Dylan Thomas, retrato do contista entre lendas

Por Juan Pablo Bertazza


Dylan Thomas. Foto: Rollie McKenna


O extraordinário Dylan Thomas morreu no dia 9 de novembro de 1953. Sua figura parece completamente descolada do bronze, algo como Bukowski, mas, em alguns aspectos, muito mais sofisticada. O escritor galês tem a particularidade de ter transcendido como poeta com nuances românticas ligadas ao poder da natureza e a uma infância idílica, embora, ao mesmo tempo, não pareça ter ficado de fora da vertigem de nossa contemporaneidade, talvez por sua participação ativa na mídia, lendo poemas no rádio e escrevendo roteiros; talvez porque não hesitou em embarcar e assumir todos os riscos daquela montanha-russa que, em muitos aspectos, foi o século XX. Não apenas pelo impacto que a guerra teve sobre ele (muitos afirmam que ele deixou o romance Aventuras no comércio de peles inacabado por parecer banal em comparação com o conflito), mas também porque conheceu Chaplin, Marilyn Monroe e até mesmo Stravinsky, com quem esteve prestes a criar uma obra em conjunto.
 
Embora talvez menos intensa do que a de outros papas literários, a presença de Dylan Thomas permaneceu intacta ao longo dos anos, como se nutrisse uma estranha forma de sutil onipresença. Ele aparece, para começar, na capa de Sgt. Pepper's, dos Beatles, e seu nome batizou uma banda de rock costarriquenha emergente cujos membros, na verdade, não o liam muito, mas decidiram adotar seu nome, abreviando um conto de Bukowski de 1972 intitulado “Foi isso que matou Dylan Thomas”.
 
No exato oposto, sua figura inspirou o maravilhoso conto de Margaret Atwood, “O túmulo do famoso poeta”, no qual um casal prestes a se separar visita, como num ritual final, o cemitério onde o famoso galês, que nunca é mencionado, está enterrado. E, em exemplos mais recentes, seu poema mais famoso, “Não entres nessa noite escura”, é lido como o clímax de Interestelar (2014), de Christopher Nolan.
 
Não nos esqueçamos de que, além dessa relativa fama espalhada pelo mundo, Dylan Thomas também é um profeta em sua própria terra. Como outros grandes escritores que se tornaram verdadeiros símbolos de uma cidade — Fernando Pessoa e Lisboa, Franz Kafka e Praga, Octavio Paz e México — Dylan Thomas é hoje quase sinônimo de Swansea, a segunda maior cidade do País de Gales, depois de Cardiff. Naquela que também é sua cidade natal, o rosto do autor aparece em caixas de correio, bancos de praça, paredes de pubs e, desde 2005, a casa de dois andares e quatro quartos, com uma mística difícil de expressar em palavras, onde nasceu e passou toda a sua infância, localizada no número 5 da íngreme Cwmdonkin Drive, funciona como uma residência temática, algo como um museu habitável que, pelo menos antes da era da covid-19, recebia cerca de um grupo de visitantes do mundo todo por semana.
 
O sucesso deste museu habitável deve-se, em parte, ao fato de que, no caso do Thomas, parece haver uma verdadeira luta entre sua lenda e sua literatura. Sua neta, Hannah Ellis, parece apontar nessa direção:
 
“Acho que sua obra é mais poderosa do que sua lenda; sua lenda é conhecida em nível público e geral. Mas acredito que as pessoas que descobrem sua obra se envolvem profundamente com ela. É difícil, acho que de alguma maneira, às vezes as pessoas conhecem o poema ‘Do not gently into that good night’, mas não sabem que é de Dylan Thomas.”
 
Por isso mesmo, reviso aqui alguns pontos fundamentais da biografia de Dylan Thomas: uma lenda que, desde o primeiro dia, acabou influenciando seu destino; sua faceta pouco explorada como contista em comparação com sua obra excepcional como poeta; e, finalmente, um mito completamente apócrifo.
 
A importância de ser chamado Dylan
 
Não se pode considerar a posteridade que Dylan Thomas alcançou sem remontar ao elemento mais original: seu nome. “Dylan” foi escolhido pelo pai a partir do Mabinogion, um ciclo de prosa medieval que ocupa um lugar privilegiado não apenas na literatura galesa, mas também na literatura celta como um todo:
 
“— Bem — disse Math, filho de Mathonwy, dirigindo-se ao menino loiro —, vou batizá-lo aqui e chamá-lo de Dylan. Ele foi batizado. Logo depois, rumou para o mar. Assim que nele avançou, recebeu a natureza do mar e nadou tão bem quanto o mais veloz dos peixes. Por essa razão, o chamaram de Dylan (filho da onda). Nenhuma onda jamais quebrou sob ele.”
 
O que pode parecer uma simples redundância refere-se, na verdade, ao poder profético desse nome, cujo significado, como acabamos de ver, é “filho da onda”, e que deve ser tomado como causa da relação íntima que o galês manteria com a água ao longo de sua vida. E esse mesmo poder profético também tinha o sobrenome de Dylan Marlais Thomas, em homenagem ao seu tio-avô William Thomas, o orgulho da família: um sapateiro que virou pregador, foi professor, um defensor da justiça social e, acima de tudo, um grande poeta que assinava suas obras com o pseudônimo “Marles”. A tradição de incorporar um nome poético era muito comum na cultura galesa, e o tio-avô de Dylan Thomas o adotou o nome do rio que cortava Brechfa, sua cidade natal.
 
E assim como o menino loiro no Mabinogion personificava sua proeza marítima simplesmente por receber esse nome, poderíamos arriscar que Dylan Thomas se tornou poeta a partir do momento em que seu pai, que sempre sonhou em ser poeta, lhe deu esse nome, que, claro, também tem a ver com água.
 
Também não devemos subestimar o que acontece com o nome Dylan do outro lado do Atlântico, essa espécie de constelação formada por Dylan Thomas e Bob Dylan: o primeiro como um poeta intrinsecamente ligado ao ritmo e à música; o segundo como um cantor e compositor ganhador do Prêmio Nobel de Literatura.
 
Sobre as vezes em que o próprio músico negou que seu nome tenha vindo do poeta, escritor e grande colecionador Dylan Thomas, Jeff Towns afirma o seguinte:
 
“Quando Bob Dylan já era famoso em Nova York e tinha acabado de assinar um contrato, um amigo dele, Steve Goodman, o convidou para colaborar em uma música de seu LP Somebody Else's Troubles, lançado em 1972. E como o contrato o impedia de usar seu nome verdadeiro com outra gravadora, você sabe como ele assinou? Como Robert Milkwood Thomas! Esse é o crédito dele no LP de Goodman, onde tocou teclado e fez backing vocals. Portanto, embora às vezes tenha negado ter adotado seu nome, fica claro que ele se originou ali.”
 
Retrato do jovem contador de histórias
 
Embora sua enorme fama se deva à produção poética e, acima de tudo, ao seu estilo hipnótico de ler, não se deve ignorar que Dylan Thomas também foi um contista excepcional. O curioso é que, a rigor, o único volume de contos que publicou em vida foi o famoso Retrato do artista quando jovem cão (1940).1 Além de incorporar técnicas literárias bastante modernas, como o fluxo de consciência, nesse livro, há algo extremamente singular no estilo narrativo de Thomas, que também aparece nos contos de O mapa do amor (1939) e naqueles publicados após sua morte sob o título O visitante e outras histórias.
 
Essa singularidade pode ser descrita observando que, por vezes, nos contos de Dylan Thomas — que, com poucas exceções, são absolutamente realistas — imaginação e realidade parecem formar um todo indivisível, sem que por isso o tornem um escritor surrealista, rótulo que muitos críticos tentaram lhe imputar e do qual ele sempre procurou se distanciar, pois, na verdade, seu método literário é a antítese da ideia de automatismo.
 
A imaginação dos personagens de Dylan Thomas é tão fértil que, em algum momento, provoca um “derretimento” da realidade. Em “Uma visita ao avô”, incluído no livro de 1940, não está claro se a loucura do velho que cavalga em seu quarto influencia o sonho do neto ou se é, ao contrário, o conteúdo onírico do jovem que inspira o comportamento estranho do avô. Em “Um sábado quente”, incluído no mesmo livro, a figura frágil de uma mulher que o jovem protagonista desenha primeiro na areia e depois no balcão de um bar parece antecipar a aparição fugaz de um completo estranho que o cativa até os limites do narrável. Finalmente, no magnífico conto “Os perseguidores”, os nomes que os dois jovens, sedentos por histórias, dão aos personagens acabam se transformando em seus nomes, e o que eles parecem ansiar por ver é justamente aquilo que acaba os assustando quando finalmente aparece, talvez diante deles.
 
Escritos sob o mesmo fogo sagrado de sua poesia, mas quase sempre mais inteligíveis que seus poemas, os contos de Dylan Thomas apresentam paisagens e motivos recorrentes, como “Daisy Bell”, uma mítica canção inglesa escrita em 1892, ou aquele lugar impressionante chamado Worm's Head, localizado na Península de Gower e que aparece não apenas em vários contos de Retrato do artista quando jovem cão mas também em algumas de suas cartas, por ser um de seus lugares favoritos no País de Gales: um grupo de duas ilhas de pedra no sul do país, acessível apenas pela praia na maré baixa.
 
Embora geralmente muito legíveis e simples, os contos de Dylan Thomas têm a virtude de serem mais profundos do que parecem à primeira vista, sempre oferecendo uma reviravolta inesperada ou uma descrição que continua a ressoar muito tempo depois da leitura.
 
Dezoito uísques, um recorde sem fundamentos
 
Não é necessário esclarecer, como diz o ditado, quantas consequências uma mentira pode gerar. Mas, às vezes, as resultadas da mitificação são ainda mais poderosas. É o caso dos famosos dezoito uísques que, segundo a lenda, o escritor consumiu antes de morrer na emblemática White Horse Tavern, em Nova York. Além da implausibilidade de que alguém prestes a morrer tenha a possibilidade de dizer que alcançou um recorde, já no livro Eu conheci Dylan Thomas (1955), de John Malcolm Brinnin, e, desde então, em quase todas as biografias então publicadas — incluindo a mais completa, Dylan Thomas: A New Life, de Andrew Lycett — contém várias evidências de que sua morte não foi repentina nem pitoresca.
 
Primeiro, porque de seu pub favorito em Nova York foi levado ao Chelsea Hotel, onde estava hospedado, e de lá, uma ambulância foi chamada para levá-lo ao Hospital St. Vincent, onde ele acabaria morrendo não por excesso de álcool, mas por complicações da pneumonia.
 
De acordo com a maioria dos relatos, a famosa frase teria sido cunhada por Liz Reitell, assistente de John Malcolm Brinnin — que levou Dylan Thomas em turnê por Nova York — e que, além de se tornar seu interesse romântico, foi a pessoa que o acompanhou em seus momentos finais. Segundo Jeff Towns, “quando ele morreu, Liz ficou assustada porque as pessoas começaram a dizer, com certa malícia, que em Nova York lhe davam álcool o tempo todo e não cuidavam dele. O que aconteceu foi que o médico lhe deu várias doses de morfina, o que não era aconselhável: ele tinha 39 anos, e foi uma tragédia.”
 
Seguindo Towns, Liz queria entrar para a história como seu último grande amor e disse muitas coisas que ninguém jamais poderia corroborar, incluindo a famosa frase sobre os uísques, que, aliás, já havia aparecido, mais ou menos, em duas peças de Thomas: na peça radiofônica Ao pé do bosque torto — onde alguém em um pub diz que bebeu “dezenove copos de cerveja” — e no conto “Quem você queria que estivesse conosco” — onde um personagem declara: “Acho que foi um recorde e tanto”. Jeff Towns conclui esclarecendo: “ficou como se aquelas fossem suas últimas palavras, e as pessoas gostam disso, mas a verdade é que seus amigos vasculharam os bares locais e ninguém lhe serviu dezoito uísques seguidos.”
 
Por sua vez, o escritor George Tremlett, autor de várias biografias de astros do rock como David Bowie e coautor com Caitlin MacNamara de Life with Dylan Thomas, vai ainda mais longe: “Ele não estava tão bêbado quanto as pessoas diziam: ele conseguia escrever bastante todos os dias, era um escritor esforçado; não poderia ter escrito tanto se vivesse bêbado.”
 
Desmentidos esses dezoito uísques mortais, fica claro que as lendas continuarão a alimentar a vida de artistas e poetas como Dylan Thomas, como evidenciado pelo número de pessoas que viajam para Swansea ou para a cidade de Laugharne (onde ele está enterrado) todos os anos em busca de inspiração. E embora, como diz sua neta, esses mitos muitas vezes pareçam engolir um pouco sua obra, também é verdade que, em certa medida, eles contribuem para manter a relevância desses livros, que, afinal, estão sempre ao nosso alcance.
 
Notas da tradução
 
1 O mapa do amor, saído em 24 de agosto de 1939, era um híbrido entre prosa e poesia e foi integralmente ofuscado dado o estopim da Segunda Guerra Mundial. 


* Este texto é a tradução livre de “Dylan Thomas, retrato del cuentista entre leyendas”, publicado aqui, na revista Nexos.
 

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