-colonial que, digamos, castiga com monocultura.
 
Para além deles, logicamente, muitos e muitos outros livros de cabeceira – vale menção também a relação precoce, no teatro, mantida com Morte e vida severina (1956), de João Cabral de Melo Neto. Entretanto, se ficarmos atentos apenas aos dois primeiros, teremos o suficiente para uma boa compreensão inicial da régua e do compasso basilares do nosso anti-herói. Nesse quadro, demarcando a oscilação do campo à cidade, o único ajuste passa pelos filtros de época: não seria justo deixar de mencionar as marcas da cultura-sacanagem underground própria à virada dos anos setenta aos oitenta, o período-chave que, na pele e nas retinas, liquidifica em Hélvio as cenas calientes de Helena Ramos, Plínio Marcos, a poesia marginal e a moçada do Lira Paulistana.
 
Tudo isso, no entanto, aponta aos facões em punho na jornada do autor, abrindo mato. Se nos ativermos ao ambiente constrito da usina, ao involuntário, ganha visibilidade outra combinação marcante de culturas. Nesse sentido, o primeiro livrozine é significativo. Quem se aventurar a se perder pelas veredas de O nó da cana também da garapa (2008) encontrará, desde a capa, as ruínas de uma estátua de Apolo, neoclássica, devorada pela vegetação em meio ao canavial sem gente — spoiler: ao atravessarmos a seção “apólogo”, constatamos que a estátua viria a ser profanada, aliás de modo hilário, em condições que fazem cócegas a quem conhece o caso do Cavaleiro de Bronze, de São Petesburgo.
 
Contraintuitivamente, a ambientação ali não era só austeridade. Junto ao Apolo, outros monumentos peculiares coloriram a paisagem daquela propriedade rural de trabalho pesado, perdida na estrada: a estátua austera e quase fisiculturista de um indígena tamoio, cuja relação entre forma e conteúdo faz lembrar José de Alencar; o modelo hollywoodiano da casa-grande, um desejo de réplica exata da mansão de E vento levou (1939); o campo de futebol, moderno e faraônico, inspirado em arquitetura fascista; e uma igreja algo nababesca, dedicada a S. Pedro, com entalhes decididos a confundir a imagem de dois pedros: a do santo com a do falecido patriarca Pedro Morganti. Tudo indícios dos caprichos daquela família de donos, os Morganti, que fazem lembrá-los como um pastiche bisonho do padrão Habsburgo de perfumar majestade. Tudo ali, no canavial. Cultivada por décadas, aquela grandiosidade austríaca em miniatura apontou a um futuro completamente paralelo ao destino que a modernização sem o moderno reservaria, de fato, à usina: a venda fria daquele espaço com focos dilatadores de pupilas ao Grupo Silva Gordo, o ponto final da comunidade que chegou a ter doze mil moradores multiétnicos, entre emigrados e migrantes das mais diversas localidades.
 
Aterrissando de volta ao livro, é na descrição desse processo que o círculo se fecha: se, na capa, admiramos as ruínas de Apolo, logo em seguida somos inundados por uma profusão de manchetes de jornal, inversamente proporcionais aos ideais de beleza harmonizados entre os de ordem no trabalho derivado da cana. Ali, a retina se ocupa de confusões, greves e expectativas de fechamento. Mudança de ângulos relâmpago que dá a ver as tormentas, em testemunho, do autor.
 
Mantendo em mente essa estranha educação pelo contraste experimentada na usina, o desfile de formas miúdas e irrequietas sugere uma afinidade estranha — talvez irônica? — quando visto junto ao apelo de grandiosidade desmoronado do assunto: tudo aquilo, no geral, foi reduzido a causos e amuletos. Sendo assim, o ponto de encontro entre a experiência do livro e a dos canaviais não se encontra apenas na proposta de representação, mas, sobretudo, na propensão, em suas escalas, aos estímulos variados. Dito isso, cada uma daquelas formas guarda, no livro, o seu próprio sentido enquanto traço constitutivo. De olho, por exemplo, nos desenhos feitos com pincel digital, desenhados em softwares de edição que em algum momento chegaram a ser top de linha, vemos uma conversa interessante, involuntária, sobre o sentido demolidor do progresso.
 
Frente aos novos padrões produtivos, a novidade de então foi superada como foram os velhos monumentos. Porém, entre tantas sugestões, o leitor persistente encontrará naquele emaranhado de textos e imagens certa regularidade: o ritmo das sucessões desde logo mostra que um texto se assume como âncora, algo como um frame de retorno no efeito Kuleshov. Tudo fatiado por expressões outras como citações, poemas e fotos recolhidas de fontes variadas – elementos propositivos como pausa e convite à meditação —, temos fragmentos argumentativos lineares sobre a formação e decadência da usina.
 
Quando eles terminam lá para a metade do livro, a ancoragem passa aos textos curtos — como o causo da fiscalização de Morganti contra os cigarros de palha dos canavieiros –, chega até os depoimentos e termina nos trechos salientes, em destaque para as fotos. Há, portanto, o tal do ziriguidum, porém sob o ritmo de uma diminuição paulatina do volume da prosa condutora. Junto e misturado, o precioso são as alternâncias: imediatas e repentinas, elas nos convocam a experimentar posturas analíticas, meditativas e prosaicas a depender daquilo que nos saúda.
 
Feito o ajuste de contas, o volume seguinte, Quem faz arte deus castiga? (2016), faz a passagem do determinado para a determinação em mãos, irradiando um ciclo de fazimentos completos agora vertidos em providências na busca por nascentes: “Se antes o desvendamento se pautava pela exploração da caverna dada, aqui atravessamos o rio”, sinaliza. Na ânsia pela fluência, a forma do texto se dilata, mas é calejada: o tom é poético, alucinado, só que não se perde, pois maturado pelo vivido.
 
A imagem da vez é a da ampliação do rio bom: ciente de que o chão no qual os pés se sustentam divide as pessoas entre proprietários e despossuídos (fórmula-síntese: “manda quem pode, obedece quem tem juízo”), tudo nele, desde o mote dito pela mãe, tematiza, nas dificuldades, o desejo de arte, de libertação, de subsistência criativa e organizada na seca, arquitetando o querer rumo ao encontro das cheias compartilhadas.
 
Na maior parte do tempo, o cenário de fundo se situa, tacitamente, no interior de São Paulo. Local onde, o texto registra, as cidades são reduzidas a “ilhas urbanas no oceano de canaviais”. Nessas condições, o mascate de ideias e anti-herói tende a parecer com um Antônio Conselheiro de água doce: o canavial vai virar rio, o rio vai virar canavial. Possivelmente é algo nessa linha o que se anuncia na capa. Nela, a foto do autor, barbudo, com as mãos na altura da cabeça e em clima de cena e palco, faz pose de direção, como se dissesse: “Rigor! Radicalidade! Ruptura!”, mantra de Demerval Saviani comum ao paiol de amarramentos.
 
Se os fazimentos, diz o livro, ocorrem no interior de um deserto verde, o mesmo não pode ser dito da sua pregação. Somos inundados, passada a capa, por fotos de ações culturais: rádio, teatro, cineclubes, oficinas, rodas de conversa e além. Elas se afirmam como provas de coletividade operante, possibilidades colhidas do irrealizável como fruta-invencionice. Sempre em companhia, o autorretrato de Hélvio, cercado de jovens e adultos, não percorre mais a própria formação, mas age como formador, esparramando sementes de agitação cultural para colher outras. “Temos arte para não morrer da verdade”, é o que crava a citação de abertura na esteira de Nietzsche.
 
Ainda miúda a forma, porém mais irrequieta, a necessidade, como ingrediente, se mostra sobressalente. “A palavra paracatuzum de origem tupi que significa ‘rio bom’, através da junção dos termos ‘Pará’ (‘rio’) e ‘Katu’ (‘bom, fértil, caudaloso’). A necessidade de aguar os muitos rios assoreados do interior paulista e dar um zoom (zum) na busca de algum tipo de desenvolvimento que contemple a cultura humana como fonte estrutural” — e, pista decisiva, o que Hélvio chama de desenvolvimento aqui (e, por favor, tudo foi concebido antes do contraponto krenakiano alastrar) se opõe ao que chamou de desenvolvimento desumano da usina.
 
Nesse sentido, somados ao design, os saltos figurados bem cozidos no vivido parecem querer agir como nova camada de costura: funcionalizados como imagens compactas, eles se desvencilham do específico, embora mantenham as marcas de origem. Por isso, falam à imaginação em registro alegórico. Curiosamente, esse recurso de amplidão se mescla a outro que não poderia ser mais avesso, embora ambos saiam bem dali e de mãos dadas: o gosto pela forma elíptica se unta ao compartilhamento variado de estratégias e táticas — sim, um receituário programático, embora não doutrinário.
 
Sugestões e experiências de espírito orientador encharcadas de poesia ou seriam poesias de espírito desorientador encharcadas de sugestões e experiências? De um modo como de outro, as dúvidas se multiplicam e as práticas ganham não paralisia, mas um empurrãozinho. Coisas de professor? Talvez. Entretanto, o segredo passa pela inspiração em certa concepção de filosofia tropeira de berço sardo, embora alinhada a práticas conselhistas plurais de organização em viés popular. “Prontos. Conseguimos e não temos a mais miúda doutrina. Quem sabe a grandeza de não termos convicções e estarmos prontos para o indefinível embate?”, é o que confessa o autor, farejador de rumos a serem percorridos nos novos tempos do mundo.
 
Na união entre dicas e imagens — literalmente uma emulação de roteiro de cinema — temos ali, por exemplo, o causo de um canavieiro gasto pela monocultura. Ele, nas horas vagas, gostava de plantar tudo o que fosse diverso. Com o tempo livre escasso, deixou um método de subsistência: “mapear.terreno.preparo.sementes.plantio.cultivo.colheita.cozinha.paiol.mapa”. É nessa mistura de confissões, receitas de bolo e historietas fragmentadas entremeada por poemas, fotos, desenhos, depoimentos e demais multiformas sequenciadas que temos o bordado dos amarramentos. “Escrevo para me ler e traduzir o entorno”, resume.
 
Ao fim e ao cabo, caminhar rumo aos protótipos de Pra onde for mais longe daqui (s. d.) seria dar um passo maior do que a perna. Basta dizer que o duro parto em torno do terceiro volume fala diretamente à queda de braço entre a monocultura e o cultivo íntimo fiado pelos métodos de subsistência. Entre ambos, sem dúvida, há o peso do tempo fechado, escancarado não só aqui, mas no céu de todo lugar. No entanto, esses passos conflituosos em não aceitar migalhas, como já antecipamos, continuam a buscar a produção crítica consciente: “trabalhar com arte amplificou o sentido normativo da existência, estabelecendo assim o ilimitado como condição final da coisa toda”. Compreender algo assim no day after de um experimento agroexportador não é conclusão trivial.
 
Do texto para a vida, é nas atitudes persistentes e ativas que a presença de Hélvio se faz mais estimulante: os retalhos de tradição militante e agitação cultural nos quais ele ainda oscila desconfiadamente lembram que não se baixa a cabeça, mas se enfrenta. Como? Podem-se apontar contradições, calcanhares de Aquiles aqui ou ali. No entanto, em ação, Hélvio Tamoio se prova no testemunho de agência – eis o sumo da tinta própria a cada texto. Desde cedo acostumado a inventar com a vontade e a peitar o impossível, o norte certo é criar alternativas na falta delas.
 
Longe do bovarismo próprio aos sedentários, o mascate de ideias — um pouco nas trilhas de um Hemingway? —, reverbera o ainda. No ziriguidum entre a poesia e a prática, se planta e se colhe. Não é outra coisa que vemos quando nos deparamos, por exemplo, com algumas das pérolas recolhidas em suas andanças: “Faço da minha esperança/ Arma pra sobreviver/ Até desengano eu planto/ Pensando que vai nascer/ E rego com as próprias lágrimas/ Pra ilusão não morrer”. Tais versos, compartilhados por João Paraibano, morador de Princesa Isabel, Paraíba, dão o recado: o grande achado do mascate passa pela urgência de formar, de escutar e de contar histórias. Não deixar para amanhã.


Notas

1 Hélvio, em 2014, escreveu um testemunho estilizado sobre os impactos do golpe de 1964 e como viveu o nascimento da Nova República. De olho na transição dos anos oitenta, ele pode ser acessado aqui.

2 Paracatuzum, o nome da comitiva de Hélvio, pode ser saboreado em suas razões e estímulos junto ao seguinte vídeo.

3 O nó da cana também dá garapa (2018), o filme, pode ser visto gratuitamente aqui.

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